Por Passa Palavra
É tão raro, em Portugal como no Brasil, que haja na esquerda um debate construtivo, com argumentos e sem amuos, que não resistimos ao prazer de continuar esta conversa com André Barata. Os episódios anteriores podem ser lidos aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Estamos de acordo com André Barata quando escreve que a «primeira evidência da plasticidade do Estado é a sua história», mas foi precisamente por isso que no nosso artigo anterior colocámos questões acerca do Estado Social. As experiências históricas da construção do Estado Social, desde a sua origem com Bismarck até às suas várias modalidades ao longo do século XX na Europa e nos Estados Unidos, levam-nos a duvidar do seu cariz emancipador. Lembramos Walter Benjamin, quando escreveu que «os que num momento dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes».
Evoca-se usualmente como exemplo do Estado Social a Alemanha durante a república de Weimar. E ainda que se queiram pôr de parte os cadáveres de Rosa Luxemburg e de Karl Liebknecht e de tantos outros de nomes menos conhecidos, com o argumento de que eles foram assassinados pelas mesmas forças que se erguiam contra a república, convém lembrar que toda a república de Weimar assentou numa aliança entre a social-democracia e o estado-maior do exército. Ano após ano, à medida que se iam edificando as peças do Estado Social, a social-democracia ia prescindindo de liberdades políticas com a justificativa de que era preferível perder alguma coisa para salvar o resto. E foi assim que no penúltimo dia de Janeiro de 1933, depois de se ter perdido tudo perdeu-se o resto também. Mas o Estado Social não acabou ali a sua história, porque se reencarnou na Frente do Trabalho nacional-socialista. É esta «plasticidade» que convém não esquecer.
O Estado Social surgiu quando se tornou necessário ao capitalismo edificar infra-estruturas sociais que ultrapassassem os limites das simples empresas. Os elementos constitutivos do Estado Social não são avaliados pela sua rentabilidade imediata, porque eles são rentáveis não caso a caso mas para a globalidade das empresas capitalistas, e não de imediato mas a médio e longo prazo. Por isso não reconhecemos no Estado Social um «obstáculo concreto à hegemonia mercadorizadora da vida das sociedades» nem «a escolha colectiva da sociedade por organizar certos sectores da vida social, caracterizados por uma maior sensibilidade à equidade, de forma independente da lógica de oferta e procura no mercado». Um sistema de saúde público, gratuito e de qualidade não contradiz a lógica mercantil capitalista. Pelo contrário, destina-se a preservar as despesas de formação feitas pelos capitalistas na mais importante de todas as mercadorias — a força de trabalho. E o mesmo raciocínio se aplica a qualquer dos outros elementos do Estado Social.
A alteração das bases de intervenção do Estado nas últimas décadas não implicou, a nosso ver, uma diminuição da sua intervenção. O neoliberalismo, longe de implicar um «Estado mínimo», apenas reorientou as metas dessa intervenção, concentrando-se na construção das condições sociais necessárias a uma concorrência dinâmica. Trata-se, afinal, de uma reorganização da área capitalista pública de acordo com aquela reorganização da área capitalista privada a que geralmente se chama toyotismo. O financiamento público de escolas privadas por parte do Estado português, conforme evocou André Barata, é um exemplo flagrante deste tipo de intervencionismo.
Mas quando vemos André Barata, no 4º § do seu último artigo, propor que instituições daquele tipo de Estado Social cuja rentabilidade, como dissemos, é pensada globalmente e a médio e longo prazos entrem em concorrência com empresas de educação e de saúde cuja rentabilidade é específica e pensada a curto prazo, só podemos concluir que se asseguraria assim a falência não só política mas também económica daquele Estado Social que André Barata defende. O mercado, tal como existe no capitalismo, é um péssimo lugar para escolher modelos sociais distintos, porque as regras do jogo são ditadas exclusivamente por um desses modelos.
É certo que se o sistema escolar se restringir e deteriorar, se os ócios se confundirem com a barbárie, se os bairros populares se arruinarem progressivamente e caírem na decrepitude, o sistema público de saúde tornar-se-á desnecessário porque já não haverá força de trabalho qualificada a preservar. Mas isto significa apenas que o Estado Social é um dos elementos de um capitalismo desenvolvido. E mais: que é um dos factores de pressão para o desenvolvimento capitalista. Em vez de entrar em contradição com o capitalismo, o Estado Social é um dos seus mecanismos. Voltamos aqui à questão da mais-valia relativa, que André Barata pôs de lado, parece-nos que demasiado apressadamente.
É claro que é muito mais cómodo viver num Estado Social que funcione bem do que num Estado Social a fechar escolas e a desmantelar postos de saúde. Do mesmo modo é muito mais confortável ser um trabalhador na Suécia do que no Haiti, mesmo sabendo que o elevado nível de qualificação dos trabalhadores na Suécia e a alta produtividade do sistema em que eles laboram representa um grau de exploração muitíssimo superior ao dos trabalhadores no Haiti. Assim como é muito mais cómodo para nós que as polícias obtenham informações acerca da nossa vida através do Facebook, dos telemóveis, das câmaras de vídeo e de toda essa parafernália do que através de torturas, mesmo sabendo que acumulam assim muito mais informações a nosso respeito do que a Pide conseguia com os seus métodos. Mas a questão é precisamente essa — a da comodidade. O capitalismo prospera pela absorção dos conflitos e não pelo seu agravamento.
A luta contra a lógica de transformação da vida em mercadoria é, certamente, um objectivo que partilhamos com André Barata. Mas consideramos que esta luta não pode limitar-se à defesa de uma educação e saúde públicas e gratuitas. A rejeição da lógica produtivista deve considerar não só a questão da rentabilidade imediata como também a da rentabilidade global do sistema capitalista servido pela educação e pela saúde. Por isso consideramos que a rejeição da lógica produtivista passa por uma luta que advogue formas democráticas e horizontais de organização dos hospitais e postos de saúde, das escolas e de quaisquer outros serviços públicos. É aqui que poderá assumir um significado anticapitalista a acção das «instituições, serviços e funcionários, que resistem no dia a dia das suas actividades ao desvirtuamento da intencionalidade intrínseca das suas funções». Repetimos. Para nós a «intencionalidade» do Estado Social é o desenvolvimento do capitalismo, mas quando os funcionários «resistem no dia a dia das suas actividades» eles estão já a fazer outra coisa que contradiz o capitalismo. Qualquer «revolução de direcções a fazer» deverá preocupar-se menos em olhar para cima, para o Estado, e mais em olhar para o lado. É naquela «organização colectiva», naquele «modelo de organização composto por uma liberdade comum em exercício» que nós insistimos.
Teríamos gostado também que André Barata tivesse situado no além-fronteiras o Estado Social, considerando os debates em torno do estreitamento ou do relaxamento da União Europeia e os debates entre os defensores da manutenção de Portugal na zona euro e os nostálgicos do escudo. Esperemos que fique para a próxima vez.
As obras que ilustram o artigo são de René Magritte
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.