Aqui e agora podemos explorar a passagem às paixões alegres… é infrequente, é raro, mas não impossível. Por Coletivo Dialéktica

Editorial do número 27 da revista Dialéktica, terminado no outono de 2016, Buenos Aires. No site da revista pode-se encontrar em formato pdf todos os números anteriores, desde o primeiro lançado em 1992. O número atual estará disponível em pdf assim que o próximo número sair em papel. As três primeiras partes do nosso texto “Reflexões sobre a autonomia” integram o Dossier de seu número atual.

clow6Os partidos de esquerda são máquinas despóticas que servem para o disciplinamento de seus militantes. O inquestionável da sua forma vertical de organização corresponde, por um lado, com a dogmatização do fazer e do pensar, e por outro, como a fúria que se descarrega sobre os traidores, os quebrados, os infantis contra-revolucionários. Nada que invejar das melhores religiões. A promessa de um reino da liberdade se torna um molde de ferro para essas subjetividades militantes. (O mesmo ocorre com os “movimentos” populistas, só que no lugar de uma terra prometida, aspiram a um – improvável – paraíso perdido com idêntico efeito mistificador e compressor).

Mais próximo de nossas posições, diversos grupos e coletivos, que poderíamos sintetizar sob o esquemático e abstrato nome de “autonomistas”, consideram que a horizontalidade na tomada de decisões, a aposta pelo trabalho coletivo, a rotação de tarefas etc, apresentam esforços de organização que propiciariam outra subjetividade política. Aqui a crítica às paixões tristes que organizavam a cotidianidade da militância de esquerda partidária tem como correlato positivo a afirmação daquelas práticas que se vinculariam com o prazer, o gozo, a alegria, a voluptuosidade, o desejo… “Se não posso dançar, sua revolução não me interessa”, dizem que disse a anarquista Emma Goldman, enquanto dançava, a um companheiro que condenou o seu exercício pequeno-burguês de entrega dissoluta do corpo à dança. Hoje essa frase poderia ser pronunciada tranquilamente por Mauricio Macri no começo de um de seus shows (ou ao final, que é quando costuma exibir, como dizia Paolo Virno, seu “virtuosismo” [n.trad.: ver aqui, e aqui ]).

De um lado, como dizíamos, a esquerda tradicional com sua militância triste e seu religioso “mais além”. Do outro, a esquerda autônoma com seu ativismo alegre e seu dançante carpe diem. Mas os animais humanos somos um e o mesmo, e somos fundamentalmente finitos, uma parte da natureza. Por isso podemos afetar e ser afetados. Podemos atuar ou padecer. O grande boxeador Abel Laudonio o diz com uma eloquência admirável: “Quando não é você que está dando porrada é porque estão dando porrada em você”. Existem poucas coisas que entorpecem mais uma política auto-emancipatória que a unilateralização, ou seja, quando se toma apenas um lado e se esquece o outro do bicho humano. Quando se pretende escolher ou as paixões tristes ou as ou as paixões alegres (ou, pior ainda, quando se tenta tomar partido pela preminência de um meter a mão no barro, “a prática”, ou da ante-sala do pensar, a “teoria”). Por esse caminho, cedo ou tarde, o reprimido retorna. A esquerda partidária, frente às críticas, os questionamentos etc, tem respondido de maneira pouco fraternal e tem elaborado uma prolífica trajetória de traições, expulsões, exílios, purgas. “O partido se fortalece depurando”, reza a epígrafe de “O que fazer?” de Lenin. A história dos partidos de esquerda e sua compulsão ao fracionamento está condensada na repetição deste mantra. Os autonomistas, a seu modo, tem experimentado o retorno do lado “mau” do ser humano de diferentes modos, que vão desde a impossibilidade de dar um tratamento politizante a essas paixões tristes quando surgem em seus próprios espaços, até o pavor ante o suposto retorno “da direita” no recente segundo turno presidencial, conjuntura que os acomodou rapidamente nas filas do suposto “mal menor”.

Seja como for, partidária ou autonomamente, vertical ou horizontalmente, a política anticapitalista não deixa de enfrentar-se com as paixões. Está mais longe de uma racionalidade more geométrica do que costuma considerar-se, e mais próxima de uma religiosidade inconsciente do que costuma aceitar. Como poderia ser de outro modo em um mundo que esconde, como a chave de sua existência, a separação de uma força daquilo que ela é capaz? No capitalismo, a força produtiva da sociedade está separada do que ela produz, alienada das decisões que atravessam sua vida diária, alienada de seu corpo e seus desejos. Em termos clássicos: a fratura entre as condições de trabalho e o trabalho mesmo, o capitalista coletivo e o trabalhador coletivo, a renascente relação social capitalista. Nesta brecha se misturam as paixões e as ações da humanidade. Espinosa distinguía entre dois tipos de paixões: as tristes, que diminuem nosso fazer-pensar e nos jogam no padecimento, e as alegres, que o aumentam e nos conduzem à ação. Na batalha entre ambas paixões se joga a política, uma política que favorece umas ou outras. No capitalismo, não precisa ser dito muitas vezes, as paixões tristes, a perpetuação da relação social capitalista, a crescente distância entre nossas potências e o que elas podem, vem ganhando. As alegres, que tendem à sua abolição, são raras. A luta de classes é também – não poderia deixar de ser – uma luta entre nossas afecções. Porque uma paixão só pode ser transformada por outra paixão. A política constitui seu nervo nas paixões e não contra elas (quando a razão as repudiou… produziu monstros).

A presença das paixões no seio da autoprodução da sociedade se mostra claramente quando olhamos o mundo da realpolitik. Ali ninguém encontra problemas em apelar às formulações mais morais e religiosas que podemos encontrar. O que seja eficaz para manter o sistema será dito. As eleições da democracia burguesa são um festim de engenharia midiática para conquistar o coração dos votantes. Sempre se apela às paixões. Sempre se busca afetar a fim de que alguém vote para que se decida por esse alguém. Para separar – uma vez mais – a força daquilo que ela pode. Por isso, sempre estamos nas bordas da religiosidade… E as paixões tristes prediletas do paraíso perdido, do reino prometido, são a esperança e o medo. Uma, nostálgica de um passado mítico, outra, em fuga de um passado aterrorizante. Uma, sonha com o que pode vir, outra, teme ante o futuro imprevisível. Paralisada no passado ou projetada no futuro, ambas duvidam e tropeçam no presente. Padecem: não atuam por que esperam, não fazem porque temem. E vai-se do temor à esperança e da esperança ao temor, porque são galhos do tronco comum da obediência política. Sêneca conhecia essa triste irmandade: “Deixarás de temer, se deixas de esperar”.

clown5A primazia da obediência política se mostrou nitidamente no segundo turno entre Mauricio Macri e Daniel Scioli. Deixando de lado que as opções pró-capitalistas hegemonizaram de ponta a ponta a maratona de eleições que foi 2015[1], mencionemos antes de tudo que, no plano programático, até os próprios kirchneristas reconheciam que as linhas político-econômicas do candidato que a “sua” chefa escolheu eram as mesmas do macrismo, salvo por sua celeridade: ajuste em câmera lenta. O triunfo de Macri – e o que estamos vivendo desde o 10 de dezembro – se adequa a esse prognóstico, que não é outro que o que rege os ciclos vitais da economia capitalista. Mas o que nos interessa é outro ponto. Ajuste veloz ou ajuste lento, seria decidido nas urnas. E o essencial desse jogo só se vê a partir do coração. O catadão do Cambiemos [frente eleitoral de Macri] desde seu nome promete um futuro distinto, a esperança de outra vida, uma página virada dos 12 anos de kirchnerismo, esse recente e ominoso passado (que incluía desde a inflação até a insegurança e o narcotráfico). A Frente para la Victoria [frente eleitoral do kirchnerismo], de seu lado, armou sem meias palavras a campanha do medo, apelou ao fantasma do neoliberalismo e da crise de 2001[2] (muito mais que os pontos progressistas dos quais se jactavam na “década ganha”). Obviamente, a eficácia do marketing político tem sua fonte e correspondência no corpo da sociedade e nas paixões que cortam transversalmente as distintas classes sociais. Esperança e temor para ir às urnas e votar mais economia capitalista, mais política estatal, mais ideologia burguesa. As paixões tristes por antonomásia cozinharam tanto a conjuntura que em toda parte se falava do sufrágio do ano. Recebíamos diariamente (em nossos lugares trabalho, em reuniões amistosas ou familiares, em encontros ocasionais) a veemente insistência com a qual os sciolistas de todo tipo – aqueles que votaram porque são sciolistas de primeira hora, aqueles que votaram nele “porque assim ordenou a chefa” e aqueles que, depois de ficar sabendo da definição voto por voto contra Macri, votariam nele porque se não “aí vem a direita” – nos interpelavam para que votássemos naquilo que nem votamos nem votaremos. A interpelação que mais nos surpreendeu foi a daqueles autonomistas que haviam passado anos repudiando sem matizes desde qualquer tentativa de (auto)organização até as eleições estatais porque submetiam seus desejos, suas vontades, sua individualidade, etc. O medo da “direita” fez o seu trabalho[3]. O reprimido autonomista retornou. E se passou sem meias palavras da indiferença ao “mau governo” a devorar a agenda da burguesia[4]. A religiosidade passeou vitoriosa entre nós… O Capital também.

As eleições já passaram, mas as paixões políticas se mantém em primeiro plano. É por isso que devemos tomar distância, dar um passo atrás e re-começar outra vez com a premissa de toda crítica: a crítica à religião. Precisemos: a critica à forma da religião. É que esta – a forma – é que se mantém, que se transveste, se disfarça com cores, em tons, em retórica que a encobrem e até a negam para confirmá-la. Sua forma: paraíso perdido ao qual regressaremos cedo ou tarde, mas regressaremos. E uma vez que a religiosidade, a continuidade na forma da religião, está operando (outra vez), não apenas se armam as promessas de inexorável redenção, de restituição de um gozo perdido, senão que também se prepara a liturgia para os fiéis, os anátemas para os traidores e as beatificações para os mártires da causa. Tempos álgidos estamos vivendo. Tempos álgidos virão. Mas, em um sentido relevante, nada novo para os que lutamos contra a relação social capitalista.

E o que melhor para cozinhar essas paixões que um contexto de ajuste!? Já se sabia antes das eleições, a única diferença entre as tendências personificadas por Cambiemos-PRO-Macri e a tendência personificada pelo FPV-PJ-Scioli era a velocidade com a qual se ia ajustar. Até os kirchneristas mais apaixonados por Ela o aceitavam (e em voz baixa diziam que só lhes importava esperar que ela voltasse…). O macrismo ganhou nas urnas e está fazendo os deveres da forma que o capital manda, com uma celeridade que não surpreende, com um ânimo revanchista eloquente. Se se trata de analisar concretamente a situação concreta, devemos dizer que, ainda, tanto os produtos do trabalho humano como a capacidade de trabalho da maioria dos seres humanos toma a forma de mercadoria. O desenlace das contradições inerentes à produção mercantil capitalista nos conduz ao vai e vem do ciclo econômico e à inescapável luta de classes… E assim como na fase ascendente se pavoneiam as políticas progressistas, agora, na pendente do ciclo se assenhora o ajuste. É necessário dar segurança aos capitalistas para que a taxa de lucro volte a prosperar: desvalorização, endividamento, demissões, redução do déficit fiscal e disciplinamento das lutas. O Capital avança sobre o trabalhador coletivo. Essa é a essência do que está ocorrendo nas primeiras semanas macristas. E nesta conjuntura se impõe a unidade de ação, é o momento quando as perspectivas tendem a uma instável convergência. Unidade de espanto. Temos dito, tempos febris nos quais a confluência tática não deve ocorrer em detrimento da crítica. É necessário afiar o lápis e matizar o enredo de posições.

clown2Agora que o kirchnerismo deixou o poder executivo do Estado, se encaminha para a engorda ou duplicação do mito peronismo. A mitificação da “década ganhada” vai a passo firme e de pouco a pouco se irá colorir com as cores da origem, sendo aspirado como o paraíso perdido[5] de onde se foi expulso por 51% dos votantes macristas… Se narram a si mesmos que haviam chegado ao poder (pela janela, mas haviam chegado…) para concretizar os sonhos pelos quais muitos lutaram na década de 70 (que, por sua vez, queriam voltar à década de 40…). Agora já não estão, mas juram voltar. Imploram aos céus que ela volte. Enquanto esperam, se congregam fielmente nas “praças do povo” para ouvir a palavra do profeta de turno. Não seria estranho que nessa peregrinação de retorno ao desejado templo estatal estejam com ânimos de separar devotos de ímpios.

A esquerda partidária não é alheia a essas práticas. Seus mitos bolcheviques não cessam de nascer ao par de um férreo dogmatismo e de uma fúria implacável contra os “contra-revolucionários”. Neste ponto não tem nada que invejar ao kirchnerismo. No entanto, a esquerda tem um sentimento ambíguo com relação ao número de adeptos que o populismo costuma mobilizar. Por um lado, baba imaginando que glorioso será o dia em que essas massas se tornem para si e reparem na verdade escrita no programa da esquerda e, sem duvidar por um momento, passem a engrossar suas filas para encaminhar-se à tomada do palácio rosado [n. trad.: Casa Rosada]… Por outro lado, a atualidade de sua organização se nutre de um gozo oculto: a minoria é a prova de sua verdade, a marginalidade confirma sua posição: a correta. Por que não se somam as massas ao cavalo da verdade-verdadeira? São enganados! Perdoai-os, Pai, porque não sabem o que fazem!

***

Por que voltamos à premissa de toda crítica, criticar a religião, criticar a forma da religião? É que ela não cessa de nascer. Mas o problema não é a religiosidade em si, senão algo mais primário: os processos de subjetivação; o desenvolvimento da consciência política individual e coletiva que encarnam essas formas políticas; os tipos de relações, desejos e interesses que caracterizam a praxis política. Quando dizemos “primário” não nos referimos à mera biografia (empírica, anedótica, jornalística) de certos partidos e grupúsculos, senão às primeiras formas (transcendentais, lógicas e filosóficas) da consciência militante: figuras pobres em determinações, abstratas e vazias, apesar de seu voraz apetite por abarcar a pletórica realidade nas linhas de “seu” programa. O qual se nota, fundamentalmente, na precocidade de seus juízos: se levanta o dedo com uma impaciência impactante, se levanta a voz subitamente para designar a diferença perspícua entre o todo (o que eles fazem) e o nada (o que fazem os demais). Estas configurações primárias e pobres em determinações da subjetividade militante se empenham no impossível: chegar aos fins sem os meios. Paradoxalmente, a ilusão retrospectiva de um paraíso perdido e seu concomitante impulso a um futuro de redenção, convertem a política em um voluntarioso imediatismo que se irrita com os que fazem o que eles não fazem. Essa veemência à qual nos referimos tem para nós um claro sentido político, um lugar central no momento de fazer política, porque trama nossas existências cotidianas nos lugares de trabalho, na universidade, no bairro, etc. Ante essa impaciência política (que leva consigo às vezes uma violência explícita, às vezes em gérmen), recordamos o lema de Espinosa e sua comunidade de amigos: caute. Com isso, não apenas nos referimos à cautela em um contexto de paixões políticas candentes, senão também à paciência que traz uma política que ate meios e fins em si mesma, que ela seja sua própria mediação. Por isso, para nós, não se deve sair correndo para militar em qualquer lado, não é necessário levar a revolução para os outros. A política auto-emancipatória é aqui e agora.

Aclown7nte a forma da religião como centro do processo primário de constituição da subjetividade política, ali onde ressalta o Irracional, onde tropeçam em ineficácia – por insuficientes – os argumentos e as razões[6], a crítica tenta atravessar os medos e as promessas perfurando-os com armas infiéis: uma paixão só é modificada por outra paixão. Sem esperar nada, sem nada que temer, a atividade política devém incerteza e modéstia por sua finitude. Por isso nossa ênfase em que a política é aqui e agora, contra todo o “mais além”, contra toda a transcendência, contra toda forma-de-religião e tecnologia-política… Ante a repetida e renovada subjetivação religiosa, nós fazemos política aqui e agora. Ante a promessa da volta ao paraíso perdido para beber eternamente do mel do Pai-Estado-Revolução-Comunismo, nós optamos por uma política que não aspira saber o quê ocorrerá com o que se faça hoje, que não estabelece fins antes de reconhecer o caminho: ”experimentação“ foi como chamamos a essa noção nos números anteriores. Aqui e agora nos conduz a uma prática política que se assume no trabalho cotidiano com o que há, com o que somos. Nada de utopismos nem de realismos ingênuos. No mundo tal qual está sendo. E isso nos submerge nas paixões, nos afetos que constituem nossa experiência. As paixões tristes, que decrescem nossa potência de fazer e de pensar, que aprofunda o abismo entre nossa força e o que ela pode, essa é a generalidade de nossa cotidianidade. Terra fértil para o temor, a esperança, o egoísmo (que também se mostra na concorrência mercantil, na mão invisível que move o mercado), a má consciência, o ressentimento, a superstição paranoide… estamos ali, somos isso. Não é casual que em todos os âmbitos da vida nos encontramos com os mesmos problemas: submissão à autoridade[7], delegação, competição entre egos, ambição, etc. Se isso ocorre do outro lado da vitrine do capitalista coletivo ou dos “malvados” em geral não nos surpreende nem nos importa. Quando ocorre “deste lado”, se reprime, se silencia. E no ocultamento do problema sob uma retórica da busca da liberação, do amor, da revolução, etc, só se reproduz o mesmo jogo de paixões tristes. E o silêncio sobre elas, impede sua politização, sua autocrítica. Mas não nos confundamos. Nesse silêncio, nessa cegueira, não há idiotez, senão que também o medo se mistura com um gozo inconsciente.

É a generalidade da existência capitalista. Mas não somente. Aqui e agora podemos explorar a passagem às paixões alegres… é infrequente, é raro, mas não impossível.

Notas

[1] Mencionemos apenas um caso. No domingo 25 de outubro, votou mais de 80% do padrão e, desta cifra, mais de 95% optou por mais capitalismo. E esclarecemos que o ínfimo voto ao FIT não nos entusiasma, não pelo ínfimo senão pelo FIT: a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – uma coisa é a esquerda e outra são os trabalhadores? – nada oferece de relevante para a auto-organização dos produtores sociais, precisamente porque sua política se limita a oferecer. E quando a aposta política é de oferta só resta seduzir ou persuadir à demanda. (Mas o problema é a produção, não?). E o que oferece, desde sua invariável exterioridade, é a substituição representativa. Como já nos debruçamos sobre isso no nosso número anterior – onde também criticamos a trajetória da “esquerda independente” e da “nova nova nova esquerda”, as quais, longe de construir-se na paciência contra o tempo hegemônico, rapidamente se ajustaram ao ritmo da agenda eleitoral burguesa –, nada adicionaremos. Nada exceto uma delimitação. Não é que estejamos contra a participação em eleições. Cada vez que temos forças suficientes, aqueles que integramos estas revista, nos apresentamos para eleições em nossos lugares de trabalho (sindicatos, colégios secundários, terciários, universidades…). De maneira que, de fato, nem estamos contra apresentar-se em eleições nem contra o votar. Ao menos, não por princípio. Mas consideramos que não devemos atender separadamente os conteúdos e as formas, os meios e os fins, da ação política. Mas isso, quando podemos apresentar-nos em eleições, quando existe um processo político que o sustenta, o fazemos denunciando o caráter burguês da representação; socializando toda a informação a qual acedemos e que normalmente fica na “mesa pequena” [reunião de dirigentes] de quem tomam as decisões que nos afetam; mediando instâncias coletivas de elaboração e decisão que propiciam a maior apropriação possível do processo por parte dos “eleitores”; e defendendo a revocabilidade em assembleias e a rotação periódica dos “eleitos”. As formas expressam conteúdos, os meios antecipam fins.

[2] Em 06/11/2015, Cristina Fernandez de Kirchner, em uma de suas pouquíssimas aparições para apoiar o candidato do projeto [kirchnerista], disse: “Depois não venham com o que se vayan todos porque vamos ficar todos os que estamos”.

[3] O problema não é novo. Conhecemos essa atitude passional, esse convencimento dogmático de ser e ter “a verdade”: a esquerda – a partidária, a independente e a novíssima – costuma referir-se da mesma maneira (que os sciolistas) à quem não faz o que ela faz, nessa extensa e gótica tradição de injúrias e insultos que se remonta à polêmica entre bakunistas e marxistas durante a primeira internacional. Ontem foi “o esquerdismo, doença infantil do comunismo”; hoje seu nome é legião: “autonomismo”, “horizontalismo”, “assembleísmo”, “situacionismo”, “hollowaynismo”, “toninegrismo”…

[4] Mas, sendo sinceros, digamos que semelhante fragilidade ideológico-política não é tão surpreendente já que se nutre do anti-intelectualismo e no narcisismo próprios destas organizações. Se para Lenin sem teoria revolucionária não havia movimento revolucionário, aqui a coisa é inversa e à metade do caminho: só há movimento revolucionário, o verdadeiro é a prática, o resto é falatório. E qual é essa prática? O que eles fazem, sem dúvidas. E quem não o vê, foda-se. De nossa parte, nos limitamos em dizer que não há excisão possível entre fazer e pensar, senão que desconhecer a lógica e as tendências do sistema que se combate apenas fortalece as cadeias que se crê, a todo brio, combater.

[5] Horacio Gonzales decidiu encarnar esse papel em “Derrota e esperança”, uma série de capítulos nos quais conta ao coração popular o que ele deve sentir, o que ele deve temer, o que não deve esquecer, o que deve esperar… essa paradigmática intervenção pode ser lida, por exemplo, aqui.

[6] A modo de exemplo de essa blindagem às razões, analisemos os paradoxos que repetiam muitos dos sciolistas nos dias anteriores ao segundo turno. Aceitando que a recessão econômica está golpeando a porta faz um tempo e que o ajuste é iminente, nos instavam a votar em Scioli, porque com ele no poder e com a militância leal “ao projeto”, o ajuste será progressivo e serão cuidadas as “conquistas”. Por outro lado, com Macri, a coisa será sem anestesia. Com Macri será pior. E advertem, indo contra esse lugar comum de fama trotskista, que não é “quanto pior, melhor”, por isso “não é o mesmo” Scioli que Macri. Até os que se atrevem a aceitar que o problema é o capitalismo adicionam que com Scioli haverão melhores (menos piores que com Macri) condições para lutar por outra sociedade. A argumentação parece simples, consistente. Será por isso que lhes acelera o batimento cardíaco quando seu interlocutor ocasional não está de acordo? Mais ou menos, com melhores ou piores modos, diziam isso. Um argumento que amarrava a política à economia de uma forma direta. Leram bem. Sim, os convencidos de que essa última década era a mostra notória de que “a política” pode – e deve – controlar “a economia”, de que o Estado pode – e deve – frear e direcionar a anarquia do mercado em direção às mesas do consumo popular, agora nos queriam extirpar um voto a favor de Scioli (ou contra Macri) dizendo que com não tão más condições econômicas, a política será a melhor possível. Pequeno paradoxo. Sem mediações se passava de um determinismo politicista a um economicista. Mas tem mais. Com esse rosário de argumentos sobre a mesa, no entanto, aparece um segundo paradoxo, uma irrefreável aporia. Se aceitam o vai e vem da economia, não podem não dizer que o declive do ciclo econômico, o pior do ciclo, é antecedido pela alça do ciclo, o melhor do ciclo. (Assim também depois da queda – se não conseguimos fazer outra coisa –, a acumulação renascerá qual Fênix). Ou seja, momentos em que estavam dadas as melhores condições para construir outra sociedade “mais justa, igualitária, etc”… Quanto melhor, melhor. Mas, se isto é assim, e vínhamos do melhor, caberia perguntar-se, em que resultou isso? Em um mão a mão entre Macri e Scioli. Com o poder do Estado e as melhores condições objetivas, isto é o que puderam conseguir?, tão pouquinho como opção política “de outra sociedade”?… Frente a exposição destes paradoxos, o sciolista dava de ombros e passava a nos ignorar. Seu voto já estava decidido em outro lugar, longe das razões.

[7] Existe uma organização dos afetos que permanece como o impensado em qualquer análise seja de direita ou de esquerda: a família. Ali começa a se forjar a obediência e a submissão à autoridade. Pese a que a tradição de esquerda conta, por exemplo, com o texto onde Engels traça o vínculo entre familia, propriedade privada e Estado, não só não critica a organização familiar senão que em geral a defende, sendo que ali se cozinham paixões tristes que tantos estragos causam. Se nota nas relações que tem com Chavez e Bergoglio, por exemplo. Ou no que passou nas últimas semanas com Milagro Salas; esta última representa tanto o amor pela autoridade como pelo “sujo segredinho familiar”. Com este último nos referimos a que muitos poucos ignoram sua ação para-estatal e, por momentos, para-militar sobre os dissidentes, mas “tudo deve ficar em família”… ou serás um traidor como Perro Santillán.

Traduzido do espanhol por Primo Jonas para o Passa Palavra.

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