Um estudo da carreira de Sverdlóv revela que, na própria fundação do regime bolchevique, o poder no partido estava se acumulando nas mãos de seu chefe organizativo, e sugere convincentemente que a técnica de governar o partido e o Estado ditatorialmente por trás de uma fachada de democracia não começou com Stálin. Por William Eldridge Odom.
II
A formação de um governo após a tomada do poder mostrou-se tarefa nada fácil para os bolcheviques. O Sindicato dos Trabalhadores em Ferrovias ameaçou interromper as comunicações se seus anseios de inclusão de outros partidos socialistas não fossem atendidos. Para piorar, o Comitê Central, que não havia sido unânime quanto à tomada do poder, dividia-se agora quanto à questão da coalizão. Quando se tornou óbvio que Lênin não negociaria de boa fé com os demais partidos, [Lev Borísovich] Kámenev, o líder da facção bolchevique no Comitê Executivo Central do Congresso Pan-Russo dos Sovietes (VTsIK) (o mais alto órgão da estrutura soviética quando um congresso dos sovietes não estava em sessão), recusou-se a executar o programa de Lênin neste órgão. Lênin o acusou de quebra da disciplina partidária, e em resposta Kámenev demitiu-se do Comitê Central, seguido por [Grigory Yevsêievich] Zinóviev, [Alexêi Ivânovich] Rykov, [Nikolay Alexandrovich] Milyutin e [Vítor Pávlovich] Noguín, todos eles simpatizantes de Kámenev[1]. Lênin deu o posto no VTsIK a Sverdlóv. Assim, Sverdlóv, já chefe do aparato partidário, assumiu o mais alto posto no governo soviético.
Tal fato alterou a natureza das metas de Sverdlóv: como chefe organizativo de um partido conspiratório, sua meta tinha sido a destruição do regime existente, mas após a ascensão bolchevique ao poder ele se viu diante da tarefa da construção de uma nova máquina administrativa que pudesse executar os decretos governamentais. Sverdlóv entendem sua nova tarefa em termos leninistas como a criação de uma “ditadura do proletariado”. Se havia quem achasse tal conceito ambíguo, Sverdlóv não estava entre eles; para ele, tal como para Lênin, ele significava muito claramente a ditadura exercida pelo partido bolchevique.
Desde sua concepção, as metas do novo governo eram ambivalentes. A tarefa de destruição da velha ordem estava longe de estar completa quando os bolcheviques tomaram o poder, e outros partidos, que apoiaram a revolução, mas se opunham a um monopólio bolchevique do poder, cedo foram marcados para a destruição. O novo governo também deveria produzir, no vazio deixado pela derrota da oposição, um aparato executivo para governar. A primeira tarefa exigia os talentos de Sverdlóv como conspirador, e ao lidar com os demais partidos ele se mostrou muito habilidoso. Mas a segunda tarefa exigia uma sofisticação gerencial que sua experiência na liderança partidária não o havia ensinado, e cuja falta tentou compensar com sua capacidade hercúlea para detalhes administrativos. Vamos considerar primeiro seu papel no apoio a Lênin ao solapar aqueles que dividiram ou poderiam ter dividido o poder com os bolcheviques, e então discutir seu papel como chefe de governo.
Um dos primeiros e maiores problemas a confrontar o novo regime foi sua atitude frente à Assembleia Constituinte. Por todo o verão e o outono de 1917 os bolcheviques, com Sverdlóv na vanguarda, haviam agitado o entusiasmo por eleições sem demora para a assembleia. Apeasr de o Governo Provisório tê-las adiado continuamente, as eleições foram finalmente marcadas para o dia 12/25 de novembro, menos de três semanas depois da tomada do poder. Quase todos os grupos políticos na Rússia se comprometeram a apoiar a Assembleia Constituinte, que havia se tornado como que uma panaceia política; opor-se-lhe abertamente significava, portanto, levantar ressentimento e desconfiança em grande escala. Tendo apostado com sucesso seu destino nos resultados da revolta, os bolcheviques tinham pouco desejo de convocar um órgão que pudesse disputar o poder que haviam recém-conquistado. Bem cônscio acerca da ênfase que o partido dera à assembleia entre entre Fevereiro e Outubro (um assunto sobre o qual escrevera várias cartas a líderes provinciais), Sverdlóv liderou a oposição no Comitê Central que conseguiu derrotar a primeira sugestão de Lênin, de adiar as eleições[2]. Mas quando os socialistas-revolucionários (SRs) conseguiram a maioria dos mandatos, Sverdlóv devotou a totalidade de suas energias ao plano de Lênin de fazer chacota desta ideia tão querida.
Pouco depois das eleções, Lênin conseguiu lançar dúvidas em torno da validade da maioria SR. A facção esquerda do partido SR havia se alinhado no passado com os bolcheviques em algumas questões nos sovietes, e agora, influenciada por uma participação no governo, os assim chamados “SR de Esquerda” alinharam-se com os bolcheviques. Sverdlóv presidiu as reuniões realizadas para celebrar esta aliança, e com o influxo dos SR de Esquerda sua facção no VTsIK aumentou de 108 para 350 membros[3]. Tendo assim dividido o partido SR, Lênin publicou suas “Teses sobre a Assembleia Constituinte”, onde o destino planejado para a assembleia foi dito sem quaisquer rodeios. Ele queria que a Assembleia se reunisse, endossasse os sovietes como herdeiros naturais do poder político na Rússia, e fosse permanentemente suspensa; se a Assembleia não escolhesse tal rumo, enfrentaria “medidas revolucionárias”. A execução de tais medidas recaiu sobre Sverdlóv.
Ele cuidou de todos os preparativos e arranjos práticos para a assembleia[4]. Trabalhadores do partido foram postados nas fábricas próximas ao palácio de Táurida, onde a Assembleia se reuniria, prontos para liderar turbas pelas ruas; fuzileiros letões patrulhavam as ruas sob suas ordens, prontos para dispersar quaisquer manifestações em apoio à assembleia; foi declarada lei marcial, e unidades do exército foram mobilizadas para a luta nas ruas. O rigor do planejamento de Sverdlóv foi revelado na sessão de abertura da assembleia.
Edgar Sisson, uma testemunha estadunidense, relembra a excitação dos momentos iniciais[5]. [Serguêi Petróvich] Shvetsov, um SR, assumiu o papel de presidente sob os aplausos de pé dos SR e, simultaneamente, zombaria e gritaria dos bolcheviques. Sverdlóv chegou rapidamente à frente, empurrou Shvetsov para o lado e tocou uma campainha pedindo ordem. Tendo roubado a cena, Sverdlóv leu a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”. Os bolcheviques aplaudiram cada artigo e saudaram a conclusão cantando a Internacional, quando os SR se viram obrigados a fazer coro. Os bolcheviques não conseguiram eleger [Maria Alexândrovna] Spiridônova, uma SR de Esquerda, como presidente, mas quando [Víktor Mikháilovich] Chernóv, líder dos SR, começou seu discurso inaugural, os delegados bolcheviques imitaram Lênin, que, de sua cadeira à mesa, fingia dormir durante o discurso. Mais tarde, quando a resolução bolchevique que exigia a transferência de todo o poder para os sovietes não foi aprovada, os bolcheviques se retiraram, seguidos com hesitação pelos SR de Esquerda. No dia seguinte, guardas se recusaram a permitir a entrada dos delegados no salão, e a Assembleia Constituinte nunca mais se reuniu.
O cinismo político do principal “organizador” bolchevique revelou-se com clareza quando se dirigiu ao Terceiro Congresso dos sovietes poucos dias depois. Ele definiu, candidamente, a tarefa anteposta aos sovietes como a de “construção para uma vida futura e de criação do poder russo”, adicionando que uma ditadura dos “elementos laboriosos” desempenharia tal missão[6]. Voltou-se então a culpar a finada assembleia por haver traído seu propósito inicial:
Lembrem-se, camaradas, de que o poder soviético, que no passado proclamou todo tipo de leis importantes, sempre estipulou que seria efetivo até a aprovação pela Assembleia Constituinte. Foi então que as massas laboriosas acreditaram e esperaram que a Assembleia Constituinte refletisse seus interesses e visões. Agora, depois que a maioria dos SR de Direita tentou usar a Assembleia Constituinte para fins contrarrevolucionários, as massas laboriosas sabem e querem saber apenas de uma verdadeira assembleia constituinte do trabalho, quer dizer, nossos sovietes, os órgãos supremos do proletariado revolucionário, e do Conselho de Comissários do Povo[7].
A dispersão da Assembleia Constituinte foi apenas a primeira de uma série de farsas que Sverdlóv encenaria para Lênin.
Ostensivamente, todo o poder agora havia sido transferido para o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, como Lênin demandara. Apesar de os bolcheviques encorajarem a crença na supremacia do congresso, sua autoridade era ilusória desde o início. O VTsIK dava a entender que era o órgão legislativo e executivo supremo do novo Estado quando o Congresso dos Sovietes não estava em sessão, mas, ao mesmo tempo, embora reconhecesse sua responsabilidade perante o VTsIK, o Conselho de Comissários do Povo (Sovnarkom) reclamava para si o direito de publicar decretos se assim o considerasse necessário. Na verdade, a dualidade de poderes que Lênin havia criticado tão impiedosamente nos dias do Governo Provisório foi, com efeito, preservada por estes dois órgãos. Enquanto outrs partidos participaram no governo, havia uma possibilidade bastante concreta de conflito entre o VTsIK e o Sovnarkom. Na esperança de evitá-lo, Sverdlóv tomou para si a tarefa de subordinar o VTsIK ao Sovnarkom.
Um exame do tamanho e estrutura do VTsIK revela que Sverdlóv retinha uma posição forte neste órgão, o que lhe permitia manipulá-lo e fazê-lo aceitar a política bolchevique. Como já mencionado, a introdução dos SR de Esquerda no VTsIK mais que dobrou seu tamanho, tornando-o bastante difícil de manejar enquanto órgão executivo. Não surpreende que o presidium do VTsIK tenha se apropriado do poder decisório em nome do comiitê inteiro, podendo aprovar leis mediante votação unânime[8]. Na primeira metade de 1918, ele diminuiu de 19 para 10 membros, metade do total de membros necessários para atingir quórum[9] – fato ainda mais significante à vista da maioria absoluta que os bolcheviques mantiveram em cada reunião do VTsIK em que os SR de Esquerda participaram. Teoricamente, ao menos, a facção bolchevique poderia ter garantido quórum no presidium a qualquer momento e exercido total poder no VTsIK sem a presença de um só SR de Esquerda. O fato de este ter sido muito provavelmente o caso é sugerido pelo comentário de Sverdlóv em junho de 1918, de que o trabalho no VTsIK foi realmente executado por oito pessoas[10].
A hegemonia bolchevique no centro, todavia, não encontrava paralelo no desenvolvimento nas províncias, onde o poder seria finalmente conquistado mediante a vitória na guerra civil. Desde o início Sverdlóv maquinou para garantir a subordinação dos sovietes locais. Uma breve discussão de três meios empregues ilustrarão sua desenvoltura e argúcia.
O primeiro foi o estabelecimento do “Inogorodnyy Otdel”[11], um departamento temporário cuja missão era manter conexões com as capitais provinciais. Pouco depois da insurreição ele começou a despachar centenas de “emissários” para as províncias, muitos deles instruídos pessoalmente por Sverdlóv. Ele explicou ao Terceiro Congresso dos Sovietes que a rede de telefones e telégrafos havia sido tornada inconfiável pela “sabotagem e pelos contra-revolucionários”[12]. O sistema de mensageiros, disse ele, superou tais dificuldades em certa medida, e forneceu aos sovietes locais informações que os guiaram em seu desenvolvimento. Tal método de comunicação é, decerto, reminiscente daquele empregue antes da tomada do poder para controlar as organizações partidárias locais.
A segunda medida foi o rascunho de uma constituição para regularizar o sistema dos sovietes. Tal trabalho começou no Comissariado de Justiça, embora sem sucesso, e no começo de abril o assunto foi entregue a Sverdlóv e seu VTsIK. Enquanto os aspectos teóricos do rascunho constitucional foram debatidos no comitê, parece que a maior parte do trabalho de dar-lhe forma recaiu sobre Sverdlóv. Trótski relembra:
Foi Sverdlóv quem incorporou naquela primeira Constituição Soviética não apenas os princípios teóricos do leninismo, mas a experiência prática e administrativa inicial em assuntos como a inter-relação de órgãos centrais e locais do governo soviético, os Comitês dos Pobres e sovietes nas vilas, as fronteiras e funções das repúblicas constituintes e regiões autônomas, e numerosos outros assuntos com que nenhum acúmulo de teorização poderia lidar completamente[13].
Um dos relatórios de Sverdlóv ao VTsIK sobre as formas prescritas e procedimentos organizativos para sovietes de vilas demonstra o que se queria dizer, na prática, com a incorporação na constituição de princípios leninistas. Ele insistiu em que não fosse exigida de organizações locais a adesão a uma forma definida, pois isto poderia provocar resistência à adoção da constituição. Suas razões eram de que a organização dos sovietes variava de lugar a lugar; alguns chamavam seu órgão executivo de comitê central, enquanto outros referiam-se a ele como presidium ou birô. Em segundo lugar, Sverdlóv não queria legitimar todos os sovietes sem qualquer critério simplesmente porque haviam aderido a um arranjo organizativo comum. Em áreas onde os bolcheviques não controlavam os sovietes, ele previa que o controle executivo total deveria, ao invés disto, ser assumido pelos Comitês dos Pobres locais, liderados pelos bolcheviques. Era possível, ele sugeriu, que tais comitês podessem substituir os sovietes onde estes últimos fossem dominados por elementos ligados aos kulaks[14]. Estava implícita nesta observação a presunção de que apenas sovietes bolcheviques podiam, de fato, ser legítimos.
A terceira medida diz respeito aos próprios Comitês dos Pobres, desenhados para fragmentar elementos antibolcheviques nas vilas. Sverdlóv apresentou a resolução que estabeleceu tais comitês na primavera, mas apenas em junho ela recebeu a aprovação do VTsIK. Ele disse a tal órgão:
Apenas… se formos capazes de separar a vila em dois campos irreconciliavelmente hostis, se formos capazes de acender lá uma guerra civil tal como se deu nas cidades… somente então seremos capazes de dizer que fizemos nas vilas o que fomos capazes de fazer nas cidades[15]
– quer dizer, entregá-las nas mãos dos bolcheviques. A partir destes argumentos conceituais ele se voltou para uma linha de argumentação mais persuasiva:
Todos entende quão vivamente a questão alimentar se apresenta diante de nós nos tempos atuais… A não ser que consigamos contabilizar os cereais diretamente nas vilas, a não ser que possamos receber grão diretamente das vilas, nossa situação, então, se tornará muito, mas muito pior mesmo[16].
Enquanto Sverdlóv arengava com o VTsIK, Lênin, aparentemente, assegurava em privado o relutante consentimento dos SR de Esquerda ao apoio aos comitês. Em 10 de junho Sverdlóv telegrafou a Lênin dizendo que “os SR de Esquerda insistem fortemente na necessidade de adiar… a discussão do decreto sobre os pobres”. Lênin respondeu impacientemente, “Foi prometido… que ele estaria na imprensa na quarta-feira. Decida você mesmo… da minha parte, a partir de agora perdi completamente a confiança nos SR de Esquerda”[17]. Os SR de Esquerda aquiesceram, e o decreto foi publicado em 14 de junho. A aliança entre os dois partidos, sem surpresa alguma, havia se tornado cada vez mais instável por numerosas razões, e uma das principais delas era o modo com que Sverdlóv passava a perna nos SRs de Esquerda nos sovietes. O Quinto Convresso dos Sovietes em julho pôs fim à parceria de um modo adequado à tradição de extremismo pela qual os SRs de Esquerda eram tão bem conhecidos.
No congresso, eles se opuseram histericamente aos bolcheviques em três pontos: o uso da pena de morte, os Comitês dos Pobres e o tratado de paz com a Alemanha. Um alarido emocionado foi talvez a única opção que lhes restou, pois Sverdlóv já havia minado suas posições no congresso ao distribuir uma porção desproporcional dos assentos a representantes dos Comitês dos Pobres[18]. No segundo dia do congresso, Sverdlóv antecipou os pontos em discussão ao censurar os SRs de Esquerda sobre suas objeções à pena de morte enquanto membros deste mesmo partido na Cheka levavam a cabo dúzias de execuções[19]. O resultado foi uma balbúrdia: [Boris Davídovich] Kamkóv e Spiridônova, SRs de Esquerda, responderam num acesso de cólera; Trótski foi calado a gritos; Sverdlóv tentou restaurar a ordem com sua campainha, sem sucesso. Por fim, Lênin veio à frente, riu de pé até que o tumulto sossegou, e então respondeu aos SRs de Esquerda ponto a ponto[20]. As consequências são muito bem conhecidas. Os SRs de Esquerda recorreram à violência. Um de seus membros assassinou o embaixador alemão, [Wilhelm Graf von] Mirbach[-Harff], numa tentativa de destruir o tratado de paz, e uma revolta precipitada e improvisada em Moscou foi rapidamente sufocada pelos bolcheviques. O congresso expulsou os SRs de Esquerda, evento que marcou o início do governo por um só partido. De certo modo, também marcou o fim do papel manipulador de Sverdlóv no VTsIK, pois a partir de então os votos naquele órgão seriam simplesmente um assunto de disciplina partidária bolchevique.
Pouco depois do desbaratamento dos SR de Esquerda, Sverdlóv chamou o VTsIK a demonstrar sua unanimidade disciplinada por meio do apoio ao assassinato do czar Nicolau II e sua família nos Urais. Ultrapassa o escopo deste artigo a investigação aprofundada do trágico fim da dinastia Romanov, mas a cumplicidade de Sverdlóv nos assassinatos, inegável, é indicativa da crescente arbitrariedade que ele exibia ao executar as ordens de Lênin. Apesar do caráter opressivo do regime czarista, os czares, pessoalmente, eram brindados com uma reverência profunda por parte da maioria dos camponeses, que via de regra dirigiam suas insatisfações contra a burocracia ao invés de voltá-las contra a monarquia. Era natural que os bolcheviques, que estavam longe de estar seguros no controle das vilas, estivessem relutantes em carregar o ônus de executar o czar. Trótski diz ter preferido um plano envolvendo um julgamento público com ampla publicidade, mas eventualmente o assunto foi resolvido sem consulta entre os membros da hierarquia do partido.
Na noite de 16/17 de julho, um membro da Cheka chamado [Yákov Mikháilovich] Yurovsky, com ajuda de fuzileiros letões, assassinaram o czar e sua família perto de Yekaterinburg. No dia seguinte, Sverdlóv anunciou ao VTsIK em Moscou que o czar somente havia sido executado por ordem do soviete dos Urais devido ao perigo iminente de sua captura por forças tchecas em avanço. A seu pedido, o VTsIK aprovou a ação. Um historiador do evento, N. A. Sokolov, argumenta que havia mais de uma semana desde que, no começo de julho, Goloshchyokin (o velho camarada de Sverdlóv já mencionado anteriormente) vivia no apartamento de Sverdlóv em Moscou, e então viajou aos Urais, onde chegou em 14 de julho[21] Ele persuadiu o soviete dos Urais a aprovar uma resolução exigindo a execução do czar se se tornasse necessária para impedi-lo de cair nas mãos das forças tchecas. Sokolov também cita o telegrama endereçado a Sverdlóv em que a morte da família inteira foi relatada – informação que Sverdlóv optou por reter ao invés de repassar ao VTsIK, sabedor de que o assassinato de crianças inocentes dificilmente aumentaria a popularidade do regime. Pouco tempo depois dos assassinatos, quando Trótski exigiu saber quem havia sido responsável por ele, Sverdlóv lhe disse: “Decidimo-lo aqui. Ilích acreditava que não deveríamos deixar aos Brancos um estandarte em torno do qual se reagrupar”[22].
Uma decisão independente tomada por Lênin e Sverdlóv dificilmente poderia ter supreendido Trótski, apesar de suas alegações em contrário, pois seu próprio relato dos eventos em 1918 deixa explícitas as tendências autocráticas do governo. Apenas três assinaturas, relata, eram reconhecidas por funcionários subalternos em decretos e ordens: as de Lênin, Tróski e Sverdlóv. Ele também admite que, por ter estado fora de Moscou a maior parte do tempo, a tarefa de tocar as coisas por lá recaiu sobre Sverdlóv[23]. Não apenas Trótski entendeu o verdadeiro estado das coisas, como aparentemente o aprovou e às vezes considerou-o divertido – ou ao menos assim o parece, a julgar por uma das estórias que relata. Era piada corrente entre ele e Lênin que Sverdlóv às vezes antecipava as instruções de Lênin. Quando Lênin o chamava para pedir uma ação em particular, Sverdlóv frequentemente respondia que ela já havia sido realizada. A resposta logo se tornou simplesmente “já”. Lênin e Trótski riam e comentavam: “o caso deve estar provavelmente ‘já’ com Sverdlóv!”[24]
No outono de 1918, enquanto o jovem regime mergulhou mais profundamente na guerra civil, uma de suas principais necessidades era a de gestão eficiente de seus recursos e organização racional no centro; tinha cada vez menos necessidade dos talentos de Sverdlóv para a conspiração. A tendência geral de suas políticas gerenciais a esta altura lançam graves dúvidas sobre as alegações bolcheviques de que ele era um organizador talentoso.
O aparato partidário passou para segundo plano em sua escala de prioridades. No Sétimo Congresso do Partido em março de 1918, Sverdlóv tentou lançar um programa de conferências ao nível das oblast [províncias], a serem realizadas a cada três meses, com o objetivo de trazer ordem às fileiras inchadas do partido[25]. Nada deste plano foi posto em prática, provavelmente porque o assunto principal do congresso, o tratado com a Alemanha, ofuscou enormemente a resolução de Sverdlóv. O tamanho da equipe do secretariado permanecia o mesmo de 1917. Sverdlóv dava-lhe cada vez menos atenção (sua esposa relata que suas visitas ao escritório do secretariado caíram até uma ou duas vezes por semana)[26], apesar de ele manter a designação de quadros como sua responsabilidade pessoal. Era habitual chamá-lo no seu escritório no Kremlin para transferir mesmo um único trabalhador do partido[27]. Numa carta convocatória do Oitavo Congresso do Partido em 1919 ele reclamou do paroquialismo nas fileiras do partido, mas não focou em plano algum que melhorasse seus procedimentos organizativos[28]. No Sétimo Congresso do Partido ele destacou que o trabalho nos dovietes era a primeira tarefa diante do partido, e, à medida que um tal trabalho aumentava, os sovietes pareciam inchar o partido, que se encontrava relativamente negligenciado enquanto organização separada.
A concentração da atenção sobre os sovietes nem sempre levou aos melhores resoltados. Apesar de o tamanho do aparato central haver crescido, ou bem Sverdlóv se refreou de fazer, ou bem não foi capaz de fazer uma divisão de trabalho e de responsabilidade racional e efetiva. Ao invés disto, como homem de enorme energia, ele simplesmente tomou a carga crescente para si próprio. No Oitavo Congresso do Partido, [Valerian Obolenski, vulgo Nikolai] Ossínsky reclamou acerca do fracasso de Sverdlóv em estabelecer procedimentos regulares: “Os camaradas Lênin e Sverdlóv decidem sobre questões correntes conversando entre si ou com camaradas individuais encarregados de tal ou qual ramo do trabalho soviético”[29]. Pouco depois da morte de Sverdlóv, Lênin citou algumas cifras que, apesar de pretenderem uma reflexão positiva sobre Sverdlóv, revelaram de modo chocante a extensão a que tais práticas haviam chegado[30]. Durante os três meses anteriores à sua morte, Sverdlóv recebeu e processou nada menos que 4.860 itens de trabalho por escrito: 1.486 em dezembro de 1918, 1.537 em janeiro de 1919 e 1.840 em fevereiro de 1919. Em novembro ele havia se reunído e conversado com 490 secretários partidários provinciais. Não espanta que a morte de Sverdlóv nas vésperas do Oitavo Congresso do Partido tenha sido um choque para os líderes bolcheviques, e tenha colocado o problema da organização diretamente na agenda do encontro. Seu posto no VTsIK foi dado a Kálinin; suas responsabilidades partidárias foram divididas entre o Birô Organizativo e seus cinco membros, e um secretário do partido com cinco assistentes[31]. Lênin foi obrigado a dizer que “tivemos de tentar substituir sua atividade pelo trabalho de um collegium“[32].
Pode-se afirmar, em conclusão, que Sverdlóv desempenhou papel considerável na consolidação do governo de um Estado unipartidário na Rússia soviética.. Já em 1917 ele ajudara Lênin a superar e derrotar nos organismos centrais do partido o princípio da “liderança coletiva”, que em 1918 foi ainda mais desrespeitado. Este arranjo autocrático tinha suas vantagens: permitiu a Lênin fazer mudanças táticas abruptas em suas políticas sem muito medo do contraditório. Mas também levou-o a ignorar o problema premente do desenho de um aparato estatal capaz de governar um país – cuja necessidade ele tendeu primeiramente a minimizar por razões ideológicas. A mudança da posição internacional da Rússia soviética em 1919 foi outro fator que o levou a reconsiderar sua atitude. Outro foi a morte de Sverdlóv. De muitos modos o controle de Sverdlóv sobre todas as funções organizativas do partido antecipa a posição conseguida por Stálin em anos posteriores. Pode-se mesmo sugerir que Stálin encontrou inspiração em muitas das técnicas de operação de Sverdlóv. Por exemplo, Sverdlóv foi o primeiro a enfatizar as organizações partidárias ao nível de oblast [província] como o escalão imediatamente subordinado ao Comitê Central, e foi entre os líderes de oblast que Stálin construiu sua força no aparato partidário. Um estudo da carreira de Sverdlóv revela que, na própria fundação do regime bolchevique, o poder no partido estava se acumulando nas mãos de seu chefe organizativo, e sugere convincentemente que a técnica de governar o partido e o Estado ditatorialmente por trás de uma fachada de democracia não começou com Stálin. Pelo contrário, parece ter sido um fator essencial na realização da tomada de poder em 1917, e parece ter se tornado um princípio norteador na construção do sistema soviético em 1918.
Este artigo está dividido em três partes:
Introdução
Parte I
Parte II
Notas
[1] Protokoly Tsentral’nogo Komiteta RSDRP(b), Avgusta 1917–Fevralya 1918 [Protocolos do Comitê Central do POSDR(b), agosto 1917–fevereiro 1918], Moscow, 1959 (citado daqui em diante como Protokoly TsK [Protocolos do CC]), pp. 135-6.
[2] L. D. Trótski, Lenin, p. 91.
[3] Protokoly Zasedaniya Vserossiyskogo Tsentral’nogo Ispolnitel’nogo Komiteta Sovetov, II Sozyva (stenographic report) [Protocolos do Encontro do Comitê Executivo Central Pan-Russo dos Sovietes, II Convocatória (relatório estenográfico)], Moscow, 1918, p. 20.
[4] Trótski, Lenin, p. 122.
[5] Edgar Sisson, One Hundred Red Days, New Haven, 1931, pp. 243-4.
[6] Tretiy Vserossiyskiy S’yezd Sovetov Rabochikh, Soldatskikh, i Krest’yanskikh Deputatov [Terceiro Congresso Pan-Russo de Sovietes de Deputados de Operários, Soldados e Camponeses], Petrograd, 1918, p. 19.
[7] Ibid., p. 85.
[8] K. G. Fyódorov, VTsIK v pervyye gody sovetskoy vlasti, 1917-1920 gg. [O Comitê Executivo Central Pan-Russo (VtsIK) nos Primeiros Dias do Poder Soviético, 1917-1920], Moscow, 1957, p. 60.
[9] Ibid., p. 59.
[10] Ibid.
[11] Tretiy S’yezd Sovetov [Terceiro Congresso dos Sovietes], p. 19.
[12] L. D. Trótski, Stalin, p. 344.
[13] Ya. M. Sverdlóv, Izbrannyye proizvedeniya [Obras escolhidas], Moscow, 1959, II, pp. 179
[14] Ibid., p. 213.
[15] Ibid.
[16] Leninskiy sbornik [Miscelânea leninista], XVIII, Leningrad, 1931, pp. 114-15.
[17] William H. Chamberlain, The Russian Revolution, 1917-1921, New York, 1935, II, pp. 50-1.
[18] Pyatyy Vserossiyskiy S’yezd Sovetov Rabochikh, Soldatskikh, i Krest’yanskikh Deputatov [Quinto Congresso Pan-Russo de Sovietes de Deputados de Operários, Soldados e Camponeses], Moscow, 1918, p. 49.
[19] R. H. Bruce Lockhart, British Agent, London, 1933, p. 295.
[20] Nikolai A. Sokolóv, Ubiystvo tsarskay sem’i [O assassinato da família real], Berlin, 1925, pp. 245-9.
[21] L. D. Trótski, Diary in Exile, 1935, trans. Elena Zarudnaya, Cambridge, Mass., 1958, pp. 80-1.
[22] Trótski, Stalin, pp. 242, 247.
[23] Trótski, Lenin, p. 153.
[24] Sed’moy S’yezd RKP [Sétimo Congresso do Partido Comunista Russo], pp. 7-12.
[25] K. T. Sverdlova, Iakov Mikhaylovich Sverdlóv, Moscow, 1960, p. 364.
[26] L. D. Trótski, Kak vooruzhilas’ revolyutsiya [Como a Revolução Pegou em Armas], Moscow, 1924, II, p. 237. [N. dos T.: trata-se do original russo dos famosos Escritos Militares de Trótski.]
[27] Sverdlóv, op. cit., III, p. 156.
[28] E. H. Carr, The Bolshevik Revolution, 1917-1923, London, 1950, I, p. 193.
[29] V. I. Lênin and I. V. Stálin, O Yakov Mikhayloviche Sverdlove [Sobre Yákov Mikháilovich Sverdlóv], Moscow, 1937, p. 34.
[30] Carr, op. cit., p. 194.
[31] Trótski, Stalin, p. 242.
Traduzido e revisado pelo Passa Palavra a partir do original publicado na The Slavonic and East European Review, vol. 44, nº 103 (jul. 1966), pp. 421-443, e disponível neste link. Seu autor, William Eldridge Odom (1932-2008), foi um general de três estrelas do Exército estadunidense (equivalente ao general-de-divisão no Exército brasileiro), e diretor da Agência Nacional de Segurança no governo Reagan. Sua carreira de 31 anos na inteligência militar concentrou-se basicamente em assuntos relativos à URSS. Depois de aposentado, tornou-se professor universitário em Yale e especialista em política externa no Hudson Institute; ficou famoso por suas críticas abertas à Guerra no Iraque e às medidas do Patriot Act. Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.
O texto deixa a vontade de ler os próprios textos de Sverdlov. Várias das críticas colocadas pelo militar dos estados unidos certamente não serão compartilhadas por militantes classistas, como a crítica de tentativa de derrotar um estado policlassista e construção do poder por quem produz a vida. No mais o texto pode trazer importantes reflexões para além das tentativas do autor de tornar Sverdlov o Stalin que morreu cedo de mais para ser “Stalin”