Por v victor

Esse Achado & Perdido faz parte do dossiê “Causos de trabalho”: uma seleção, feita pelo Passa Palavra, de threads relatando o cotidiano e curiosidades de diferentes trabalhadores, todas publicadas no Twitter em janeiro de 2019.

O coordenador pedagógico relata como é o trabalho em uma escola pública. A thread original tinha 60 pontos no dia 11/01/2019:

1. Nos quatro anos que eu trabalhei no colégio tiveram cinco ameaças de bomba, todas elas foram em finais de campeonato de futebol ou em amistosos da seleção.

2. Cansei de pegar aluno com arma branca dentro da mochila, minha gaveta era cheia de bisturis e facas que eles levavam ou pra se defender ou pra botar medo em alguém. Detalhe: bisturi não era estilete.

3. Época de matrícula é a pior época do ano. Alguns pais montam barracas na porta do colégio pra garantir a vaga e nunca tem o suficiente. Cansei de ver diretor ou professor matricular aluno filho de algum conhecido no lugar de pessoas que dormiram na fila.

4. Uma época o diretor do colégio se candidatou a vereador. Resultado: encheu uma sala de aula que cabiam 35 alunos com mais de 50. No fim das contas ele não foi eleito e tivemos o maior índice de reprovação da história do colégio.

5. Me considero uma pessoa fria, mas no dia que uma mãe levou um queijo que ela mesmo fez na casa dela em sinal de agradecimento eu fiquei meia hora trancado no banheiro chorando.

6. A quantidade de falta de professores é absurda. Cansei de entrar em sala pra substituir professor que não apareceu. Dei aula de inglês a física, vejam só.

7. O que mais me frustrava era professor que simplesmente sumia e não passava as notas das turmas, e minutos antes do sistema fechar eu era obrigado a lançar notas aleatórias no boletim dos alunos pra eles passarem de ano. Tem muito aluno que passou com 8 em matemática sem merecer.

8. Tem muito professor bom no ensino público que não merece ganhar o salário que ganha, mas quase na mesma proporção também tem MUITO professor incompetente que não merece ganhar o que ganha.

9. Alunos de 13/15 anos transando no banheiro antes, depois e até durante as aulas é uma rotina e nem me espantava mais.

10. Aula de estágio na faculdade é uma piada, não existe curso no mundo que vai te preparar pra realidade de um colégio não importa se ele é o melhor ou pior da cidade.

11. O colégio ficava no centro antigo de Aparecida, que ironicamente é também a periferia. Só tinha de lazer uma praça e todo dia antes de começar a aula alguém tinha que ir lá mandar os alunos pra sala.

12. Pra conter a falta de vagas e o governo não precisar abrir novos colégios eram criadas extensões (mesmo colégio, mas em outros prédios alugados). Daí um belo dia você tá cuidando de 15 turmas e no outro tá cuidando de 30.

13. PASMEM! O colégio recebia 42 centavos por aluno/dia pra fazer a merenda. Eu admirava a capacidade das tias da cozinha em se virar com esses trocados pra alimentar mais de 300 meninos em três períodos.

14. Até hoje quando eu vejo caso de políticos que roubam/desviam dinheiro da merenda eu passo mal de raiva. Imagine você sobrevivendo com menos de 50 centavos por dia pra se alimentar?

15. A dificuldade de separar o público do privado era absurda. Teve um professor que literalmente morou no colégio por vários meses.

16. Existem dois tipos de pais: aqueles que os filhos não são culpados de nada e aqueles que os filhos são culpados de tudo, não sei qual era pior de lidar.

17. 80% dos profissionais são contratos [terceirizados] (pro governo não gastar com concursados etc.) e quando troca de gestão, de quatro em quatro anos, tem um expurgo e o colégio fica praticamente sem funcionários, inclusive tá acontecendo isso agora.

18. O colégio era o único da cidade que acolhia alunos com algum tipo de deficiência. Tínhamos os profissionais de apoio que acompanhavam no dia a dia dos alunos. Achava isso incrível.

19. Nunca, em toda minha vida, vi algum professor sequer comentar sobre marxismo ou algo do tipo; pelo contrário, a maioria ou era de direita ou simplesmente alheio à política. Se você acredita em doutrinação da esquerda nos colégios você tá delirando.

20. A maior dificuldade que eu enfrentava com professores, além dos prazos de entrega, era o fato deles usarem celular na sala de aula. Sério, era pior que criança pra lidar com isso.

21. A biblioteca do colégio era sensacional e, apesar da bagunça, tinha ótimas coleções de livros. Porém a coordenação usava o espaço pra colocar de castigo os alunos que precisavam. Acabava que os alunos associavam o lugar com a punição e raramente iam lá pra aproveitar.

22. Um colégio público vive de contrapartidas, quando um grupo de teatro por exemplo queria divulgar algo para os alunos a gente pedia algo em troca, podia ser uma resma de papel ou algo do tipo. Achava isso um absurdo, mas depois entendi que é a única forma de conseguir algo.

23. Tínhamos uma sala de informática e um laboratório de ciências com uma estrutura muito legal: durou seis meses porque não tinha quem desse manutenção. Uma vez contei: dos 30 computadores somente 5 funcionavam.

24. Fui contratado com 20 anos na época e logo nos primeiros dias tive que chamar a atenção de uma professora que tinha 20 anos só de profissão. Foi horrível, mas depois me acostumei.

25. Tínhamos um aluno que tinha uma doença degenerativa que ia acabando com os movimentos dele. Era triste acompanhar o menino perdendo aos poucos a mobilidade. Fiquei sabendo que ele se formou ano passado, mas já não move os membros inferiores e superiores.

26. Esse mesmo aluno usava uma cadeira de rodas elétrica. Ela SEMPRE dava problema e a gente fazia uma vaquinha pra mandar arrumar. Todo salário eu já separava o dinheiro do mês pra essa ajuda de tão recorrente que era.

27. E apesar de tudo o moleque era MUITO esperto e mesmo só se movendo por causa da cadeira elétrica ele dava um jeito de ir parar lá na pracinha pra matar aula e ver as mocinhas.

28. Em um passeio que o colégio fez, não lembro o que era, esqueceram um aluno no local e advinha quem teve que pegar o próprio carro e correr lá no Oscar Niemayer pra procurar o menino? Eu mesmo.

29. Na época eu usava alargadores e os alunos nunca tinham visto isso na vida, de tanto eles apertarem e puxarem eu acabei tirando, foi pior porque ficou os buracos.

30. Nome estranho não faltava, mas nada supera os três irmãos: Lady Day, Bill Clinton e Michael Jackson. Se eles sofriam bullying? Imagina.

31. Alguns professores eram tão despreparados que simplesmente não sabiam usar um computador. Parece piada, mas é verdade: tinha um professor que eu mesmo digitava as provas dele porque ele não sabia usar o Word, ficava com pena e puto da vida.

32. Esse mesmo professor que não sabia usar computador era o que mais me enrolava pra passar as notas e quando passava era tudo anotado numa folha A4. Mais de 500 nomes e notas escritos à mão…

33. Um dos alunos especiais que a gente acompanhava era o Hélder, toda sexta-feira ele aparecia na nossa sala como quem não queria nada só pra esperar a hora do nosso lanche.

34. Uma vez durante o período de matrícula uma mãe putaça (porque não tinha vaga) pediu pra falar com o diretor. Minutos depois ela acertou o cara com um celular na cabeça e ele teve que ir pro hospital dar pontos.

35. As salas não tinham ar condicionado quando muito um ventilador de teto. Em épocas de calor (90% do tempo) era desumano ficar dentro daqueles fornos e era comum aluno que desmaiava.

36. Falando em desmaio, tentávamos servir o lanche no máximo na segunda aula porque tinha muitos alunos que não almoçavam e dependiam do lanche e se atrasasse eles passavam mal.

37. Época de seleção de livro didático as editoras enchiam a coordenação de presentinhos, canetas, bloquinhos, artigos de papelaria em geral. Nunca participei da seleção do material didático, mas nunca deixei que eles soubessem disso.

38. Não que seja novidade, mas as pessoas que me tratavam melhor no colégio eram as tias da limpeza e da cozinha. Aprendi mais com elas que com meus superiores.

39. Época de prova era uma desgraça, as impressoras eram antigas e SEMPRE travavam. Daí eu ficava lá rodando 500 provas no mimeógrafo com dor no braço e com cheiro de álcool.

40. Tinha um garoto que toda vez ia pra coordenação porque estava desenhando e não copiava a matéria. Um dia eu falei que ele desenhava demais e que se concentrasse em desenhar em casa com tempo e calma, e não na aula, assim iria desenhar melhor ainda. Deu certo e o moleque realmente tinha talento!

41. Na matrícula no sistema colocávamos se o aluno recebia Bolsa Família pra efetivar o pagamento de acordo com a frequência. Muitos pais só mandavam os filhos pra estudar pra receber o dinheiro. Agora você pense a importância do programa pra manter o aluno estudando.

42. Algumas famílias em momentos de desemprego se mantinham com o dinheiro da bolsa [família] e a frequência do aluno nas aulas é a única contrapartida exigida pelo programa. Se você acha isso assistencialismo você tá enganado demais.

43. A evasão escolar diminui drasticamente depois do Bolsa Escola. Posso afirmar com propriedade que nesse quesito o sistema funcionou demais.

44. Quando tínhamos problemas de disciplina com algum aluno e os pais não compareciam às reuniões, ligávamos ameaçando cortar o benefício. Obviamente não tínhamos poder pra isso, mas no mesmo dia os pais apareciam lá.

45. Teve um programa MUITO legal de uma juíza da cidade que chamava “pai presente”. Consistia da gente mandar todos os dados dos alunos que não tinham os pais na carteira da identidade – às vezes só aparece o nome da mãe – pra juíza ir atrás cobrar as pensões.

46. O número de filhos que são criados só pelas mães ou pelos avós me assustou demais quando fiz esse levantamento, homem é um bicho escroto mesmo.

47. Nosso colégio acolhia dois estudantes que estavam sob medida de segurança. O juizado de menores levava e buscava os alunos na porta da escola.

48. Uma coordenadora me avisou pra nunca bater de frente com um deles, que era só “deixar passar” caso eles fizessem algo, mas por incrível que pareça eles nunca foram para a coordenação.

49. A única diversão que o colégio oferecia de fato era a festa junina; a feira de ciências era o evento do ano e eles esperavam ansiosos pra isso.

50. Na quadrilha [junina] vendíamos ingresso por 5$ só pra fazermos algum caixa pra manutenção do colégio e mesmo assim tínhamos que deixar passar um monte de aluno que não tinha condições.

51. Sempre que alguém me cumprimenta na rua e me chama de professor ainda fico desconcertado. Sai do colégio tem um ano e quase não entrava nas salas e ainda tem aluno que se lembra de mim.

52. Outro evento que parava o colégio era o InterClasses. No final tinha uma partida entre alunos e professores. Eu nunca joguei porque sou horrível em esportes, mas do tempo que eu fiquei lá o placar geral estava 4×1 pra molecada.

53. Cuidem bem dos seus diplomas, pois a maioria some e dá um trampo do caralho pra tia da secretaria fazer outro, não é só ir lá e imprimir, tem todo um processo absurdo.

54. Já teve caso de um aluno que estudou durante UM ANO INTEIRO na turma abaixo da que ele realmente pertencia. Ele nunca falou nada, nem os professores perceberam, foram notar no fim do ano pra passar as notas. No fim das contas ficou por isso mesmo, fiquei desacreditado.

55. Esse aluno que estudou um ano inteiro na sala errada tinha vindo de outro estado, daí o sistema de cadastro muda, mas mesmo assim ainda fico encabulado com essa história.

56. Assaltaram o colégio três vezes, e olha que ele ficava numa área bem movimentada da cidade. Nas três vezes levaram os utensílios da cozinha e o botijão de gás. Tivemos que comprar outro com vaquinha já que era urgente e a Secretaria da Educação ia demorar a liberar.

57. Aliás, vaquinha, rifa, eventos beneficentes: é basicamente disso que sobrevive um colégio público no fim das contas. As verbas são pro básico do básico.

58. Uma ideia boa demais foi quando os pais dos alunos matriculados nas extensões que eu falei acima eram convocados pra participar da reforma dos prédios, que eram alugados pelo governo. Então imagine a situação do lugar.

59. Nesses mutirões da vida já ajudei a reformar cadeira, pintar parede, trocar encanamento e até na construção da casa de um professor que estava com dificuldades e não podia pagar o pedreiro.

60. Uma vez fizeram charges de todos os funcionários como presente dos dias dos professores, amei demais a minha:

Com exceção da bela charge do autor, as demais imagens são tentativas — tão frequentes nos muros das escolas brasileiras — de copiar a “Turma da Mônica”.

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