Por Fulano e Beltrano

Dois amigos correspondiam-se em torno de temas ligados à onda fascista global, e resolveram compartilhar as reflexões com um público mais amplo.

FULANO

Caro,

estou aqui reunindo material pra ajudar num artigo e pra me ajudar a entender melhor o que o Rancière chama de “o homem democrático” (n’O Ódio à democracia), que é mais complicado que a ascensão do “homem comum” ou do cara tosco, Joselito Sem Noção, com moletão e camisa falsificada do Palmeiras em Brasília, e acabei sendo salvo por aquela sua assinatura no Foreign Affairs, onde não tava liberado pra geral a leitura desse artigo aqui do Jan-Werner Müller.

Esse J-W Müller, um politólogo alemão, liberal, abaixa a bola do que somente na aparência (e como propaganda) seria uma onda nacionalista (Hungria, Turquia, EUA, Índia, Brasil,…) puxando a sardinha pra brasa dele, que é o populismo (seja de esquerda, como o chavismo, seja o de direita). E passa pelo tópico do “homem comum” quando ele fala do discurso de representação do que se considera “the real people” ou a maioria silenciosa — o que tem sido dito da nossa (suposta) maioria cristã e conservadora, anos e anos acuada e constrangida pelos globalismos e progressismos.

Sobre a vitória eleitoral do Bolsonaro, Müller minimiza o apoio social a uma nova ditadura militar, apontando para o sucesso da campanha contra a corrupção das velhas elites políticas, contra o retorno do PT, além do apoio que teria tido do agronegócio, do empresariado industrial e financeiro, e de lideranças evangélicas.

Representando não as maiorias silenciosas, e sim minorias bem barulhentas, “eles não chegam ao poder porque sua ideologia é uma força histórica mundial imparável. Pelo contrário, eles dependem da disposição da centro-direita a colaborar com eles — como foi o caso de Trump, Bolsonaro e dos defensores do Brexit — ou vencem pelo ocultamento de suas intenções, ainda que parcialmente, como foi o caso de Orban”.

Depois de estarem instalados no governo, o que se tem de nacionalismo são pantomimas, “nos bastidores, esses líderes geralmente são bastante complacentes com instituições internacionais e corporações multinacionais. Eles estão menos preocupados em reafirmar genuinamente a autonomia de seus países do que em parecer fazê-lo”. E cita os governos de Trump e Orban.

Achei interessante o que ele diz da mobilização populista do sentimento de falta de respeito que perpassa a largas parcelas da sociedade: “Em toda a Europa e Estados Unidos, jornalistas e analistas afirmam que muitas pessoas — especialmente pessoas brancas mais velhas — sentem-se desrespeitadas pelas elites. É difícil determinar quantas pessoas confrontaram-se diretamente com o desrespeito. Mas praticamente dia e noite — em programas de rádio, programas de notícias na TV e mídias sociais — é dito a milhões de pessoas que elas se sentem desrespeitadas. O que é rotineiramente apresentado como um conflito cultural entre centros rurais alegadamente autênticos e cidades cosmopolitas geralmente envolve uma luta muito menos dramática sobre como as oportunidades são distribuídas através de decisões regulatórias e infra-estruturais: do preço da passagem aérea para vôos para áreas mais remotas ao status dos bancos comunitários, passando pelas políticas que determinam o custo da habitação nas grandes cidades”.

E assim a política (?) vai sendo alimentada de indignação, que é o sentimento furioso de quem se sente desrespeitado… Mas tem outro elemento aí que equilibra muito bem o “ódio” e o “rancor”. O personagem Bolsonaro é zuêro. Fazer arminha, falar de abraço hétero, desfilar de moletão, usar caneta BIC, não é só querer parecer com o seu tio, um cara comum. O elemento do humor não é marginal. Um programa que ajudou a fazer do Bolsonaro um personagem folclórico (ao lado do Clodovil e do Freddy Mercury prateado) foi o CQC, que misturava jornalismo-cidadão, indignação, e comédia rasgada. A ascensão dessa nova extrema-direita brasileira é contemporânea de toda uma nova geração de humoristas, e de uma fila grande de políticos humoristas. E aí aparece outro artigo mais fraquinho, mas interessante (pra esse não precisei de senha), de um jornalista e economista chamado Tej Parikh.

Ucrânia, Eslovênia, Guatemala, Irlanda, Itália… todos têm no governo comediantes profissionais, e em vários outros países surgem candidaturas cômicas. Como o artigo diz, o humor é positivo, e a sátira é uma ferramenta de comunicação inteligente. É por aí que eu vou tentar puxar mais, pois a inteligência do humor é, de um modo geral, anárquica, anti-autoritária. Tem também a derrisão, que é um tipo de humor mais nervoso, mais controlado, associado ao desprezo, ao asco por alguém ou por algum grupo social, que parece mais uma risada por fora com um ódio profundo por dentro, ao contrário daquele riso que se espalha sem freios, mesmo quando o motivo é ridicularizar alguma coisa ou alguém, como a própria pessoa que faz a piada.

De qualquer modo, você vai concordar que existe algo como um viés anti-autoridade que atravessa o movimento social da extrema-direita brasileira e talvez das outras. Nas brigas diárias dentro da reaçolândia não existe respeito a hierarquias, campos e instituições, os que são mais Paulo Guedes que Bolsonaro não têm papas na língua, há os que são mais Mourão e fazem o mesmo com os olavófilos, e por aí vai. É uma contradição já conhecida mas que pode ser desenvolvida: a propaganda de defesa de valores tradicionais (ou nacionais e nacionalistas) não tropeça só por hipocrisia, né? Basta preencher um a um esses valores — infância, família ou pátria — e a gente vê que seus propagandistas não têm autoridade ou credibilidade. Mas deve ser menos hipocrisia/maldade/sordidez e burrice/estupidez que imaturidade democrática, trazendo um pouco aqui o Rancière, que fala de “reino monstruoso da adolescência”. A maldade e a estupidez são figuras muito antigas dos confrontos políticos, muitíssimo antes de comunistas malvados comerem criancinhas e do Lula falar menas laranja. E essa imaturidade no campo da política — que resgata a política mais como luta que como gestão, trazendo o Paulo Arantes — é uma “maturidade” no campo mercantil, de tal modo que pro Rancière o “homem democrático” é o indivíduo consumista, uma atualização do antigo burguês do Manifesto Comunista, que quer fazer de todos os ofícios (juízes, sacerdotes, poetas, médicos, sábios) seus servidores assalariados, na medida em que pode pagar por isso e que paga. A gente pode pensar nessa galera dizendo que tá cagando pra PSL e pra qualquer partido, que votou mesmo é no Bolsonaro. Eles “pagaram” por algumas doses de opressão sobre os bandidos, mas é claro que isso não configura nenhuma fidelidade, eles querem que o produto no qual investiram provoque os efeitos esperados, mas se não provocar, não terão a quem recorrer, a não ser buscar outro produto na prateleira…

BELTRANO

Caro,

A assinatura está aí para isso. Precisando, tamos aí. Gostaria, entretanto, de comentar alguns tópicos de sua mensagem.

O “homem comum”, a “maioria silenciosa”, “the real people” (vou chamar a tudo isto de “cidadão A” para facilitar), tudo isto é uma armadilha política muito comum. O antônimo destas figuras é o especialista político, o cidadão politizado, o “habitué” dos corredores da política, e os próprios políticos de carreira (vou chamar a tudo isto de “cidadão B”). A política, nesta armadilha, orbita entre o “cidadão A” e o “cidadão B”, via de regra com o último pedindo calma e paciência ao primeiro enquanto a política segue o “business as usual”. Aí ou se cai no elitismo ao apoiar o “cidadão B”, ou se cai na “oclocracia” ao apoiar o “cidadão A”. Inversamente, a crítica ao elitismo corre enorme risco de elogio à “oclocracia” (no caso presente, esta “oclocracia” tem tons fascistas), e a crítica à “oclocracia” pode muito facilmente degenerar em elitismo. Esta é a antinomia a transformar em contradição neste debate, saindo dos termos puramente lógicos com que ele é tratado e infundindo-o com História.

No que diz respeito ao apoio da centro-direita aos palhaços fascistas, acho que a situação é inversa: é a centro-direita que depende da extrema-direita para continuar existindo, ainda que marginalmente. Quem se radicalizou foi o eleitorado. Não programaticamente, mas sim pragmaticamente. Mudanças sociais e política de grande monta têm resultado em instabilidade para certos setores, que por isto se transformam em conservadores, reverberam as opiniões correspondentes à sua posição em diversos assuntos, e em tempos de redes sociais capturam a atenção dos produtores de mídia, que enxergam mais o conteúdo das redes sociais que o dos problemas reais.

Já sua observação sobre comédia, zuêra e extrema-direita, não vamos esquecer da longa história que isto tem. Ridentem dicere verum: quid vetat?, já dizia Quinto Horácio Flaco (65 AEC-8 AEC) nas Sátiras (Livro I, 1, 24), frase que pode ser traduzida como “dizer a verdade rindo: quem proíbe?”. Na mesma linha, castigat ridendo mores foi a inscrição criada por Jean-Baptiste de Santeul (1630-1697), poeta francês, para ser colocada em teatros, significando “castigue os costumes rindo”. O patrono da imprensa política brasileira, Aparício Torelly, satirista de marca maior, adotou-a em seu brasão numa forma levemente alterada.

A essência da sátira, como se vê, não está no poder, mas em sua crítica. Ocorre que os “populistas” surgem primeiramente como críticos ao poder. A ascensão do Partido da Lei e da Justiça na Polônia e sua chegada ao governo por meio da eleição de Andrzej Duda, assim como a ascensão da Aliança Cívica Húngara e sua chegada ao governo por meio da eleição de Viktor Orbán, tudo isto se dá em processos de oposição aos governos pró-UE e à própria UE.

A sátira não é positiva, ela é negativa, ela é destrutiva, ela não está aí há milênios para construir nada, a sátira é o gênero literário onde se aplica com maior propriedade o epíteto de “terra arrasada”. A sátira tem o botão foda-se quebrado no “on”, e por isto mesmo não é “de esquerda” ou “de direita”; pelo contrário, ela é de quem sacanear primeiro. A extrema-direita, quando está na oposição, toma a sátira de assalto: suas práticas conservadoras e reacionárias são alvo preferencial da sátira, mas como qualquer ser humano com mais de um neurônio sabe aproveitar-se da popularidade gerada por suas posições delirantes (nunca foi tão precisa a expressão “bater palma pra maluco dançar”), aquilo que deveria ser sua ridicularização é, na verdade, sua plataforma midiática. Quando não é isto, a extrema-direita também usa, ela própria, a sátira como ferramenta em sua posição oposicionista.

Ainda sobre este assunto, um contraponto interessante foi feito pela Vox quanto às recentes coletivas de imprensa da Casa Branca. Involuntariamente, o jornalismo explicativo deles foi ao ponto, pois mostrou, em vídeos não-seriados, um padrão muito curioso. Num primeiro vídeo, mostraram o caráter espetacular das coletivas de imprensa. Depois, num segundo vídeo, mostraram como não adianta checar fatos contra a enxurrada de merda. Por fim, fizeram um terceiro vídeo, talvez o mais interessante: mostraram como na imprensa estadunidense de hoje são os comediantes quem melhor cobre a Casa Branca.

Por que? Na leitura da Vox, com a qual concordo, comediantes são uns racionalistas desgraçados, esperam qualquer escorregão seu para te pegar de calças na mão; por isto mesmo, enxergam muito cristalinamente que só dá para lidar com a enxurrada de merda sacaneando. “O rei está nu!”

Enfim, é isso. Não vou tomar mais do seu tempo. Boa sorte aí com Rancière.

O artigo foi ilustrado com obras de Wassily Kandinsky

1 COMENTÁRIO

  1. A Sátira 3 de Juvenal é um belo exemplo de “cidadão comum” cuja vida se torna impossível devido aos desprazeres da modernidade: imigrantes, superlotação das cidades, ocaso dos valores tradicionais, etc. É a versão romana do “se ganhar X eu vou embora deste país”.

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