Por Débora Nisenbaum

Esse Achado & Perdido faz parte do dossiê “Causos de trabalho”: uma seleção, feita pelo Passa Palavra, de threads relatando o cotidiano e curiosidades de diferentes trabalhadores.

Todo mundo [está] muito surpreso com as paradas da Livraria Cultura só porque o consumidor médio de lá nunca trabalhou no varejo. O varejo é um inferno e vou contar aqui alguns episódios de trabalhar em loja, não são nem de longe os mais escabrosos que já ouvi.

Fui procurar meu primeiro emprego aos 18 anos, tive esse privilégio. Como não tinha experiência nenhuma, fui pro shopping e saí entregando currículo. Consegui emprego numa loja de roupas caras, dessas que vende casaco de pele (vendia, na época) e as brusinha (2010) custavam R$ 150. Eles aceitam qualquer pessoa mesmo sem saber se você é bom com [atendimento ao] público, se você atende bem, etc. Não porque eles fornecem treinamento, mas porque a rotatividade é alta o suficiente pra um funcionário ruim em piso de loja não machucar o lucro.

Bom, comecei meu trampo e tudo ali me parecia contraintuitivo, começando pela comissão individual e o sistema de “vez”.  Pra quem não sabe, em 90% do varejo, quando você entra na loja alguém está “na vez”. É a vez dessa pessoa de atender. Se você não leva nada, ela perde a vez.

E tem regras esdrúxulas tipo: se ela [o cliente] só perguntar de um item, mas não mexer em nada, você não perde a vez e pode atender o próximo cliente. Foi pro banheiro? Perdeu a vez. O cliente passou 15 segundos na loja, mas mexeu numa jaqueta? Perdeu a vez. Numa segunda-feira quando entram 10 pessoas na loja o dia inteiro, cada vez é sua chance de bater sua meta diária.

É, tem meta individual diária e [meta] mensal de venda. Isso cria um ambiente escroto onde todo mundo passa a perna em todo mundo, ninguém é amigo de ninguém e geral te esfaqueia pelas costas. Quando cliente reservava peça e vinha buscar no horário que a pessoa que lhe atendeu não estava, minha nossa senhora. Era dedo no cu e gritaria. Cansei de ver vendedor escondendo peça pro outro não roubar venda. Rolava briga feia.

Ah, o esquema de trabalho era 6×1. Trabalha 6 dias, folga 1. Dois domingos por mês de folga. Não existia folga de sábado. Simplesmente não existia. Era o dia mais cheio e todo mundo queria estar na loja pra vender e bater meta. Sábado tinha meta de 10 mil por pessoa.

O salário era o mínimo da época (uns 700 conto) + 3% do que você vendeu. Ah, e só recebia comissão SE vendesse acima de R$ 20 mil. Vendeu R$ 21 mil? Parabéns, ganhou comissão. Vendeu R$ 19 mil? Sinto muito. As metas geralmente eram R$ 40 mil, por aí.

Ou seja, você ficou lá, trabalhou o mesmo tanto de horas [dos demais trabalhadores]. Mas às vezes tu não tem o conhecimento de um vendedor mais experiente, não tem cliente habitué, só pegou uns caroços o mês inteiro, geral passava a perna em você na loja, se fodeu. Trabalhou igual? Sim. Mas ganhou menos.

Nessa loja em particular os gerentes faziam a gente comprar as roupas pra usar como uniforme, o que é crime. A gente tinha 40% de desconto de funcionário e eles tratavam isso como um puta favor que a loja estava fazendo por nós. Porque né, você tem que usar as roupas da marca pro cliente achar bonito e querer comprar também. E se não estava usando pelo menos uma peça da loja, era bronca. Agora lembra que as brusinha custava 150 conto? E a gente ganhava R$ 700 sem comissão? Vê se cabe no orçamento isso. E tome na orelha dos gerentes por vir com roupa “de fora”.

Um belo dia o estoquista pediu demissão e obviamente nas semanas seguintes a loja começou a virar um caos. Pilhas desarrumadas pelo estoque, ninguém achava tamanho de merda nenhuma, geral pisando em saco de roupa no estoque pra conseguir entrar lá. Minha gerente teve a brilhante ideia de mandar todo mundo passar a madrugada inteira arrumando o estoque. Detalhe: tinha nem banco de horas. Não recebíamos hora extra. Não deram folga pra compensar nem nada. O povo ficou lá até duas da manhã e eu fui pro sossego do meu lar. Falei pra minha gerente:

Maria, faz as contas comigo. Esse mês a gente vendeu mais de R$ 200 mil pra essa marca. Tira os nossos salários, ainda sobra mais de R$ 180 mil. Tu acha MERMO que o dono dessa merda não tem 750 conto pra pagar um estoquista? Ele tá pouco se fodendo pra você, pra mim, pra todo mundo. Se tu vai ter que dormir na loja porque o metro já fechou e a linha que chega na tua casa não tem noturno, ele está POUCO SE FODENDO de dentro do Porsche dele. Deixa essa merda explodir e vir a supervisão aqui na loja, aí tu pede pela vigésima vez um estoquista.

18 anos, mas consciência de classe sempre tive (risos).

Não adiantou nada, geral ficou, eu me retirei porque ameacei processar ela e a marca de me segurar lá depois das 22:30. Teve também o sábado em que a loja FERVEU. Sério, ferveu e cada vendedor atendendo umas 3 pessoas diferentes. Aí quando foi embora aquele rebuliço, vimos que 2 peças tinham sumido da arara de catálogo (onde ficavam as peças mais caras da coleção). Dois coletes de pele de coelho, R$700 cada um. A gerente veio soltando fogo pelas ventas pra cima de todos nós. Berrando mermo:

— Como que vocês deixam isso acontecer? Vocês não são pagos pra isso!

— Ué, mas era pra ter tocado o alarme da peça, é impossível tirar.

— O alarme tá desligado.

— Então pede pra ver a filmagem de segurança.

— As câmeras são de mentira.

Queria descontar do nosso salário. Eu a mandei tentar. Porque eu entrava com processo. A loja cagando pro sistema de segurança, tudo desativado ou de mentira, mas a culpa e os berros e o abuso moral vinham pra cima dos fodidos que estavam ajudando a dondoca a escolher calça jeans enquanto outra dondoca roubou a peça…

Ah, esqueci de falar dos benefícios! Como todo mundo sabe, vale-transporte desconta do salário. E nosso vale refeição era de 40 quarenta – Q U A R E N T A – reais por mês. Não dava nem pra comprar uma coxinha por dia.

Vou nem comentar quantas vezes eu fui assediada em horário de trabalho e meus gerentes fizeram nada pra me ajudar ou me defender, mas tinha cliente que eu via chegando e me escondia no estoque até ir embora. Perdia vez, perdia venda, perdia tudo, mas não conseguia passar pela humilhação.

Daniel Matos lembrou uma parada importante: era trabalhar o dia inteirinho em pé. Não pode sentar. Não pode encostar no balcão. NADA. Eu que sempre tive problema de microvarizes às vezes ia pro banheiro pra ficar 10 minutos sentada.

O discurso meritocracia reinava o tempo todo. Se não batia meta era porque não se esforçava. Se PV não era 5 é porque não se esforçava. Se não queria fazer hora extra de graça pra bater meta era porque não se esforçava. Se faltava funcionário e estava tudo uma zona era porque não se esforçava.

Os gerentes diziam que DAVAM A OPORTUNIDADE de a gente trabalhar fora do horário pra bater meta. E veja, eram pessoas simples. Gente nova, gente que o sonho era fazer uma faculdade. Esse discurso idiota vinha todo de cima, era vendido um sonho impossível e a galera comprava.

Porque se um dia você se esforçar o suficiente, pode alcançar a gerência e aí sim, ganhar 2 [mil] conto e levar na orelha não de um gerente, mas sim de um supervisor… Fiquei 6 meses nessa loja e me arrependo demais de não ter entrado com processo trabalhista.

Não bastasse trabalhar pra empresário babaca encher o cu de dinheiro, tinha cliente babaca que chegava com peça de dois anos atrás querendo trocar e ainda ficava puto que não podia. Gente que vinha trocar peça de 1500 reais obviamente roubada… Era foda.

Sei lá, espero que quem leia isso aqui pense trinta vezes antes de ser grosso com um trabalhador do varejo. Se lembrar de mais absurdos eu posto depois.

Ah, eu acho importante ressaltar que eu fiquei 6 meses lá e, assim, tem MUITA coisa pior rolando no mercado de trabalho, tá? A galera do telemarketing se fode MUITO mais. Sei que é um saco, mas sejam no mínimo simpáticos com a galera, não é culpa deles que eles tem que te vender cartão.

Às vezes a gente está aqui no conforto do nosso lar recebendo ligação de alguém que passa o dia todo num cubículo ligando pra estranhos, ouvindo merda pra ganhar um salário de bosta. Todo mundo está lutando uma batalha que você não conhece, e com a precarização do trabalho SÓ VAI PIORAR!

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