Por Ralf Ruckus

A Universidade Politécnica de Hong Kong (PolyU) esteve sob cerco policial por mais de uma semana. O manifestante entrevistado tem 20 e poucos anos, pertence aos círculos de espquerda e atua no movimento há meses. A entrevista ocorreu no dia 24 de novembro, dias depois de ele deixar o campus sitiado. Ele descreve não apenas os confrontos e a série de outros eventos durante o cerco, mas também o papel de políticos, professores e assistentes sociais em persuadir os manifestantes a se renderem.

Vamos falar sobre como tudo isso começou. Na quinta-feira, 14 de novembro, a Universidade Politécnica de Hong Kong (PolyU) foi ocupada e barricadas foram construídas lá dentro. Então, como e quando começaram os confrontos com a polícia?

Eles começaram no sábado, do lado de fora do portão principal da avenida Cheong Wan. Primeiro os conflitos foram mais esporádicos, mas duraram e continuaram no domingo. Cheguei às ruas em torno da PolyU no domingo à tarde. Naquele momento, o campus era usado por manifestantes para guardar seu material, trocar de roupa, descansar ou receber ajuda médica. Foi por volta das 21h ou 22h. Naquela noite, a polícia anunciou que havia bloqueado a entrada da PolyU, e foi quando o cerco começou.

O que aconteceu naquele momento dentro do campus da universidade?

Até as 23 horas, eu estava fora do campus a maior parte do tempo, mas vi que, quando a linha de frente era atingida pelo canhão de água colorida [usado para facilitar a identificação de manifestantes para prisões posteriores], as pessoas eram levadas para dentro do campus e os socorristas ajudavam-nas a lavar-se e trocar de roupa. Outros estavam fazendo coquetéis molotov. A cantina estava funcionando normalmente. Você poderia obter água e comida, e em outras seções eles também distribuíam carregadores de bateria, necessidades diárias, etc. Foi tudo muito bem organizado, tudo feito e fornecido pelos próprios manifestantes. O material havia sido trazido antes do início do cerco.

Quando os combates começaram no domingo, as pessoas esperavam que a polícia tentasse cercar o campus para iniciar um cerco?

Ninguém esperava um cerco. Naquele dia, houve dois confrontos separados fora do campus, na avenida Cheong Wan. Um ocorreu perto do cruzamento das avenidas Cheong Wan e Chatham, em frente ao quartel do Exército de Libertação Popular (ELP). A linha de frente lutou contra a polícia desde a tarde até por volta da meia-noite. A polícia atacava de vez em quando com canhões de água e carros blindados, e as pessoas tinham de se defender contra esses ataques e manter a linha. Eu fiquei por lá até por volta das 20h.

Outro grupo de linhas de frente estava lutando do outro lado da avenida Cheong Wan, perto da ponte para a estação Hung Hom, na ponte sobre a rodovia. Ou seja, onde o carro blindado foi atingido repetidamente por coquetéis molotov, como você pode ver nas notícias. Passei o resto da noite desse lado. Às 21h ou 22h, os manifestantes atearam fogo numa barricada, e houve um grande incêndio. A luta foi mais intensa lá, também porque o carro blindado estava perseguindo pessoas na ponte, tentando romper a barricada. Se isso tivesse acontecido, teria sido muito perigoso, pois as pessoas precisavam fugir pela ponte.

Durante esses confrontos, havia uma estrutura de olheiros nos prédios do campus observando a situação, e eles pediram às pessoas da linha de frente que se mudassem para determinadas áreas, por exemplo. A linha de frente nem sempre seguiu as instruções. Os olheiros pediram, por exemplo, que as pessoas se retirassem do cruzamento da Chatham Road, pois achavam que aquele lugar não era bom para montar uma defesa, mas as linhas de frente não aceitavam e ficavam lá.

Naquela noite, a polícia não conseguiu romper as filas, mas acabou conseguindo de manhã cedo, na segunda-feira, e as pessoas tentaram escapar pela entrada do campus? Onde você estava naquele momento?

Isso aconteceu às 5:30 da manhã. Eu estava na avenida Cheong Wan descansando. De repente, as pessoas gritaram que havia “Raptors” [uma unidade especial de polícia de choque] chegando e que deveríamos nos mover e correr. As pessoas estavam assustadas, gritando. Vi como “Raptors” já haviam capturado e detido alguém. Juntamente com alguns outros, tentamos correr em direção à entrada da PolyU, mas fizemos a curva errada em um canto e paramos em frente a uma parede. Era um beco sem saída, então tivemos de correr de volta, depois pela entrada e subir as escadas até a primeira plataforma. Os “Raptors” estavam a apenas três metros de nós. Quando subimos as escadas, as pessoas já começaram a jogar coquetéis molotov da segunda plataforma acima em direção aos policiais. Uma situação muito perigosa. Naquele momento, vi como um “Raptor” empurrou um manifestante no chão e depois apontou a arma para mim e disparou algumas balas. Fui atingido nas costas, provavelmente por uma bala de borracha ou “saco de feijão” [tipo de munição usada em repressão e dispersão de multidões].

Eles também estavam atirando gás lacrimogêneo?

Não, não nessa situação. Pude ver que as pessoas estavam histéricas quando os coquetéis molotov foram jogados de cima e todos ficaram realmente assustados. No entanto, também vi pessoas usando a água para conter o fogo e certificar-se de que o edifício não fosse incendiado. As pessoas continuaram jogando coquetéis molotov por um tempo para parar a polícia, enquanto outros jogavam água nas paredes circundantes.

Quando cheguei à segunda plataforma e entrei no campus, liguei para um amigo que é estudante lá e perguntei se havia outras saídas. Ele falou de dois outros lugares, um dos quais era a ponte pedonal, que já estava queimando, e o outro já estava cercado pela polícia.

Você estava pensando em sair, então?

Não, eu não. Mas amigos me ligaram e estavam procurando outros amigos que estavam presos lá dentro. Então comecei a olhar em volta, ver quais lugares eram seguros para as pessoas se esconderem e quais saídas ainda estavam disponíveis.

Como você se sentiu quando percebeu que estava cercado e não podia sair?

Eu pensei que a polícia invadiria o campus muito em breve, então achei que deveria ficar lá, mas também estava assustado e cansado.

Muitas pessoas tentaram escapar naquele dia. Quais foram suas impressões durante estes momentos?

Antes das 15h na segunda-feira, houve três tentativas dos manifestantes de romper as linhas policiais e sair do campus. Um grupo maior de linhas de frente tentou montar uma linha defensiva do lado de fora do portão principal para criar um caminho através do qual as pessoas pudessem evacuar. Todas as tentativas falharam.

Mais tarde, por volta das 22h ou 23h, a mídia mostrou relatos de que manifestantes de fora tentaram chegar ao PolyU de diferentes direções. [Veja este relatório sobre a situação do lado de fora.] As pessoas de dentro se encorajaram e prepararam-se para sair a qualquer momento, pois esperavam sair e encontrar os manifestantes que tentavam romper as linhas policiais do lado de fora.

No mesmo instante, alguns políticos e palestrantes pró-governo fizeram um acordo com a polícia. Os menores de 18 anos poderiam sair e ter seus nomes registrados, mas seriam dispensados. Maiores de 18 anos poderiam sair com os políticos, seriam imediatamente presos, mas não seriam feridos ou atacados pela polícia. Antes disso, alguns diretores de escolas já haviam tentado conversar com seus alunos, mas eles não tinham sido autorizados pela polícia.

Quando os políticos e professores chegaram, como reagiram as linhas de frente?

Este é um dos contratempos, pois houve muitas divisões entre os manifestantes. Por volta das 23h, alguns gritaram e acusaram aqueles que estavam saindo. Eles disseram: “Você não merece ser nosso camarada!” No entanto, eles também imploraram para que ficassem. Muitos dos que queriam ir embora estavam chorando. Havia também pais que entraram, e eles abraçaram e beijaram seus filhos. As pessoas também estavam preocupadas e em pânico por causa da pressão. Outros estavam gritando para aqueles que estavam prestes a sair que já havia pessoas vindo para resgatar todo mundo e que ninguém tinha de ir assim e ser preso pela polícia.

Entre 1h e 2h da manhã, as linhas de frente que ficaram dispersaram-se por entre os prédios. Parecia haver pouca chance de que eles pudessem sair juntos, enquanto aqueles que tentavam chegar à PolyU do lado de fora ainda pareciam bastante distantes.

Como vocês passaram dia e noite?

Na segunda-feira, ninguém mais cozinhava na cantina, mas você poderia entrar lá e pegar comida fria e seca. Havia água, podíamos usar os banheiros e encontrar lugares para dormir, mas o ambiente e os banheiros já estavam muito sujos.

Assim, durante toda a noite e na terça-feira, várias centenas de pessoas deixaram o campus.

Sim, as pessoas continuaram saindo. Os políticos, assistentes sociais e diretores de escolas vieram por toda a manhã para pegar as pessoas e acompanhá-las quando elas saíam.

Como você se sentiu quando viu todos eles saindo?

Certamente foi devastador. Havia pessoas que queriam ficar, mas quando continuavam vendo as pessoas saindo, sentiam como se ninguém as estivesse apoiando. Os que foram embora sentiram muita culpa. Eles estavam nesse dilema entre pensar em sua segurança pessoal ou no movimento, e tiveram de fazer uma escolha. A decisão de partir os fez sentirem-se culpados.

Naquela época, as pessoas ainda temiam um ataque da polícia?

Eu esperava que a polícia entrasse nos prédios e invadisse o local durante a noite. Isso não aconteceu, e pela manhã não havia ninguém cuidando das barricadas. Todos haviam desaparecido nos prédios e se barricado ali.

A polícia fez declarações e tentou intimidar os manifestantes dizendo que as pessoas tinham de se render e que todos seriam acusados ​​de tumulto. Qual foi o impacto nas pessoas de dentro?

Essas ameaças policiais já começaram no domingo à noite. Quando eu estava na ponte na avenida Cheong Wan, ouvi dizer que a polícia também estava tocando essas músicas do outro lado das barricadas, músicas das décadas de 1970 e 1980 com letras como “você já está cercado” ou sobre ir prisão, sair e se tornar uma boa pessoa. Havia outra sobre se despedir da sua vida escolar. Os sentimentos expressos eram sobre “partida” e sobre “deixar para lá”.

Eles tocaram essas músicas na segunda-feira à noite e algumas vezes na terça-feira. Foi hilário e não teve efeito sobre os manifestantes.

Outras táticas, além das ameaças e músicas, foram mais eficazes, como enviar esses políticos que fingiram ser atenciosos e pediram que as pessoas se rendessem.

Então as pessoas estavam saindo durante o dia na terça-feira. O que você fez?

De manhã, fui ver se uma determinada rota de fuga ainda estava aberta. Existem escadas que levam a uma porta de emergência e, quando não havia policiais, era possível escapar por aquela porta. 60 a 70 pessoas conseguiram. As pessoas estavam subindo as escadas e deixando seus equipamentos lá, pois tinham de poder se misturar assim que saíssem.

Algum tempo depois, à tarde, testemunhei como um político dos pan-democratas anunciou que ele entendia que um grupo queria sair e outro queria ficar, e que ele seguiria o grupo maior. Descobriu-se que o grupo daqueles que queriam sair era maior. Então ele os conduziu pela entrada da PolyU e pela linha de polícia onde todos foram presos, exceto o político.

Também pensei se deveria sair ou não. Entrei em um grupo de Telegram que buscava rotas para escapar. Eram pessoas de fora que tentaram ajudar as pessoas a sair. Eu verifiquei uma das rotas de fuga que foi discutida. Havia rumores no canal de que uma tentativa de fuga foi organizada para as três da manhã, mas depois foi cancelada. Este não foi o grupo que organizou a bem-sucedida ação de rapel na ponte de pedestres.

Vi que algumas pessoas tentavam escapar pelo sistema de drenagem. Alguém parece ter conseguido sair dessa maneira e recebeu ajuda de fora.

Como você se sentiu quando saiu?

Primeiro, conversei com pessoas diferentes para ver quais eram seus sentimentos. Eu visitei diferentes grupos que se barricaram em diferentes edifícios. Estou certo de que alguns deles queriam se defender e nunca partiram de bom grado. Outros me perguntaram se esse ou aquele plano de fuga funcionaria ou qual rota estaria aberta.

Eu tinha sentimentos confusos quando finalmente saí do campus, pois ainda havia pessoas presas. Nesse ponto, ficou claro que a polícia não invadiria o campus, mas usaria outras táticas, como tentar esperar e ver se os que estão lá dentro perdiam energia, para terminarem se rendendo.

Quando você foi embora, você foi preso?

Fui parado e checado, como todos os outros, e eles me acusaram de tumulto.

Vamos falar um pouco sobre por que você apoia o movimento?

No começo, eu tinha questões sobre esse movimento e dúvidas, por exemplo, sobre o slogan “Libertem Hong Kong, a revolução de nossos tempos”. Agora não me importo mais, qualquer que seja o slogan que eles queiram gritar, que gritem. Eu só não sigo alguns dos slogans.

Isso explica algumas de suas motivações, mas não porque você corre o risco de ser gravemente ferido e preso por anos.

No domingo, comecei a pensar no risco de prisão e nas consequências de minhas ações. Naquele momento, acho que o valor de permanecer superava o risco e as consequências. Claro, eu também estava com medo. Portanto, eu não aguentava o fato de as pessoas permanecerem dentro da PolyU, mas eu também estava preocupado com minha própria segurança e as conseqüências que enfrentarei.

Ok, mas onde está a conexão entre o risco e o movimento? Vimos a dinâmica no domingo, o ataque da polícia, mas essa é apenas a escalada naquele dia. Você está envolvido no movimento há meses. Você poderia dizer algo sobre o porquê de apoiar o movimento em geral, como ativista de esquerda.

Quando participo, não enfatizo que sou de esquerda. E esse movimento não é sobre vencer derrotando a polícia. Há outras coisas em jogo, mas ainda estou explorando, como valores importantes, democracia, comunicação mais eficaz dentro do movimento de massas, um nível aceitável de violência que as pessoas podem usar. Também é sobre a vida cotidiana, e continuo pensando sobre que tipo de vida as pessoas imaginam e querem construir. Então eu me pergunto para onde deve ir toda a energia que vem do movimento. Certamente há muita energia, e as pessoas, de alguma forma, questionam os valores ou hábitos existentes e agora consideram outros caminhos.

Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original disponível aqui.

As fotos utilizadas na ilustração deste artigo são da Hong Kong Free Press.

1 COMENTÁRIO

  1. Vou contar sumariamente o que a esquerda de baixo impactos e anorexa comenta/discute nalgumas bolhinhas quando o assunto é Hong Kong, em aspas para ser fiel às diversas autorias:

    “Hong Kong está vivendo o Brasil de 2013, sob influencia de forças externas” (sic de um “militante” de um partido institucional grande).

    “A direita mundial está dirigindo os confrontos”

    “A extrema direita ucraniana se mudou para lá e está recrutando gente”. Faço uma pausa para as teorias relacionadas ao PAN Eurasianismo….e paro aqui porque não vou ao pscinalista por conta dessas tonteirias.

    “Os movimentos de Hong Kong querem estabelecer o padrão ocidental de regime”.
    “Antes a China que os EUA”
    “Não existe revolucionários no movimento”
    “Quem está no confronto é a extrema direita”
    “Quem dá o tom do movimento é a classe média urbana”

    Fim do sumário, pordoem o copia e cola.

    Após o posicionamento de Lula, recentemente sobre 2013, velhos armários foram reabertos na esquerda institucional, alguns mais próximos da terra média (Tolkien) que das complexidades do tempo presente. Então, nem vou me ater ao assunto, fartamente tratado no PP aliás.

    Minha hipótese: A Esquerda Brasileira, depois de passar cheque em branco lá nos idos dos 70, tornou-se reacionária. Sim, a esquerda pode ser reacionária, pois, no caso tupiniquim, a dita esquerda não é nem mamífero e nem pássaro, parafraseando Chico de Oliveira.

    Noves fora a intencionalidade da esquerda sobre 2013, cujo acerto de contas é energia mal gasta, prevalece aquele senso: o que não controlo, preciso conter.

    Brasil 2013, Chile 2019…em comum a longa trajetória das esquerdas de baixo impacto em levantar cercas de contenção às revoltas. Impossibilitados de fazer sua máquina hegemonica rodar sob a engrenagem “solta” das ruas em chamas. Resta a distribuição no varejo dos piores argumentos para justificar a sabotagem (com sinal invertido) de toda potência de Insurreição das ruas. A galera da Bachellet entregou a rapadura antes do fim de um mês de revoltas, felizmente e apesar deles, o Chile segue em #evade.

    Por causa dessa nada esquizofrênica postura, ou estratégia, Hong Kong só pode ser vista pela lente conservadora enquanto ameaça de “contra-revolução”. E como a experiência, memória, imaginários, táticas e invenções não contam para as forças institucionais de esquerda, o juízo sobre as revoltas sempre recairá sob o signo triste do acontecimento suspenso. Pobre esquerda triste.

    Incapazes de ver além do cercadinho miúdo e sem maiores significados para as imensas maiorias, tem restado altas dosagens de ressentimento, para usar o termo da moda,sobre todos os que não estão sob o mesmo acordo.

    A esquerda brazuca,esse sujeito sem ossos,se distância cada vez mais do tecido da realidade, afundando mais e mais em seus box Sprawl.

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