Por 01010001

Todo e qualquer militante da área da segurança digital que não leve em conta as formas pelas quais as ameaças no mundo digital afetam desigualmente classes sociais antagônicas é, no mínimo, ingênuo. Não há tecnologia sem luta de classes, e não há luta de classes sem tecnologia. Vamos tratar do assunto primeiro em alguns artigos de fundo, depois em alguns artigos técnicos de tamanho médio, para a partir de então comentar questões palpitantes acerca dos cuidados digitais. Neste artigo, vamos focar na captura de dados pessoais.

Para começar a tratar deste assunto, é preciso entender dois conceitos básicos: os dados e os metadados da comunicação via internet.

Os dados são o conteúdo. É o texto do e-mail, é a foto que você publicou no Instagram, são as curtidas no Facebook, é aquele fio que você publicou no Twitter, é o áudio que você mandou pelo Signal ou pelo WhatsApp…

Em volta deste conteúdo, existe outro mundo de informações, ao qual poucos dão a devida importância. Vamos usar a publicação de uma foto no Instagram como exemplo. Aquela foto foi tirada, digamos, em um celular Samsung J1 Mini às 22:32 do dia 14 de janeiro de 2017 no restaurante Braseirão, que fica na esquina da rua Santo Antônio com a avenida Raul Alves, em Juazeiro (BA). Foi uma noite legal, a despedida de um colega de escola que passou no vestibular da Universidade Federal de Pernambuco e agora estava de mudança para Recife (PE). O que acontece ao publicar uma foto no Instagram?

1. Todas as informações de lugar, data, horário e marca do aparelho ficam gravadas em uma foto digital. Onde quer que esta foto vá, ela guarda a informação de que foi tirada usando um celular Samsung J1 Mini às 22:32 do dia 14 de janeiro de 2017 no restaurante Braseirão, que fica na esquina da rua Santo Antônio com a avenida Raul Alves, em Juazeiro (BA).

2. Para publicar a foto, você precisou entrar no Instagram. Se foi pelo aplicativo de celular, esta informação é passada ao Instagram. O aplicativo guarda informações sobre seu aparelho, como a marca, o tipo da câmera, o número IMEI (o identificador internacional único que funciona como um “RG do celular”) etc..

3. O Instagram agora sabe que você tirou uma foto com um celular Samsung J1 Mini às 22:32 do dia 19 de janeiro de 2017 no restaurante Braseirão, que fica na esquina da rua Santo Antônio com a avenida Raul Alves, em Juazeiro (BA), que você não tirou a foto diretamente pelo aplicativo, e que você acessou o aplicativo às 13:12 do dia 20 de janeiro de 2017 para publicá-la.

Todas estas informações sobre lugar, data, horário, modelo do aparelho, hora de entrada e saída da internet, quantas vezes a internet foi usada por dia, que sites foram visitados etc., são chamadas de metadados. Eles existem por necessidades técnicas dos aparelhos, das operadoras, das redes sociais etc., e têm muitos usos. As violações de privacidade na internet costumam ser ligadas à violação de dados. Mas e os metadados?

Exatamente porque respondem a necessidades técnicas, o exame e armazenamento de metadados por aparelhos, aplicativos, operadoras, redes sociais etc. não costumam ser tratados como uma violação de privacidade. Mas vamos entender no que pode resultar o exame e o armazenamento de metadados? Eis outro exemplo:

  1. Cláudia passou meses juntando dinheiro para, enfim, trocar a geladeira, que já estava há muito tempo dando problema.
  2. Cláudia bateu perna nas lojas de eletrodomésticos de Novo Aripuanã (AM), onde mora, em busca de uma geladeira que pudesse pagar, até que uma amiga sua, Neide, garantiu a ela que comprar pela internet é mais barato. Cláudia, então, usou o celular, entrou no Google e fez a seguinte pesquisa: “preços de geladeiras”.
  3. O Google mostrou a Cláudia vários modelos de geladeiras nos sites da Ricardo Eletro, das Casas Bahia, da Magazine Luiza etc. Cláudia escolheu a geladeira que cabia em seu orçamento e usou o cartão de crédito de sua amiga Neide para fazer a compra, porque ela não tem mais cartão.
  4. Todo celular com sistema Android exige o cadastro de uma conta do Google para que serviços básicos funcionem adequadamente. Como os celulares com sistema Android vivem conectados ao Google vinte e quatro horas por dia, toda pesquisa feita nestes aparelhos usando o Google ficou registrada no histórico de buscas de Cláudia – que vem ativado por padrão em toda conta do Google até que o usuário vá até as configurações de segurança de sua conta e desligue-o. A Google já sabia que Cláudia é mulher, que tem quarenta e um anos, que mora em Novo Aripuanã (AM), que trabalha como pescadora, lavadeira e vendedora autônoma (Hinode e Rommanel principalmente), e que frequenta os cultos do Salão do Reino das Testemunhas de Jeová que fica na rua Dezesseis de Fevereiro. Como os filhos de Cláudia usam o celular dela para fazer pesquisas escolares, a Google sabe, pelo conteúdo das pesquisas, que ela tem filhos que estão entre o 7º e 9º ano do ensino fundamental. Agora, além disso, a Google sabe que Cláudia procurou muito por uma geladeira, então deve ter algum interesse por geladeiras, ou por eletrodomésticos.
  5. Ao vender pelo site, a loja onde Cláudia comprou a geladeira pede para criar um cadastro com login e senha. O navegador do celular de Cláudia, que é o Chrome (da Google), foi usado para fazer este cadastro; a informação de que Cláudia fez um cadastro nesta loja é guardada pelo navegador.
  6. Como a compra foi feita usando o cartão de crédito de Neide, agora este cartão foi relacionado com o cadastro de Cláudia. Por algum tempo, elas serão relacionadas também nas propagandas, recebendo coisas parecidas.
  7. Neide e Cláudia passam a receber propagandas de geladeiras e eletrodomésticos por algumas semanas sempre que fazem pesquisas no Google. Os filhos de Cláudia se assustam: “mãe, como é que o Google sabe que a gente comprou uma geladeira nova? Tem muita propaganda, olhe aqui!”
  8. Como metadados circulam com muito mais facilidade entre aparelhos, navegadores, aplicativos, redes sociais etc. do que os dados, todas estas informações são compartilhadas entre empresas diferentes. Chega ao Facebook a informação de que Cláudia tem interesse em geladeiras, e que Neide, amiga dela nesta mesma rede social, também se interessa pelo assunto.
  9. Como o WhatsApp foi comprado pelo Facebook em 2014, o Facebook sabe que Cláudia e Neide trocaram muitas mensagens entre as 19:03 e as 19:47 do dia 8 de dezembro de 2016, quando a compra foi feita. As duas já conversavam muito entre si, especialmente nas duas primeiras horas antes do culto no Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, mas a troca de mensagens foi ficando mais intensa desde o dia 28 de novembro. Cruzando estas informações com os metadados que já existiam, o Facebook agora sabe que Cláudia e Neide podem ter conversado sobre alguma coisa fora da rotina, procura ver metadados do uso de redes sociais e sites de internet das duas nos últimos dias e chega até a compra da geladeira. As duas começam a receber propagandas de geladeiras e eletrodomésticos por algumas semanas agora também quando acessam o Facebook.
  10. Tanto os aplicativos do Google quanto os do Facebook têm permissão para ler GPS. Por isto, as duas empresas sabem que Neide e Cláudia passam algum tempo juntas no Salão do Reino das Testemunhas de Jeová que fica na rua Dezesseis de Fevereiro, em Nova Aripuanã (AM). Como as duas empresas também têm a informação de que este endereço é um lugar de culto das Testemunhas de Jeová, elas já recebiam anúncios direcionados para um público TJ. O GPS dos aparelhos de todos os frequentadores deste Salão do Reino também aparecem no mesmo endereço ao mesmo tempo nos dias e horários de culto, por isso os frequentadores deste templo recebem o mesmo tipo de propaganda direcionada a um público TJ. (É verdade: qualquer pessoa que tenha feito algum anúncio usando Facebook ou Google AdSense sabe que o nível de segmentação de público para propaganda direcionada nestas duas ferramentas é simplesmente assustador.)
  11. O Facebook e o Google entendem que as pessoas cujos celulares aparecem muitas vezes perto são próximas por alguma razão, e por isto analisam seus perfis para que recebam propagandas parecidas. As propagandas direcionadas a uma ou duas pessoas podem, assim, “contaminar” os celulares de pessoas próximas: a quantidade de informações que indicam ao Google e ao Facebook que estas pessoas andam juntas, estão juntas, frequentam lugares juntas é tão grande que fica fácil para os computadores destas empresas “deduzir” que algum gosto ou interesse em comum. Fátima, por exemplo, é amiga de Cláudia e Neide, também frequenta o mesmo Salão do Reino, e deu os parabéns a Cláudia pela compra. Pouco depois, ao chegar em casa, abriu o Facebook e se assustou porque viu uma propaganda de geladeira. “Nossa, como é que o Facebook sabe que eu falei de geladeira hoje?”

O uso de metadados para propaganda não tem nada de ilegal, parece ser bem inocente. Os problemas com tanta informação acumuladas sobre nós por estas empresas são outros, bem mais graves.

No Facebook, aquilo que aparece para nós vermos é filtrado com base em nosso comportamento. Assim, se alguém clica em “curtir” ou “compartilhar” em várias notícias sobre desmatamento, o Facebook vai começar a mostrar a esta pessoa mais notícias e publicações sobre desmatamento – reduzindo, assim, a chance que ela tem de se informar sobre outros assuntos.

No Google, os resultados da pesquisa são classificados de acordo com nosso histórico de pesquisas – reduzindo a possibilidade de encontrarmos algo que não corresponda a algo que o Google supõe, interpreta e deduz que desejamos depois de “ler nossas mentes” através dos metadados.

Os filtros criados por estas empresas, com a desculpa de criar um “ambiente confortável”, prejudicam milhares de empresas, jornais, revistas, canais do YouTube, perfis do Instagram etc. que por qualquer razão não apareçam entre os primeiros resultados da pesquisa. Deste modo, por exemplo, quanto mais as pessoas assistem vídeos de Whindersson Nunes e Felipe Neto, mais bem classificados eles serão, e menos espaço haverá para vídeos de outros humoristas.

Como poucos países regulamentam o uso e armazenamento das informações e metadados sobre nossos hábitos na internet, não há nenhuma garantia de que eles estejam sendo usados apenas para fins legais e permitidos.

Da mesma forma como os governos erram e administram mal a enorme quantidade de informações sobre os cidadãos, que estão guardadas sob sua responsabilidade, empresas podem cometer erros parecidos com os metadados, podendo gerar situações constrangedoras – como a apresentação de propagandas da Walmart, Johnson & Johnson, Pepsi, Adidas, Volkswagen, L’Oreal, Netflix e outros grandes anunciantes em vídeos de extremistas e neonazistas, associando estas marcas a um discurso de violência e ódio.

Felizmente, há meios para minimizar o impacto deste tipo de coleta de informações. Trataremos deles num próximo artigo.

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