Por Asad Haider e Salar Mohandesi

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Conhecimento Exato e Positivo: o Questionário de Marx

Em 1880, La Revue socialiste solicitou a um velho Karl Marx que fizesse um questionário para circular entre a classe trabalhadora francesa. Chamado “Uma Enquete Operária”, ele foi uma lista de exatamente 101 questões detalhadas perguntando sobre tudo, do horário das refeições até salários e hospedagens.[1] Em um olhar mais atento, parece haver uma progressão na linha de questionamento. O primeiro quarto, mais ou menos, faz perguntas aparentemente desinteressadas sobre o comércio, a composição da força de trabalho empregada na empresa e as condições gerais do local de trabalho, enquanto o quarto final muda em termos gerais para questões mais explicitamente políticas sobre opressão, “associações de resistências” e greves.

O questionário começa com algumas reflexões preliminares sobre o projeto como um todo. Essas mais ou menos quinze linhas basicamente correspondiam a um único princípio: aprender a partir da própria classe trabalhadora. Somente a classe trabalhadora poderia prover informação significativa sobre sua própria existência, assim como somente a própria classe trabalhadora poderia construir o novo mundo. Mas por trás desse simples chamado está uma série de motivações complexas, objetivos e intenções, fazendo a enquete operária — esse aparente desejo modesto de aprender a partir dos próprios trabalhadores — um projeto altamente ambíguo, multifacetado e indeterminado desde o princípio.

No seu nível mais rudimentar, a enquete operária era para ser o estudo empírico dos trabalhadores, um objeto de investigação comumente negligenciado em seu tempo. “Nem um único governo, seja monarquia ou república burguesa, se aventurou até agora para empreender uma investigação séria sobre a posição da classe trabalhadora francesa”, lamentava Marx. “Mas quantas investigações foram empreendidas sobre crises — agrícolas, financeiras, industriais, comerciais, políticas!”.

Desde que essas outras formas de investigação — como aquelas intermináveis pesquisas do governo sobre esta ou aquela crise — simplesmente não poderiam produzir qualquer conhecimento real sobre a classe trabalhadora, algumas novas formas de investigação deveriam ser desenvolvidas. Seu objetivo, como aquelas cem perguntas revelavam, seria acumular o máximo possível de material factual sobre os trabalhadores. A finalidade, Marx escreveu, deveria ser adquirir “um conhecimento exato e positivo das condições em que a classe trabalhadora — a classe a quem o futuro pertence — trabalha e se move”.

Com certeza, mesmo nos tempos de Marx, inspetores de saúde e outros já tinham começado a levar a cabo esse tipo de investigação no mundo da classe trabalhadora. Mas essas não apenas eram investigações oficiais assistemáticas e parciais, elas tratavam os trabalhadores como mero objeto de estudo, da mesma maneira que o solo e as sementes daquelas bem investigadas crises agrícolas. O que separa a enquete operária desses outros estudos empíricos era a crença de que a própria classe trabalhadora sabia mais sobre a exploração capitalista do que qualquer um. São os “trabalhadores na cidade e no campo”, pensou Marx, que “sozinhos podem descrever com conhecimento completo os infortúnios de que sofrem”.

Com essa breve intervenção, Marx estabeleceu um desafio epistemológico fundamental. Qual era o relacionamento entre o conhecimento dos trabalhadores de sua exploração e a análise científica das “leis do movimento” da sociedade capitalista? Em O Capital, ele devotou várias páginas para documentar o processo de trabalho, ainda que isso parecesse ser parte de uma exposição lógica que começa com a exposição crítica do valor, uma categoria abstrata da economia política burguesa. Mesmo assim ele manteve em seu posfácio de 1873 que “Enquanto tal crítica representa uma classe, ela só pode representar a classe da qual a tarefa histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final de todas as classes — o proletariado”.[2] Louis Althusser, em seu famoso prefácio para a tradução francesa, sugeriu que isso significava que O Capital somente poderia ser compreendido a partir de um ponto de vista especificamente proletário, já que esse era “o único ponto de vista que faz visível a realidade da exploração da força de trabalho assalariada, que constitui todo o capitalismo”.[3] Contudo, a visão do próprio Marx permanece pouco clara. A enquete operária era um meio de acessar o ponto de vista proletário? Era simplesmente a participação dos trabalhadores na produção de um conhecimento universal?

O que é abundantemente claro é que Marx tinha uma grande estima pela ação autônoma da classe trabalhadora. Os trabalhadores não apenas deveriam prover conhecimento sobre a natureza do capitalismo, eles seriam os únicos que poderiam derrubá-lo: apenas os trabalhadores na cidade e no campo “e não salvadores, enviados pela providência, podem aplicar energicamente os remédios de cura para as doenças sociais de que são vítimas”. Essa prática de enquete operária, então, implicava uma certa conexão entre o conhecimento proletário e a política proletária. Os socialistas deveriam começar aprendendo da classe trabalhadora sobre suas condições materiais. Só então eles deveriam estar aptos para articular estratégias, compor teorias e esboçar programas. A enquete seria, portanto, o primeiro passo necessário para articular um projeto socialista historicamente apropriado.

A prática de disseminar a enquete também representava um passo na organização deste projeto, por estabelecer vínculos diretos com os trabalhadores. “Não é essencial responder a todas as perguntas”, escreveu Marx. “O nome do trabalhador ou trabalhadora que está respondendo não será publicado sem permissão especial, mas o nome e o endereço devem ser dados para que, se necessário, nós possamos nos comunicar”. Para alguns, esta tentativa de forjar contatos reais com os trabalhadores era de fato uma intenção genuína do projeto.

É claro, Marx não menciona nada sobre construir organizações nesse pequeno artigo. De qualquer forma, ele indicaria mais tarde que a pesquisa e a organização tinham uma relação íntima. Em 1881, apenas um ano depois de escrever este questionário, Marx recebeu uma carta de um jovem socialista que queria saber o que ele pensava sobre os recentes chamados para refundar a Associação Internacional dos Trabalhadores. Marx revelou que se opunha a este projeto. A “conjuntura crítica” para tal associação não tinha chegado e tentar formar uma seria “não só meramente inútil, mas danoso”, já que isso não seria “relacionado às condições imediatas nesta ou naquela nação em particular”.[4]

Logo, qualquer organização precisava estar ligada a condições históricas concretas. Nós podemos concluir da resposta entusiasmada de Marx para La Revue socialiste que ele reconhecia um papel estratégico para a pesquisa; nesta conjuntura específica, a enquete era uma medida mais apropriada do que lançar uma organização e talvez fosse até a precondição para isso.

Marx morreu alguns anos após essa primeira tentativa de enquete, sem receber uma única resposta. Mas o projeto teria uma notável sobrevida no século seguinte. Conforme nos afastamos do projeto original de Marx para avaliar a muito mais longa história da enquete operária, é difícil não notar a singular instabilidade desta prática. Embora quase todos os exemplos toquem as coordenadas primeiramente desenvolvidas por Marx, a enquete foi polissêmica e contraditória. Esta introdução irá analisar seu desenvolvimento como uma forma de investigar suas questões subjacentes.

Referências

[1] Karl Marx, “Enquête ouvrière” e “Workers’ Questionnaire” em Marx-Engels Collected Works vol. 24. (New York: International Publishers, 1880). A versão inglesa em marxists.org tem apenas 100 questões; isso é porque Marx faz duas questões separadas sobre a diminuição dos salários em períodos de estagnação e sobre seu aumento em períodos de prosperidade (questões 73 e 74), sendo que a primeira foi omitida nessa versão inglesa.
[2] Karl Marx, Capital, Volume 1, trad. Ben Fowkes (New York: Penguin, 1976), 98.
[3] Louis Althusser, Lenin and Philosophy (New York: Monthly Review Press, 2001), 65.
[4]Marx to Domela Nieuwenhuis In The Hague”, disponível online em marxists.org.

Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine.

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