Por um ácrata

O problema é justamente a democracia. Foi ela que apassivou as pessoas e as convenceu de que existe um espaço legal onde as coisas podem se resolver de forma justa, neutra e onde todos têm as mesmas condições de se defender. É a democracia que leva multidões para as ruas — indignadas com a morte de um preto por asfixia, nove pretos por esmagamento, ou um outro preto fuzilado dentro de casa — levantando cartazes em protesto, exigindo justiça, como se houvesse alguma chance de serem lidos e considerados por alguém que não seus pares.

No limite, é ela que subsidia a atitude de quem filmou e assistiu abismado, mas não partiu para cima do policial que sufocava o cara.

É a democracia que preserva contrassensos através dos anos, como as palavras de ordem que bravatam o fim da Polícia Militar, enquanto a repressão come a cada massacre episódico. É ela mesma que escreve faixas pedindo paz nas quebradas nos dias depois das noites ensanguentadas, enquanto esperam que as câmeras da TV se apaguem e a dispersão venha com gás. “O que exigem do chacal? Do lobo, que mude de pele? Querem que ele mesmo arranque seus dentes?” [*] É ela que nos amortece e circula petições online, ao invés de armarmos as nossas turbas para decididamente queimar e destruir os quartéis policiais.

Vão para a justiça os casos. A depender da repercussão, talvez os tiras sejam demitidos nos Estados Unidos. Aqui talvez sejam afastados temporariamente da rua. O inquérito policial então reconstituirá os casos, farão perícias, ouvirão depoimentos e no fim talvez os policiais sejam realocados para serviços administrativos como “punição” — leia-se jogar paciência, consumir pornografia ou destratar pessoas nas redes sociais. E se, para efeitos de exemplo, fossem rigorosamente julgados e recebessem a pena que de fato lhes cabe? Por acaso a exceção muda a regra?

É a democracia que nos tapeia sorrateiramente dia após dia e nos apresenta dados para medir as perdas de ontem com as perdas de hoje, como se houvesse algum ganho em perder menos. “Veja, há que se considerar que antes os lobos não ladravam assim… com tanta empáfia, e isso faz sim muita diferença!” Ora, então o que importa é o grau de indelicadeza e não a mordida?

É essa dama amarela de medo, que com seus encantos fétidos nos tornou esses seres modorrentos, suplicantes e humilhados, implorando compaixão dos nossos algozes. É ela que nos faz recuar nos passos que damos em direção à rebeldia para ponderar os riscos de lutar. É preciso ser consequente. Ai, Senhor, e se eu perder o emprego? Depois não se espante ao ouvir: Trabalhar anda matando, sim, mas é só fazer as contas para ver que de fome morre mais que de vírus.

É a democracia que sonega nossa condição permanente de guerra e nos desarma com um contrato social que legaliza nossa morte, lenta e cotidiana, batizada como trabalho assalariado. É ela que cria seus eufemismos para definirmos isso que a gente respira como vida, a ponto de defendermos nós mesmos essa condição. E que nos induz a agradecer ao dono do curtume pela possibilidade de alimentar os nossos e mantê-los… VIVOS. Relevo que roubem minhas férias, relevo que diminuam meu salário, descontem os dias parados, suspendam MEU contrato. Não precisa depositar meu FGTS, relevo! EU RE-LE-VO!!! A economia foi prejudicada pela pandemia, afinal. Todos sofremos as consequências disso, as empresas não estão ganhando, como haveriam de ter dinheiro para nos pagar sem trabalhar? Agradeça por ainda ter um emprego!

Há algum tempo vejo muitos dos nossos assustados com criaturas macabras que subiram do umbral e agora aterrorizam almas com um barulho ensurdecedor e palavras fora do protocolo. Não fosse o dicionário primoroso da democracia que nos adestrou, talvez não tivéssemos perdido a coragem de lutar e temêssemos mais a miséria do que a morte. E cuidem para não ajudar a desfigurar os poetas, temendo a miséria, não aceitaríamos nem o emprego nem a morte!

[*] A defesa dos lobos contra os cordeiros, Hans Magnus Enzenberger.

A fotografia é de Mark Vancleave.

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