Por Emerson Martins

No último sábado (06/06), um vídeo do rapper Emicida, explicando porque não endossaria as manifestações antifascistas de domingo, causou polêmica nas redes sociais. Apesar de discordar de boa parte das razões que ele apresentou para não comparecer ao ato – que o ato podia ser uma armadilha do bolsonarismo, o medo de infiltrados, a crítica à “falta de organização prévia” (Rosa Luxemburgo que o tenha!), etc – o núcleo da argumentação era verdadeiro: não é o momento para esse tipo de ato. Primeiro, porque estamos no meio de uma pandemia de coronavírus, que sequer atingiu o pico ainda e está matando um brasileiro por minuto. As vítimas, nós conhecemos: são os mais pobres, os de pele mais escura, os que tem menos acesso a cuidados básicos de saúde e higiene. Uma manifestação massiva nesse momento iria inevitavelmente agravar esse quadro macabro. Em segundo lugar (daqui em diante falo por mim; adeus Emicida!), é preciso olhar para a correlação de forças. É fato que Bolsonaro nunca esteve tão isolado, todas as pesquisas o mostram. Mas isso se deu muito mais porque ele perdeu apoio entre os mais ricos do que por um avanço dos trabalhadores. Basta olhar pro lado: cite a última greve vitoriosa de que você se lembra! Converse com os seus colegas no trabalho e me diga se existe alguma esperança de que virão dias melhores. As próprias estatísticas mostram isso – 2019 foi o ano com o menor número de greves desde 2013. Sim, ainda ocorreram muitas greves, mas temos que nos atentar para a tendência – a cada ano ocorrem menos greves. E qual a principal característica dessas greves? 85% delas são defensivas, isto é, pela manutenção de direitos. Salários atrasados, benefícios cortados… é isso que tem movido os trabalhadores. Estamos tomando uma surra dos capitalistas. Nossa classe está na defensiva. Se Bolsonaro vier a cair, será por um acordo pactuado por cima. Se tivermos sorte nós iremos a reboque dos capitalistas.

Em outras conjunturas, essas manifestações seriam apenas inócuas. Desde o “Não vai ter Copa” até o “Ele Não”, passando pelo “Fora Temer” e o “Lula Livre”, já tivemos inúmeras manifestações do tipo. Ocorre que estamos numa pandemia e essas manifestações deixam de ser apenas inócuas e passam a ser nocivas. A troco de quê vamos nos expor ao contágio, nos aglomerando nas ruas? As manifestações serão capazes de interromper o morticínio em curso? Pelo que se viu no último domingo, não. Talvez sirva para isolar ainda mais o bolsonarismo e enfraquecê-lo mais um pouco; talvez os partidos de esquerda consigam resultados melhores na próxima eleição… Talvez. “Mas as pessoas já estão saindo para trabalhar, porque não podem sair para protestar?”. As pessoas estão saindo para trabalhar porque, do presidente da República ao dono da lojinha da esquina, estão todos empenhados em sabotar os esforços pelo isolamento social [1]. A quarentena, que em outros países foi imposta pelos próprios capitalistas através do Estado, aqui no Brasil se deveu a uma combinação da inércia do poder local com a pressão dos trabalhadores (vide as mobilizações nos call center pelo homeoffice, as lutas em diversos locais para que trabalhadores do grupo de risco fossem afastados, etc.) [2]. Essa quarentena débil, imposta meio que “de baixo para cima”, é o que ainda tem evitado milhares de mortes. Mas a resposta governamental, de especular com a fome e a miséria de quem está tentando se proteger, tem conseguido pouco a pouco quebrar essa resistência de base pela quarentena. As manifestações de domingo apenas coroam a nossa derrota.

“Então a gente deve simplesmente aceitar tudo e não fazer nada?”. Para algumas pessoas, não se aglomerar equivale a não fazer nada. Mas felizmente a realidade é bem mais complexa, e os trabalhadores não estão apenas trabalhando nessa pandemia – eles também estão lutando. Sim, as condições não são as mais favoráveis, mas ainda há muitas possibilidades do que se pode fazer: assembleias virtuais; pequenas ações de sabotagem (como um call center que foi inteditado pelos próprios trabalhadores, atrasando o início do expediente); os buzinaços e travamentos de vias públicas que os entregadores de aplicativos tem feito; e até mesmo pequenas passeatas, como as que os trabalhadores da saúde fizeram. Tudo isso está acontecendo bem debaixo dos nossos olhos – nem sempre com os devidos cuidados, infelizmente. Mas a isso chamam “não fazer nada”. De fato, essa resistência miúda, cotidiana, silenciosa e invisível, sempre foi vista com desdém. Afinal, isso não sai na capa do jornal, nem dá votos para ninguém.

“Mas e a revolta nos EUA? Eles estão errados então?”. A comparação é tão fora de lugar que nem valeria a pena comentar. O abismo que separa as manifestações de vanguarda que tivemos no Brasil com a revolta popular que sacode os EUA já deveria bastar. Mas aqui talvez se revele um traço da ilusão que acomete a esquerda. Que ilusão é essa? É a crença de que é possível “fabricar” uma revolta popular. Como se ao convocar uma manifestação, as massas subitamente iriam se rebelar e queimar delegacias. Rebeliões como a que varreu os EUA não são fabricadas artificialmente. Não tem sentido dizer que “as pessoas não deveiam estar se manifestando nos EUA”, porque não se trata de uma decisão arbitrária de quem quer que seja, mas da própria “natureza das coisas”. E aqui no Brasil nós estamos longe de um cenário parecido.

Domingo tem ato novamente. Não contem comigo.

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[1] É fato que diminuiu bastante à adesão ao isolamento, mas os dados mostram que a gente ainda não retornou aos níveis de deslocamento pré-pandemia. Ainda existe quarentena e a adesão a ela ainda é maior do que parece à primeira vista. Segundo dados da Apple e da Google, citados na reportagem abaixo, o nível de deslocamento no Brasil hoje equivale a 53% do nível pré-pandemia – esse nível chegou a 22% em meados de março. (Não confundir com o índice de isolamento social, que diz respeito às pessoas que não saíram de casa).

[2] Como o Maigret Jules bem apontou em um texto recente:

“Existia, então, um amplo movimento na base da sociedade para tentar se defender da pandemia de forma mais ou menos autônoma, como aconteceu em Paraisópolis (comunidade paulista). Foi o exemplo mais visível, mas houve vários outros: redes de vizinhos em prédios, movimentos de favelas, redes de solidariedade entre ocupações urbanas como as do MLB (Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas) e até movimentos empresariais. Diante de uma ação fraca e contraditória do governo, predominou uma quarentena através da autodisciplina.
Foi esse movimento que impulsionou Mandetta para ter o dobro da popularidade de Bolsonaro, situação visivelmente percebida por ele ao manter coletivas-comícios televisionados diariamente para animar um movimento ativo, coordenado e integrado.”

Quando as pessoas deixam de frequentar o comércio, mesmo com a reabertura, não é um movimento meramente passivo. O que à primeira vista parece mera obediência às recomendações das autoridades (ficar em casa), pode se revelar como uma forma de insubordinação que a gente tende a invisibilizar por não se enquadrar no que geralmente se compreende por “insubordinação”. É aquilo que o velho barbudo disse certa vez: “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”.

1 COMENTÁRIO

  1. De fato construir a quarentena (com toda a treta que isso envolve) é o foco das lutas hoje. E muitos trabalhadores tem se indignado cada vez mais com essa tensão (de um lado morrer de covid e de outro da ausência do trabalho) o que é algo pra ser trabalhado ainda mais, deixar claro o que se pretende, a necessidade de nos mantermos fora do trabalho e que as condições de reprodução da nossa existência estejam garantidas, etc.

    O problema é que as tretas de rua são de fato inevitáveis. Eles (e parte de “nós”) imaginavam que as organizações mais tradicionais de esquerda”dirigiriam” esses atos, e parece claro que os ataques sistemáticos (de “perfumaria” muitas vezes) contra os ponto-passivos das “tradições esquerda” foram pra estimular os atos de rua desde 2018. O fato de ter surgido das torcidas organizadas e ter sido maior do que esperado no primeiro domingo foram surpreendentes para todos. De alguma maneira o ato puxado pelas torcidas escapou do quadro de análise e de respostas que o bolsonarismo tinha construído.

    Porém, como ficou claro no segundo domingo, também foram ‘na medida’ dos interesses do “consenso sanitário”, que pretende simplesmente enquadrar o Bozo como um presidente comum, típico da nova república. E foram na medida porque “pequenas” e, no mais, bem enquadradas disciplinarmente. Isto, esta característica, trouxe consigo, até como “apêndice” do consenso sanitário, os oportunistas do PDP (“radical” edition) como “direção legítima” das manifestações do último domingo (Boulos foi alçado pela mídia à representação organizada e legítimo interlocutor dos atos).

    O “problema”, me parece, é que esse foi o primeiro esturro dos trabalhadore contra o que se vive. A pressão cada vez mais acentuada pela política (no mais, genocida) de Estado vai se expressar em tantos outros “esturros”. Pra piorar, nada aponta para um aferrecimento das contradições do cotidiano dos trabalhadores. Acho que é impossível que não aconteçam outros atos, até mesmo pela sobrevivência. E penso que daí os termos da discussão vão se alterar. A defesa da quarentena e da saúde dos trabalhadores pode ter que se entrelaçar com outras tantas manifestações e tretas de rua que, a princípio, não nos pareciam “razoáveis”.

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