Por Jorge Luiz
“Não Matarás”: não basta.
Teu mandamento será este: farás tudo para que o outro viva.
Emmanuel Medeiros Viera, Agregar
Um grande feriado. Tentando explicar as razões do sucesso do nacionalismo sérvio, com sua política de limpeza étnica, o filósofo Slavoj Zizek cita um jornalista para quem “Milosevic converteu o cotidiano dos sérvios em um grande feriado”. Em que consistiu esse “feriado”? Nas palavras de Zizek “o ‘fundamentalismo’ nacionalista funciona como operador de um ‘você pode!’ secreto, mal e mal oculto”, uma situação na qual “você é autorizado a violar as normas rígidas da convivência pacífica numa sociedade liberal tolerante, você pode beber e comer o que quiser, aderir aos costumes patriarcais proibidos pela correção política liberal” [1].
Explicando o sucesso popular do regime sérvio, o filósofo fala de “um líder que representa o chamado incondicional do superego brutal e obsceno pela suspensão de todas as proibições e o gozo de uma orgia destrutiva permanente”. Isso lembra alguma coisa ao leitor?
Quando Bolsonaro nada no litoral paulista, num balé patético que um novo Chaplin deveria imitar, ele se oferece como essa “divindade que não proíbe nada” e conclama: “deem ouvidos a meu chamado, irmãos, povo, multidão” [2].
Entre 2010 e 2011 Bolsonaro tornou-se uma subcelebridade de programas de televisão de pouca categoria. Acesso midiático conseguido por um motivo: o “tempero” que suas opiniões antigays propiciavam aos programas. Sua oposição frontal e bem-sucedida ao apelidado “kit gay” o alçou da condição de deputado insignificante, com uma pequena base eleitoral restrita aos militares, para lhe abrir as portas da mídia, permitindo o contato com um público mais amplo.
Relembrei essa história num artigo anterior [3]. Podemos citar, a título de ilustração, alguns dos primeiros degraus da fama do então deputado: o “debate” promovido no programa “Manhã maior” da RedeTV, em que Bolsonaro participou com o diretor da ABGLT, Beto de Jesus [4], assim como outro “debate”, no programa do Ratinho, que opôs Bolsonaro e Toni Reis, ambos em 2010 [5], ou a edição do programa Superpop que congregou Bolsonaro, um pastor, Felipeh Campos e Luísa Marilac, em 2011 [6]. Bolsonaro foi se tornando a cara da homofobia brasileira, vocalizando a reação ao modesto avanço que o governo Lula tinha dado no combate ao preconceito. Sua mensagem era simples e promovia o pânico: “enquanto os pais estão trabalhando, o filho está lá sendo aliciado para ser homossexual” [7]. Assim ele ganhou projeção pública nacional.
O papel da homofobia (e lesbofobia e transfobia, devemos acrescentar, embora Bolsonaro tenha sempre enfatizado imagens fóbicas aos gays) como combustível para a projeção do ex-deputado nunca terminou. Sua condição de porta-voz disso foi lhe rendendo novos saltos de popularidade. Recentemente a jornalista Carol Pires observou a importância das opiniões homofóbicas para dar visibilidade a Bolsonaro em 2014, ano em que sua votação como deputado quadruplicou:
“Analisando o Google Trends, dá para ver que o primeiro pico de menções ao Bolsonaro na internet foi em fevereiro de 2014. Tinha acabado de ter o primeiro beijo gay numa novela da Globo. No dia seguinte o Bolsonaro deu uma entrevista dizendo que aquilo era ‘um estímulo ao homossexualismo’ e dois dias depois ele foi chamado a opinar sobre a morte de gays no Brasil no programa da Luciana Gimenez” [8].
A ascensão dessa figura ignóbil à condição de chefe do Executivo impõe aos gays e outras minorias atingidas por suas agressões uma série de desafios que tornam o refúgio no individualismo, para nós, uma fantasia ainda mais precária e irreal. Acredito que falte clareza política quanto a esses desafios para aqueles que acham que questionar as aglomerações gays é um ato homofóbico em si mesmo e que a reflexão sobre esses acontecimentos no seio da comunidade gay não é necessária, ou deveria ser mesmo proibida, por ser perniciosa e ofender o direito dos indivíduos. Exemplo desse pensamento é a postagem que reproduzo a seguir:
“A comunidade gay não pode ser responsabilizada por atitude isolada de alguns. Se alguns membros da comunidade gay aglomeraram, isso é um problema exclusivo dos mesmos! O presidente do Brasil aglomera, durante as eleições houve aglomerações, todos os dias há centenas de festas heterossexuais e pessoas sem máscaras, portanto fica mais do que claro que as aglomerações em plena pandemia de COVID-19 é [sic] um problema geral e não da comunidade gay, associar a comunidade gay às aglomerações é gayfobia (…) Não somos um grupo homogêneo, somos seres humanos, indivíduos, cada um sabe da sua vida [grifos meus]” [9].
Eis uma representação do individualismo atomístico que aludi no meu primeiro texto no Passa Palavra [10]. No entanto, somos sim um grupo: os conservadores já nos transformaram em um grupo. Fomos escolhidos como bodes expiatórios de uma aliança reacionária atualmente no poder. Embora a agenda desses neofascistas seja ampla, eles estão sempre dispostos a criar pânicos sexuais, nos usando como alvos para reunir suas bases.
Por isso, no grande feriado que Bolsonaro hoje promove no país, nunca seremos aceitos. E, no entanto, o chamado do presidente, seu canto de sereia nas águas da Praia Grande, encontra eco em todos aqueles para quem a liberdade começa e termina na individualidade, para quem um chamado à solidariedade soa como uma acusação de culpa. No grande feriado de Bolsonaro, nos oferecem o mundo como ele é, e pedem que nos contentemos com ele: o resultado só pode ser uma satisfação reduzida e triste.
Vieram me avisar, seguidamente, que os gays são seres humanos e por isso não se pode esperar deles nada. “Eu não sei porque esperavam que com gays seria diferentes como se fossem os alecrins dourados da política e da cidadania” [11], disse um, “o desafio que os homossexuais enfrentam na sociedade não faz deles seres perfeitos” [12], disse outro. Um esclarecido acadêmico pontificou: “essa ideia de que pessoas pertencentes a grupos minoritários precisam apresentar retidão moral e caráter ilibado precisa ser rompida com urgência” [13], enquanto outro afirmava: “Não, nós não somos heróis, só queremos o direito de poder existir, de formar família, de amar…” [14].
O que estes comentários revelam, para além da deslavada autocomplacência, é um desejo de adequação à norma e participação no mundo como ele é que se esgota em si mesmo. Não haveria melhor testemunho do esgotamento das energias utópicas que certa vez animaram o ativismo das dissidências sexuais do que essas palavras.
Acredito que a situação atual torna a reinvenção de um horizonte criativo cada vez mais necessária. A imaginação política precisa ser recuperada por aqueles que não se sentem à vontade numa hegemonia neoliberal tendencialmente neofascista. Acredito que os gays e as demais dissidências sexuais e de gênero tenham uma contribuição original para dar a esse trabalho de invenção, em busca de modos de vida que sejam formas de resistência efetiva, e não impliquem na reprodução guetificada das imagens normativas do mundo.
Há quem ache que as identidades já resolveram tudo: que entre nós e o Bolsonaro não há nenhum ponto de contato. Contrariamente a isso, acredito que um modo de vida distante do afeto perverso que nos governa é uma invenção diária. Como disse Foucault, a quem citei no texto anterior em tom de homenagem:
“Outra coisa da qual é preciso desconfiar é a tendência de levar a questão da homossexualidade para o problema ‘Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?’ Quem sabe, seria melhor perguntar: ‘Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?’ O problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. E isso, sem dúvida é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. Temos que nos esforçar em nos tornar homossexuais e não nos obstinarmos em reconhecer que o somos”.
Dedico esse texto aos meus críticos realistas, na esperança de que eles se tornem menos realistas. E o dedico também aos LGBT’s, em sua maioria homens gays jovens, que se aglomeraram nas festas e praias neste fim do ano. Afinal: talvez eles também queiram mudar o mundo.
Notas
[1] Slavoj Zizek, “O mutante”. Artigo na Folha de S.Paulo, 27 de julho de 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2707200816.htm
[2] Ainda citando o artigo de Zizek, que analisa a poesia de Radovan Karadzic, líder nacionalista sérvio e poeta. No trecho citado por Zizek: “Converta-se à minha nova fé, multidão / Eu lhe ofereço o que nunca ninguém teve antes / Lhe ofereço inclemência e vinho / Aquele que não terá pão será alimentado pela luz de meu sol / Povo, em minha fé nada é proibido / Há amor e há bebida / E olhar para o Sol por tanto tempo quanto quiserem / E essa divindade não proíbe nada / Dêem ouvidos a meu chamado, irmãos, povo, multidão”.
[3] Jorge Luiz “Pânicos sexuais: do kit gay aos ataques a arte”. Disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/panicos-sexuais-do-kit-gay-aos-ataques-arte/.
[4]https://www.youtube.com/watch?v=b3bBz2CCZv4&t=5s&ab_channel=CarlosBolsonaro
[5]https://www.youtube.com/watch?v=iNtrSqOXR60&ab_channel=JMBTuber
[6]https://www.youtube.com/watch?v=Ud4gOrREQqA&ab_channel=Jo%C3%A3oLu%C3%ADsSilva
[7] Como disse o deputado no plenário da Câmara, em 17 de março de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EAP_oCoXnMI&ab_channel=JairBolsonaro.
[8] Podcast Retrato Narrado, episódio 4: a construção do mito. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/o-mito/.
[9] Postagem da página “Jovens gays nascidos nos anos 90”, de 11 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=3059321987501661&id=1122839797816566.
[10] https://passapalavra.info/2021/01/135681/.
[11] De comentário no Facebook (infelizmente copiei e salvei, mas perdi a autoria).
[12] Do comentário de Carlos na postagem do primeiro texto.
[13] Comentário de Fernando Matos em postagem no grupo do ENUDSG. Disponível em: https://www.facebook.com/groups/enuds/permalink/3514939725249808.
[14] Do comentário de Ricardo Cantaloupe, em postagem no mesmo grupo. Disponível em: https://www.facebook.com/groups/enuds/permalink/3514939725249808.
Em destaque, Narciso, de Caravaggio (1571-1610). A outra obra é de Vincent van Gogh, Caveira com Cigarro Aceso (1853-1890).
Passando pra dizer que escrevi e enviei esse texto antes da publicação da ótima resposta a meu primeiro artigo, de Leonardo Miranda, “A existencia gay já não andava bem antes da pandemia”: https://passapalavra.info/2021/01/135755/
Muito forte está retrospectiva que ainda não entrou para as narrativas históricas desta época. Em 10 anos tudo mudou…Como se destrói rápido os direitos adquiridos.