A Pandemia da Classe Trabalhadora nos Estados Unidos

Por Robert Ovetz

Este artigo é parte do livro Lutas na pandemia, publicado em inglês pelo coletivo Notes from below e cuja Introdução foi publicada em português aqui. Fizeram parte da publicação os artigos A chamada da morte: pânico no atendimento, Atento: resistindo à chamada da morte e Odisseia da morte: persiste a luta pela vida na Atento.

Até o dia 09 de abril [de 2020], pelo menos 81 greves selvagens e uma ameaça de greve geral nacional de dois sindicatos do transporte varreram os Estados Unidos desde março, quando o país iniciou o lockdown para conter a disseminação do mortal vírus que causa a Covid-19. A organização e ações de greve feitas pelos trabalhadores foram de tirar o fôlego. De trabalhadores da construção a enfermeiras, em armazéns, no transporte, na indústria de carnes, call centers, carpinteiros, fast food, lixeiros, prisioneiros e uma grande variedade de outros tipos de trabalhadores, a luta de classes, de repente, está de volta à agenda nos EUA, e em grande parte do mundo. Greves não são a única forma de organização que está acontecendo, sendo acompanhadas de paralisações de trabalho curtas e protestos feitos por enfermeiras e médicos em sete estados contra a falta de equipamento de proteção crítica e petições, e a abrangente cobertura de mídia do trabalho árduo dos trabalhadores essenciais. Existem vários impactos e consequências importantes destas ações auto-organizadas e greves dos trabalhadores para a luta global da classe trabalhadora.

Não resta dúvida de que o capitalismo global está em uma crise profunda. Após vários anos de um crescente autoritarismo global que abraçou o nacionalismo e o protecionismo, grande parte da economia global está em um impasse. Demissões massivas de incontáveis milhões de trabalhadores e a perda da renda causaram um colapso no investimento, queda dos mercados e em breve, a receita tributária do governo se esgotará. A resposta do Estado tem sido aumentar ainda mais o socialismo de Estado para negócios, empresas e grandes proprietários e acabar com o keynesianismo para os trabalhadores dos países ricos, com total miséria e desastre para o resto da classe trabalhadora global.

Quando a crise da pandemia acabar a conta vai chegar. Vai continuar a existir o socialismo de Estado para as empresas e o capitalismo para os trabalhadores. O desemprego vai ser usado para martelar o que ainda resta de classe trabalhadora organizada e sindicalizada. O trabalho vai ser reorganizado para se tornar ainda mais precário e o local de trabalho ainda mais despoticamente controlado pela vigilância baseada em dados [data based surveillance]. Défices sempre crescentes, empréstimos e salvamento das empresas se tornarão a justificativa para mais austeridade neoliberal, privatização, desinvestimento e cortes de impostos para os ricos e para o capital e impostos regressivos sobre os trabalhadores. Poderes executivos de emergência serão normalizados, exercidos com violência grotesca por partidos autoritários e empresariais para recuperar o que é devido.

Para entender as imensas possibilidades disruptivas da auto-organização dos trabalhadores também será necessário se preparar para o inevitável contra-ataque. Há alguns esforços para iniciar essa preparação. O sindicato UNITE HERE está organizando seus membros, que estão quase todos desempregados já que o setor recreativo foi fechado, no sul da Califórnia e Nevada, assim como os trabalhadores que buscaram a sua ajuda. O sindicato United Electrical, Radio and Machine Workers of America se juntou com os Socialistas Democráticos da América [Democratic Socialists of America] para ajudar trabalhadores que estão buscando ajuda para organizar greves selvagens durante a pandemia. Reconhecendo que convocar uma greve geral não é organizá-la, Cooperation Jackson fez um chamado para uma greve geral e o sindicato National Educators United e sua sede na Califórnia convocaram ações para o 1º de Maio, incluindo greves.

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Em meio à onda de greves selvagens e um aumento de novas organizações, há algumas lições a serem aprendidas com essa expansão da luta de classes nos Estados Unidos.

Os trabalhadores estão se auto-organizando

A história que todos nós ouvimos, contada da direita à esquerda, de que os trabalhadores não podem ser organizados, que o capital e o Estado são muito poderosos, de que a vigilância em massa e o crescimento da extrema direita estão tornando a organização uma atividade muito perigosa, está baseada na premissa errada. Diante do terror de ficar mortalmente doente e espalhar o vírus para outras pessoas, do desemprego, da fome e de serem sacrificados pela economia capitalista, os trabalhadores não estão se organizando – eles estão se auto-organizando.

Isto significa que os sindicatos e outras organizações na esquerda precisam jogar fora suas táticas e estratégias arcaicas e descobrir que os trabalhadores estavam, estão e vão continuar se organizando de baixo para cima e disseminando suas lutas para alcançar suas necessidades. Os sindicatos sofrerão uma imensa pressão para finalmente abandonar o foco estreito na negociação sobre o agora há muito abandonado acordo fordista de produtividade – salários e se livrar do controle do acordo de trabalho e da lei trabalhista. Já passou da hora de nossos sindicatos aplicarem seu poder restante e seus vastos recursos em apoio à classe trabalhadora, em vez de apenas priorizar os seus membros leais.

Como quase todos os trabalhadores em greve não estão formalmente em sindicatos, muito provavelmente têm seus próprios comitês desconhecidos no local de trabalho, eles não são limitados pelo governo federal ou leis trabalhistas estaduais, acordos sindicais ou outros mecanismos de controle. É isso que torna as greves selvagens tão perigosas – elas não são gerenciadas e controladas.

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Trabalho Reprodutivo e Logístico são Centrais

O que une quase todas as greves selvagens é que elas estão sendo feitas pelos trabalhadores que fazem trabalhos de reprodução social, ou o que é eufemisticamente chamado de trabalho de cuidado, efetivo ou de serviços. A maioria dos sindicatos nos Estados Unidos abandonou os trabalhadores no setor de reprodução social, exceto aqueles nas indústrias de educação pública e serviço de saúde privado. A composição dos trabalhadores no setor de reprodução social é que eles são extremamente mal pagos e precários (quem não é mais, realmente?), desproporcionalmente pessoas de cor, com taxas altas de rotatividade, e são extremamente explorados em outras áreas da sociedade.

Além da enganosa suposição de que é impossível que os trabalhadores no setor de reprodução social se organizem, há também o erro fatal de presumir que o seu trabalho é improdutivo para o capital. Na verdade, o que costumava ser trabalho não assalariado que reproduzia a força de trabalho para o capital, o trabalho de cozinhar, limpar, cuidar e educar, feito primariamente por mulheres e meninas, tem crescentemente se tornado trabalho assalariado. De fato, muito deste trabalho assalariado é meramente a forma mercantilizada do trabalho não assalariado que elas ainda fazem ou costumavam fazer em casa.

Como resultado, o capital virtualmente não teve restrições à implantação de uma nova composição técnica que apresenta várias estratégias extremas de exploração, dominação e divisão por status legal, sexo, gênero, raça, salário, situação de trabalho, etc., e controle que agora estão se tornando onipresentes entre trabalhadores mais qualificados e bem organizados. Por exemplo, muitas das mesmas tecnologias de comunicação e sistemas algorítmicos de processamento de dados usados para controlar e intensificar o trabalho reprodutivo são encontradas agora entre professores universitários, médicos, enfermeiras e advogados.

As greves selvagens estão mostrando que estas indústrias da reprodução social são extremamente vulneráveis a interrupções ao longo de vários pontos de estrangulamento globais – uma estratégia proposta pela primeira vez pelos movimentos por salários para o trabalho doméstico e estudantes nas décadas de 1960-70. Acontece que os salários exigidos por esses movimentos agora permitem que os trabalhadores da reprodução social interrompam o trabalho, em vez de entregar voluntariamente sua força de trabalho – o objetivo original dos movimentos.

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Se a produção, preparação e logística de alimentos pararem, todos os outros trabalhadores acabam por parar. O ataque global ao trabalho reprodutivo é a pandemia da classe trabalhadora atingindo o sistema circulatório do capital, que produz a força de trabalho disponível para trabalhar.

Trabalhadores da reprodução social estão agora explorando as vulnerabilidades na longa e fina cadeia global de valor “just in time”. O súbito desaparecimento de papel higiênico não foi causado por consumidores em pânico ou gananciosos. Ele foi causado por interrupções imprevistas em uma divisão ininterrupta de trabalho global que agora o capital está lutando para resolver. É essa estratégia de ruptura nos principais pontos de estrangulamento globais que oferece o maior potencial para desviar nosso planeta de seu caminho para a catástrofe ecológica.

Do mesmo modo, enquanto o poder disruptivo dos trabalhadores no setor de logística é melhor reconhecido, os sindicatos e a esquerda abandonaram completamente ou falharam em fazer novas rotas de organização dos trabalhadores neste terreno. Isto não impediu que os trabalhadores na Amazon/Whole Foods, Instacart e outras empresas de logística interrompessem a cadeia global de suprimentos não apenas nos EUA mas em vários outros países atingidos pela pandemia, como na Itália, onde greves selvagens disseminadas em março efetivamente desencadearam em uma greve geral contra o acordo assinado pelas três grandes centrais sindicais e o Estado para manterem as fábricas abertas.

À medida em que o capital depende mais da gestão global “just in time” das cadeias de suprimento através do gerenciamento algorítmico de dados, estas greves selvagens relativamente pequenas tiraram empresas globais do seu ponto de equilíbrio. Nós podemos ver quão rapidamente elas estão respondendo ao aumentar os salários e fazer promessas vazias de fornecer equipamento de segurança, ampliando o auxílio doença de forma sem precedentes, oferecendo subsídios em dinheiro para alcançar uma renda mínima e demitindo importantes organizadores como o gerente de armazém Chris Smalls na cidade de Nova Iorque.

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Poder disruptivo e a Circulação das Lutas

A erupção simultânea de greves selvagens em vários países e em setores industriais pouco organizados oferece ainda outra lição importante. Sem nenhuma coordenação de cima feita por partidos vanguardistas ou sindicatos de negócios, a classe trabalhadora se tornou internacional pela primeira vez desde os anos 1960. Antes da década de 1960, a classe trabalhadora também se mostrou internacional durante as ondas de greves selvagens, conselhos operários e insurreições revolucionárias no final da década de 1910 e nos anos 1930.

Conforme as noticias de cada greve selvagem circulam instantaneamente, outros trabalhadores se inspiram e lançam a sua greve em outro lugar. Como no jogo infantil de fliperama “whack a mole” [acerte a toupeira], a classe trabalhadora global aparece de repente em um lugar e, quando o capital e o Estado tentam acertá-la, ela parece de novo em vários outros lugares de cima a baixo na agora desgastada cadeia de suprimentos global.

Estas lutas oferecem a mais significativa possibilidade de a classe trabalhadora global recompor seu poder em quase duas gerações. Para poder fazê-lo, ela precisará não apenas de circular, mas também de se tornar explicitamente coordenada, preparada para a previsível e inevitável resposta do capital e do Estado ao tentar controlar, cooptar, rarear gerir, redirecionar e reprimir separadamente cada luta. Para que a estratégia do capital e do Estado prevaleça, cada luta deve ser posta em quarentena e afastada das outras da mesma forma pela qual aqueles que são capazes estão se mantendo distantes uns dos outros para diminuir o contágio pelo vírus.

Enquanto outros organizam e entram em greve, nós precisamos estudar e nos prepararmos para as emergentes estratégias do capital e do Estado para impedirem a circulação destas lutas com a mesma intensidade com que buscam diminuir a disseminação da COVID-19. Devemos nos preparar para o papel que sindicatos ligados ao capital e ao Estado vão tentar desempenhar na tentativa de enfraquecer os trabalhadores auto-organizados. Nós todos vimos isso não apenas na Itália, mas também recentemente quando os trabalhadores sindicalizados do supermercado Kroger aceitaram um aumento temporário de 2 dólares, auxílio doença e vagas promessas de algumas poucas garantias de medidas de segurança para permanecerem no trabalho.

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Nas três propostas de lei que foram aprovadas em março também há o mísero suborno de 1200 a 1700 dólares oferecido aos pagadores de impostos nos Estados Unidos; 133% de aumento no seguro desemprego, que também foram estendidos para os trabalhadores precários que fazem “bicos” nas plataformas [precarious platform “gig” workers] e auxílio doença/licença familiar pago pela primeira vez e concedido a alguns trabalhadores para separá-los daqueles envolvidos na luta de classes disruptiva. Em uma crise, o capital e o Estado estão dispostos a recorrer a uma “renda básica universal” temporária, uma ideia que se originou nos thinktanks libertarianos dos Estados Unidos como uma forma de destruir os salários sociais da social-democracia, reduzir os empregos no governo e atacar os sindicatos do setor público.

Essas medidas de emergência keynesianas empalidecem em contraste com os massivos estímulos de trilhões de dólares a empresas, investidores e bancos incluídos nas leis para enfrentar a pandemia. Estas medidas buscam estancar os balanços corporativos frente à greve de consumo desencadeada pelos trabalhadores e suas famílias, que se recusam a gastar, a não ser com necessidades críticas. Devem ser encarados como o capital e o Estado estão lançando mão da nacionalização tanto do setor financeiro quanto do produtivo ao subsidiar os gastos operativos das empresas em troca de reduzirem as demissões a não mais do que 10% dos seus trabalhadores. Faltavam níveis semelhantes de ajuda aos governos estaduais e locais para acelerar o encolhimento do setor público após a crise, com o colapso das receitas fiscais e a austeridade que se segue.

Nós também devemos ficar atentos aos patrões que estão oferecendo auxilio doença/licença familiar temporária, jornadas reduzidas, pagamento temporário e outras pequenas modificações nas condições de trabalho como resposta às demandas por condições de segurança e equipamentos durante a quarentena. Isso será oferecido como uma condição para aumentar o uso de vigilância, acelerar e prolongar a jornada de trabalho – tudo isso já está sendo relatado por quem trabalha remotamente em casa. Os resgates federais descritos acima darão às empresas mais fôlego para lançar um contra-ataque, estendendo a crise para além da pandemia para extrair mais modificações nas relações de produção, cortes de salários e benefícios, terceirização, e automação.

A Luta é Contra o Trabalho

Uma coisa que passou despercebida é que os trabalhadores estão lutando simultaneamente por um pagamento maior e melhores condições de trabalho, ao mesmo tempo em que estão lutando contra o trabalho. Se, como Karl Marx notoriamente observou, “foge-se do trabalho como de uma peste” (MECW, Vol. 3, 274) [1], o trabalho hoje é recusado por ser literalmente o vetor de transmissão de uma peste. Os trabalhadores dos setores reprodutivos e de logística estão se recusando a fazer trabalhos que degradam sua humanidade, tornando-os um sacrifício vivo oferecido ao vírus em troca de manter o capitalismo funcionando, mesmo que seja em queda livre.

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Mais importante, esses trabalhadores estão se recusando a trabalhar, o mesmo trabalho perigoso e explorador que a maioria é forçada a fazer por falta de outros meios de sobrevivência e apesar da destruição que ele causa no planeta. À medida em que o trabalho útil e significativo com um nível salarial que permita ter acesso a alguns dos confortos da vida continua a evaporar, o trabalho que está disponível será ainda mais evitado como a peste. Mesmo com o desemprego subindo rapidamente, com o número de pedidos de seguro desemprego disparando 600% na primeira semana e dobrando na segunda, agora em 6,6 milhões durante a primeira semana de abril em um total de 17 milhões em apenas três semanas, os trabalhadores estão se recusando a trabalhar, ainda que a fome esteja à espreita.

Esta luta mostrou a centralidade de se mover a luta contra o trabalho para o centro de nossas organizações e lutas. Há tantas outras coisas que as pessoas preferiam estar fazendo a trabalhar, um desejo que quase todos nós compartilhamos independente das diferenças que nos mantém separadas. O capital buscou nos últimos quarenta anos aumentar a produtividade e intensidade do trabalho através de uma nova composição técnica, mas as lutas por menos trabalho, e não só por melhor remuneração, estão completamente ausentes da nossa resposta. A recusa ao trabalho durante a pandemia se tornou a recusa de trabalhar para a pandemia do capitalismo.

O perigo da recusa ao trabalho para o capital e o Estado (um auxiliar do capital) se mostra na rapidez com que o Estado se empenhou a injetar recursos gastando trilhões de dólares. O Estado efetivamente copiou o Bolsa Família do Brasil para pôr dinheiro nas mãos das pessoas para que elas possam gastar e artificialmente manter trabalhando aqueles que ainda têm trabalho. Isto não é simplesmente uma demonstração de quão facilmente a riqueza pode ser distribuída ou os problemas ecológicos e sociais podem ser resolvidos, ambas demandas fúteis feitas pela leal oposição. Ao contrário, mostra para os trabalhadores do setor reprodutivo – considerados os mais impotentes até março – o quão rapidamente eles podem conquistar menos trabalho e mais remuneração entrando em greve. Nenhuma mobilização feita por movimentos sociais de ONGs bancadas por fundações empresariais conseguiu arrancar uma minúscula fração do que foi derramado em estímulos fiscais desde março. O governo populista de direita nos EUA de Trump vai ser lembrado para sempre por ter usado a política fiscal em um nível sem precedentes para oferecer ajuda em dinheiro aos pobres, desempregados, famintos e trabalhadores precários de plataformas. Ironicamente, Trump pode se tornar agora o próximo Franklin D. Roosevelt, salvando o capitalismo ao usar estratégias do socialismo de Estado, uma estratégia que ele deve continuar usando para ganhar a reeleição.

Por outro lado, também levanta alertas do que vai acontecer depois que os perigos épicos passarem e bilhões voltarem a trabalhar. O capital e o Estado vão querer ser pagos de volta através de cortes ainda mais profundos, austeridade, privatização, demissões, repressão, regimes intensificados de gestão algorítmica, precarização e novos ataques ao setor público, como trocar sistemas educacionais inteiros por plataformas comerciais de reunião.

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Recomposição da Luta da Classe Trabalhadora

Naomi Klein recebeu a muito merecida atenção por demonstrar como o capital e o Estado usam choques como a pandemia para mudar a correlação de forças ainda mais a seu favor. Durante tais crises, Klein continua a nos lembrar que hoje o capital leva adiante seus planos e estratégias anteriormente retidos para impor o que David Harvey chamou de “acumulação por desapropriação”, um termo tão amplamente usado que já está completamente esquecido que Marx já o havia documentado na Seção VII [capítulo XXIV] de O Capital volume I, “A assim chamada Acumulação Primitiva”, publicado em 1867. É fácil se esquecer de Marx quando a solução proposta por Klein e outros é um retorno desejoso ao keynesianismo porcamente disfarçado do Green New Deal (capitalista).

O que Klein e muitos outros social-democratas falharam em reconhecer é que os trabalhadores também têm a habilidade de infligir choques – através de greves selvagens auto-organizadas. Estes choques da classe trabalhadora são pouco frequentes – 1848, 1871, 1877, 1894, 1917-21, 1932-38, 1945-46, 1960-70 – e agora voltaram.

Para entender estas lutas é preciso examinar como a organização dos trabalhadores conseguiu adaptar e desenvolver novas táticas e estratégias para para contestar e romper a atual organização do capital, a composição técnica. Compreender como os trabalhadores do setor reprodutivo fundaram novas táticas e estratégias para se organizar e interromper a reprodução de força de trabalho, que manteve o capitalismo funcionando durante a pandemia. Se eles forem derrotados, o capital não vai ter amarras em seus esforços para impor o trabalho em plataformas para outros setores além da educação.

Há muito tempo a educação é o terreno de luta contra a imposição de uma nova composição técnica do capital. Os trabalhadores conseguiram responder com firmeza, impedindo esses planos ao lutar contra as escolas charter na educação infantil até os doze anos, aulas online no ensino superior e os contínuos ataques neoliberais vistos mais claramente na onda de greves em estados controlados principalmente por republicanos, assim como na colônia de Porto Rico em 2018-19.

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Isso significa que a crise permitiu o rápido lançamento de novas estratégias para quebrar as ondas recentes de organização dos trabalhadores. Os trabalhadores de plataformas foram incluídos no programa de seguro-desemprego, colocando assim o setor cada vez mais organizado e cada vez mais ingovernável sob a gestão do Estado. Copiando o setor de plataformas, o Estado conseguiu impor mais ferramentas de gerenciamento de dados algorítmicos, como Zoom, aos professores de escolas públicas e particulares, escolas de idiomas e professores universitários, além das recentes introduções forçadas de Sistemas de Gestão de Aprendizagem [2] e sistemas de avaliação quantitativa de desempenho. Ambas as estratégias podem ser bem-sucedidas em moderar o rápido crescimento da organização, sindicalização e greves selvagens nestes setores, dando início a uma nova composição técnica do capital na educação.

A Ser Determinado

O autoisolamento e o enorme declínio nos salários e o colapso resultante na produção e reprodução aceleraram a busca por uma nova composição técnica do capital com a intenção de extrair ainda mais trabalho. Como Cleaver nos lembra em 33 Lições Sobre o Capital (2019),

os capitalistas introduzem maquinário não apenas para aumentar a produtividade… mas também para aumentar o trabalho. As máquinas ditam o ritmo de trabalho, ao acelerá-las os capitalistas podem forçar os trabalhadores que trabalham para eles a trabalharem mais rápido, e assim mais intensamente (e algumas vezes por mais tempo). Com máquinas funcionando continuamente, os trabalhadores têm dificuldade em criar ‘poros’ de tempo livre durante o dia de trabalho (329-330)

Assim como a pandemia demonstrou mais uma vez a vulnerabilidade mortal da população global aos inúmeros terrores da catástrofe climática, também demonstrou as vulnerabilidades do capitalismo global a uma classe trabalhadora global recomposta. Em todo o mundo, muitos estão documentando e avaliando esse poder da classe trabalhadora recém recomposto e trabalhando para divulgá-lo. Seu sucesso representa a maior promessa de reorganização do planeta para reverter os cinco séculos de danos causados pela pandemia do capitalismo.

Notas

[1]MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Editora Boitempo página 83 e Editora Expressão Popular página 309.
[2] Estimativas são de que 1,57 bilhão de crianças (91,3% de todos os alunos) e 63 milhões de professores em 188 países estão isolados em casa e 372 milhões de alunos frequentando 90.000 escolas em 22 países estão agora tendo aulas no Zoom ou outro software de reuniões online. (Education International, 2020; e Lieberman, 2020).

Referências

Harry Cleaver, 33 Lessons on Capital: Reading Marx Politically, UK: Pluto Press, 2019.

Education International, “Statement: Educators Must be Part of the COVID-19 Crisis Response,” 19 de março, 2020, https://www.ei-ie.org/en/detail/16660/statement-educatorsmust-be-part-of-the-covid-19-crisis-response

Education International, “Education International COVID-19 tracker,” April 8, 2020, https://www.ei-ie.org/en/detail/16669/education-international-covid-19-tracker

Mark Lieberman, “Zoom Use Skyrockets During Coronavirus Pandemic, Prompting Wave of Problems for Schools,” Education Week, April 3, 2020.

https://lwbooks.co.uk/marx-engels-collected-worksMarx Engels Collected Works (MECW), Vol. 3, UK: Lawrence & Wishart, 1975, p. 274.

 

Sobre o autor

Robert Ovetz é um marxista estadunidense, historiador do movimento dos trabalhadores e autor de When Workers Shot Back: Class Conflict from 1877 to 1921 [Quando os trabalhadores atiram de volta: Conflito de classe de 1877 a 1921] (Haymarket, 2019) e Workers’ Inquiry and Global Class Struggle: Tactics, Strategies, Objectives [Enquete Operária e Luta de Classes Global: Táticas, Estratégias, Objetivos] (Pluto Press, 2021).

 

Traduzido para o Passa Palavra por Marco Túlio Vieira

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Fernand Léger (1881-1955)

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