Por João Aguiar

2. Duas classes dos gestores? As contradições entre a administração do capitalismo e a coexistência de princípios metacapitalistas

2.1

Terminei a primeira parte deste artigo identificando uma prática política voluntarista junto dos gestores ideológicos. Aqueles que não desempenham funções junto da estrutura produtiva ou de poder na configuração atual do capitalismo.

Os gestores clássicos/hegemónicos não atuam isentos de voluntarismo – sabem que os investimentos e os negócios transformam a sociedade. Mas essa transformação ocorre dentro de um modelo de previsibilidade já existente, que vai do cálculo de custos e de retorno financeiro. E que expande o modelo social existente. Claro que existem sempre consequências inesperadas, mas a prática empresarial é congruente com o modo de funcionamento da economia capitalista.

Inversamente, nos gestores ideológicos das franjas do sistema político, a sua prática tem uma génese ideológica, pelo que só uma fé indómita na sua prática pode ter efeitos. Um pouco à maneira dos fundamentalistas religiosos que vêem a sua prática proselitista como a criação de um caminho rumo à redenção e salvação divina do Bem contra o Mal, quanto mais radical o grupo político das franjas mais voluntarista é a sua prática. Este será o eventual fator de separação no seio da grande e heterogénea constelação dos gestores. Num sentido quase literal, uns adequam as narrativas e as ideologias num sentido lato em função da expansão dos mecanismos do aumento da produtividade – os gestores hegemónicos. Outros, os gestores ideológicos, conjugam um voluntarismo ideológico na sua prática. Quando o voluntarismo se articula com uma estratégia política, surgem possibilidades hipotéticas de transformações sociais consideráveis.

2.2

Num caso extremo, os gestores ideológicos podem tornar-se nos principais dirigentes do que, no livro Labirintos do fascismo, João Bernardo designou por «Teoria dos gestores como classe pós-capitalista» (p. 467 a 482). Ou seja, nos casos em que os gestores ideológicos vencem um determinado processo político e levam avante os seus desígnios, ocorre a formação do que o autor anteriormente citado designou como uma sociedade metacapitalista. O caso do nazismo é o mais evidente, nomeadamente na secundarização dos mecanismos da mais-valia pelos motivos puramente rácicos de extermínio dos judeus (a anti-raça) e de escravização dos eslavos (os sub-homens). Em termos práticos, para Leste do território alemão vigoraram princípios de organização social que desprezavam o aumento da produtividade do trabalho – princípio nuclear da expansão do capitalismo. E não se tratou simplesmente de uma economia de guerra e de caos proveniente da desestabilização bélica, até porque os gestores ideológicos colocados na liderança das SS perderam mais tempo e energias a perseguir, enjaular e assassinar milhões de judeus, eslavos e ciganos, do que no esforço de guerra propriamente dito, entregue à Wehrmacht. A própria criação de uma Frente Leste contra a União Soviética adveio dessa obsessão rácica em garantir um Lebensraum, um espaço livre de judeus (a deportar, guetizar e exterminar) e de escravizar e deixar morrer à fome milhões de eslavos. O racionalismo imanente à industrialização da guerra e do extermínio era puramente instrumental face à mundividência rácica, plenamente irracionalista, dos nacional-socialistas.

O nazismo representou o caso absolutamente extremo de uma vitória e de uma ascendência de gestores ideológicos sobre os gestores clássicos/hegemónicos. No caso da União Soviética, o sistema concentracionário e o genocídio nos campos ucranianos partilhou aspetos com o seu rival nacional-socialista. Mas a mola do sistema manteve-se sobretudo ancorada num capitalismo de Estado, apesar da sua convivência com um metacapitalismo na sua retaguarda siberiana.

Mas se os resultados e os processos não serão certamente partilhados pelas práticas e intenções declaradas dos gestores ideológicos hodiernos, o que importa aqui realçar é o irracionalismo como fio condutor, do qual o voluntarismo se constitui como uma derivação pró-ativa. A ação dos gestores ideológicos advém de uma prática desligada da gestão das estruturas políticas e económicas do capitalismo e de uma mundivisão com pilares inscritos no irracionalismo.

Por outras palavras, se: a) as práticas se regem por princípios ideológicos contrários ao esquema do aumento da produtividade do trabalho e, portanto, descartando tout court princípios sociais agregados como a racionalização, a urbanização, o desenvolvimento tecnológico aplicado à expansão económica; b) conjugados com um monolitismo relativamente à arte e um subjetivismo perante o conhecimento científico; então, em teoria e num contexto de abalo social profundo com a perda de controlo do poder pelos capitalistas e sem alternativa por parte dos explorados, os gestores ideológicos podem fazer avançar dinâmicas sociais novamente regidas por uma qualquer forma de irracionalismo, desde as mais inócuas às mais exterministas.

2.3

Os gestores ideológicos nas margens do sistema político – parlamentar e extra-parlamentar – não são isentos de diferenciações ou conflitos internos. Importa relevar que, se for real a existência de uma camada social do tipo que caracterizei, então os gestores ideológicos não serão simplesmente uma espécie de uma aristocracia sindical modernizada. Por um lado, encontram-se num âmbito muito mais vasto de organizações políticas e culturais, até redes sociais e numa miríade de associações de todo o tipo. Por outro lado, apesar das diferenças políticas e programáticas indesmentíveis, a existência de um princípio estrutural organizativo, baseado numa qualquer modalidade dominante de irracionalismo e desligado da administração direta da economia e do Estado, atravessa organizações e ambientes de opostos pontos do espectro político.

Se assim for, o crescimento do impacto dos populistas e dos supremacistas brancos numa ponta, e a resposta dos identitarismos na outra ponta do espectro político constituem duas extremidades de uma tenaz, que não é mais do que a manifestação de uma diversificada, mas aparentemente real camada de gestores ideológicos. Num contexto capitalista, apesar de ambas as extremidades não serem equivalentes na sua força política e nos seus programas, a sua ação resulta invariavelmente numa fragmentação dos trabalhadores de todas as cores, etnias, géneros, nacionalidades e proveniências. Num hipotético contexto histórico aberto a convulsões da intensidade que abalaram a Europa de há quase cem anos, uma camada de gestores ideológicos eventualmente vitoriosa poderia abrir caminho a novas modalidades de uma sociedade metacapitalista. Ou seja, uma sociedade hipotética que, na sua constituição de base e independentemente dos contornos adotados, rejeitaria os princípios do crescimento económico por via da produtividade do trabalho e do mercado em expansão; da conexão à escala global das sociedades; de uma democracia liberal; da autonomia criativa da arte; da objetividade científica.

Uma sociedade deste tipo seria invariavelmente uma distopia, na medida em que o seu princípio motor – fundamentalmente de constituição ideológica – se baseia numa negação societal. Inversamente, e apesar de todas as críticas que se possam – e devam – fazer, as tentativas revolucionárias dos organismos de base dos trabalhadores nos séculos XIX e XX (conselhos operários, comités de base) procuraram negar a exploração da força de trabalho pelos capitalistas, mas também afirmar, desde o início, a construção de novas relações sociais, de uma nova estrutura material, sem uma camada separada de gestores a controlar o seu tempo de trabalho. Ao mesmo tempo, não tiveram na sua génese qualquer intuito identitarista, rácico, de defesa do decrescimento económico, de arrasamento da civilização urbana ou a multiplicação de infinitas categorias ideológicas. Não há maneira de saber se foram meramente embriões de algo muito mais complexo ou se estavam/estão fadadas liminarmente ao falhanço. Mas os seus princípios de estruturação social não se resumiam a uma negação liminar do existente (pilar nuclear do irracionalismo), mas concorreram com novos princípios organizativos sobre a estrutura material da sociedade. E procuravam apropriar e remodelar as conquistas civilizacionais anteriores. Inversamente, os gestores ideológicos formulam sobretudo uma rejeição liminar do existente, colocando a base material de uma sociedade ao serviço de uma qualquer nova comunidade ideológica: a raça de senhores, o socialismo num só país, um qualquer identitarismo.

Mas aqui não é o lugar para conjeturas, nem o autor destas linhas tem qualquer dom de presciência. O que me importa salientar é simplesmente o facto de que um desdobramento interno e substantivo da classe dos gestores – os gestores ideológicos – constitui peça essencial e contraditória no seio do capitalismo. Ao mesmo tempo essencial para a fragmentação da classe trabalhadora e potencial fator de edificação de sociedades governadas por irracionalismos.

Este artigo compõe-se de quatro partes, que são publicadas semanalmente. 1ª Parte: Um ponto de partida. Arte, ciência e narrativas. 3ª Parte: A ideologia como universo integrado e multiforme: os campos de atuação dos gestores ideológicos. 4ª Parte: Mais dois campos de atuação dos gestores ideológicos: do ecologismo ao identitarismo. Conclusão.

O texto está ilustrado, em destaque, com uma escultura de Michael Heizer (Massa em levitação). Depois, com um quadro de René Magritte (O castelo dos Pirenéus) e uma escultura de Fabian Bürgy (Pedra, em suspensão e a sonhar).

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