Jamais deixamos de exigir o impossível (2)

Por Erick Corrêa

 

Leia também a primeira parte do artigo.

 

3. Uma dupla contrarrevolução: neoliberais e comunistas contra a autogestão generalizada

 

Em sua versão comunista do fim da história, segundo a qual “a vitória do capitalismo foi avassaladora”, o autor usa como referência a tradução portuguesa de O socialismo traído: por trás do colapso da União Soviética, de Roger Keeran e Thomas Kenny. Não por acaso, um estudo publicado pelo órgão editorial do PCP e que, segundo ele, é “o melhor livro sobre o fim da União Soviética”. Nesta versão, a “derrota aparentemente tão fácil da União Soviética” teria ensejado, a partir de então, um “cenário desesperador para a esquerda”. Ao associar a “contrarrevolução neoliberal e neocolonial” com a “vitória política da burguesia do final dos anos 1980”, o militante do PCB diagnostica um arquivamento do “horizonte estratégico dos revolucionários de todo o mundo”, segundo ele predominante “durante boa parte do século XX”, qual seja: “o socialismo, que se confundia com a planificação da economia”. Em sua perspectiva, que é a mesma vigente nos partidos comunistas, os casos russo e chinês representam “as duas maiores experiências de desenvolvimento socioeconômico da história da humanidade”. Entretanto, se é verdade que “a URSS passou de uma economia atrasada e arrasada pela guerra para a segunda economia industrial do mundo em um espaço de trinta anos”,[19] não é menos verdadeiro que tal crescimento econômico foi atingido por uma violenta exploração do proletariado russo. Ao menos desde a época de Lênin e Trotsky, os operários foram submetidos à rígida disciplina fabril de tipo taylorista, importada do modo de produção capitalista ocidental e fundada no salário por produção, estímulo material e cronometria de tempos e movimentos do trabalhador na linha de produção. O processo de acumulação primitiva “soviético”, executado em um espaço de tempo mais curto se comparado à acumulação primitiva de matriz burguesa, seria mais tarde acelerado pelo trabalho forçado e pelo terror da ditadura stalinista. Ao contrário do que o autor sugere, o colapso da URSS tem mais a ver com as contradições sociopolíticas internas ao modo de produção capitalista de Estado (entendido basicamente como nacionalização dos recursos produtivos, desde Lênin), do que a um embate direto com as forças econômicas e políticas do bloco de economias mistas.

Sua compreensão da crise de 1989-1991 também abstrai a dimensão dos conflitos sociais. Se, por um lado, conforme observa Paul Hirst, o bloco capitalista de Estado colapsou a partir de cima, “não porque a oposição fosse capaz de tomar o poder por uma dinâmica interna […] mas porque Moscou abandonou os partidos satélites e deixou-os sem meios nem vontade de resistir”;[20] por outro lado, não se pode desconsiderar a pressão exercida a partir de baixo, pelas revoluções de 1989, como os protestos massivos ocorridos na praça de Tian’anmen em Pequim, a revolução romena disparada em Timişoara e a mobilização em torno da Queda do Muro de Berlim (respectivamente em maio-junho, novembro e dezembro daquele ano). E a revolução polonesa de 1980-1981 não foi reprimida por Moscou de modo imediato e contundente, como havia ocorrido em Praga no ano de 1968, o que já sinalizava para o posterior colapso, entre 1987-1989, do brejnevismo.[21]

O autor argumenta ainda que, “com o processo de reforma e abertura da China”, a contrarrevolução neoliberal “foi ainda mais longe”. Segundo ele, “se antes os ideólogos da burguesia podiam até dizer que a planificação econômica era ruim, embora o planejamento estatal de tipo keynesiano tivesse seus méritos, agora passava-se a retirar qualquer mérito até mesmo do planejamento econômico de tipo capitalista”. Além de não explicar a relação de causalidade sugerida entre as reestruturações ocorridas no PCCh e no Estado chinês e a expansão do neoliberalismo, reproduz-se aqui o velho clichê segundo o qual, no paradigma neoliberal, “toda forma de ação do Estado na economia é uma tragédia, tema proibido”.

Jamais deixamos de exigir o impossível (2)

Esta concepção de neoliberalismo como antiestatismo unilateral, como uma espécie de “Estadofobia”, pressupõe uma separação entre liberalismo econômico e autoritarismo político que todavia nunca existiu no plano histórico. É justamente desta relação de reciprocidade entre a forma política e a forma econômica que Grégoire Chamayou procurou traçar a genealogia. No livro A sociedade ingovernável, o sociólogo francês demonstra como a limitação da zona de intervenção do Estado na economia, ao marginalizar a esfera parlamentar em proveito do poder executivo, restringir as liberdades sindicais e desregulamentar o direito trabalhista, é inseparável de um paradoxal fortalecimento estatal em áreas como a Defesa e a Segurança Pública, por exemplo. O neoliberalismo assume mais a forma de um Estado “fraco com os fortes e forte com os fracos”, do que a de um “Estado mínimo”, como se convencionou caracterizá-lo: “não há simples conjunção acidental entre certo tipo de programa econômico e certo estilo de governo, porém, de modo mais profundo, há articulação funcional e estratégica entre a redução do campo de intervenção do Estado e o reforço de sua autoridade nesse campo limitado – isso se dá em uma relação recíproca”.[22] Os governos de Augusto Pinochet e de Margaret Thatcher, a despeito de suas diferenças no plano formal, incorporaram igualmente, no plano político-econômico, os princípios preconizados pelos teóricos do neoliberalismo, como Friedrich Hayek, que em plena ditadura declarou a um jornal chileno: “pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”.[23] A defesa de um novo AI-5 pelo ministro da Fazenda do governo Bolsonaro, por exemplo, se inscreve histórica e conscientemente nesta tradição liberal-autoritária.

O autor identifica, como o inimigo da planificação econômica que defende, para além do antiestatismo neoliberal, o antiestatismo do que ele denomina “esquerda responsável”, ou do chamado “socialismo democrático”, que reivindicariam, “de forma sempre muito abstrata, uma democracia operária pura, de base e com autogestão”. Mas a defesa da autogestão operária, entretanto, não tem nada de abstrata. Muito pelo contrário, ela se baseia em experiências concretas de auto-organização política e autogestão econômica ensaiadas pelo proletariado internacionalmente, ao menos desde a Comuna de Paris. “O problema da autogestão não é um problema esotérico (…) a autogestão é muito simplesmente o conteúdo da revolução da nossa época”,[24] dizia Maurice Brinton em 1973. Nas circunstâncias de refluxo do biênio revolucionário português de 1974-1975, o mesmo Brinton observava como “alguns falam hoje (…) que a autogestão não tem nada a ver com socialismo, e como se todo o discurso da autogestão fosse a derradeira conspiração recuperadora do maquiavélico capitalismo. A confusão – admitindo que não é deliberada e, por conseguinte, desonesta – revela uma patética pobreza conceitual. É indubitável que, no seio do sistema capitalista, a autogestão pode transformar-se num potente meio de recuperação capitalista (…) É claro, portanto, que podemos conceber a autogestão sem socialismo. Mas podemos imaginar um socialismo, em que valha a pena viver, sem indivíduos, coletividades e instituições autônomos?”.[25] Para ficarmos com apenas alguns exemplos históricos destas experiências no século XX, entre tantos outros possíveis, recordemos a emergência dos sovietes na primeira revolução russa, de 1905, os conselhos de trabalhadores durante a revolução alemã de 1918-1921, as coletividades espanholas na revolução de 1936-1937 e o movimento apartidário dos trabalhadores portugueses que eclodiu no biênio de 1974-1975. Experiências estas que, vinculadas às lutas proletárias em períodos de ascensão revolucionária, é importante salientar, nada têm a ver com o chamado “socialismo autogestionário” iugoslavo, de matriz burocrática, nem com qualquer forma de “esquerda responsável” ou “socialismo democrático”. Em 1974, o antigo situacionista belga Raoul Vaneigem alertava para o perigo de uma recuperação pelo poder político da autogestão generalizada a todos os aspectos da vida social: “A partir de agora, se os operários revolucionários não se decidirem a tratar eles próprios dos seus problemas e a levar até ao fim as transformações sociais que as greves selvagens, as ocupações e os desvios das fábricas anunciam, aqueles que não têm os meios para a realizar, farão da autogestão generalizada, mais uma ilusão no céu das ideias, e virão, feitos messias descidos à terra, pregar a organização do proletariado, na melhor tradição de Lênin, Trotsky, Mao, Garcia Oliver, Castro, Guevara e outros burocratas”.[26] As experiências supracitadas foram todas derrotadas, em parte pelas forças políticas e econômicas burguesas, em parte por suas próprias representações políticas, socialdemocratas e/ou comunistas. No biênio português de 1974-1975, “entraram em luta centenas de milhares de trabalhadores. Mas o inimigo surgiu-lhes sempre à frente com umas vestes inesperadas: as das suas próprias organizações. Cada vez que criavam uma organização, viam-na ser instrumentalizadas por supostos líderes ou vanguardas que não eram os seus (…) Verificou-se que os revolucionários – na sua grande maioria – eram parte do problema, e não parte da solução”.[27] Na síntese de Brinton, “as revoluções passadas enfrentavam dois perigos principais: podiam ser esmagadas por aqueles cujos privilégios ameaçavam (Paris, 1871; Alemanha, 1918-1919; Espanha, 1936; Hungria, 1956), ou ser destruídas por dentro devido a degeneração burocrática (como aconteceu na Revolução Russa de 1917). Agora, perspectiva-se no horizonte um terceiro perigo: o de revoltas genuinamente radicais serem desviadas para canais conducentes ao capitalismo de Estado”.[28]

O historiador alemão Oskar Anweiler (1958) já havia demonstrado, em seu estudo sobre as revoluções de 1905 e 1917 na Rússia, que os sovietes (conselhos) constituíram a sua base social. O bolchevismo apenas reuniu as tendências revolucionárias que atuavam sobre os conselhos, adaptando-se a tais correntes no ano de 1917. Porém, ao mesmo tempo, o partido bolchevique visava frear o desenvolvimento das forças antiestatais e anticentralistas que estavam na base dos conselhos, subordinando-as às necessidades e aos objetivos da construção do socialismo na Rússia por meios ditatoriais: “o movimento conselhista russo tinha um lado político e outro econômico, ambos eram interdependentes. A tendência de uma liberdade política beirando a anarquia se correspondia com a tendência de uma liberdade econômica. A autonomia das fábricas por meios de conselhos de fábricas eleitos e a associação camponesa são uma forma de organização de uma democracia econômica, que encontra seu marco político numa ordenação descentralizada de comunas autônomas. Essas tendências existentes nos conselhos russos foram encurraladas e suprimidas pela economia planificada estatal e centralizada do bolchevismo”.[29] Para além do plano histórico, no plano teórico, o italiano Bruno Rizzi havia estabelecido, em sua obra A burocratização do mundo, publicada na França em 1939, uma aproximação entre a burocracia stalinista, o dirigismo fascista e o intervencionismo de Roosevelt, então apresentados senão como variantes de um mesmo fenômeno burocrático que, dois anos depois, o norte-americano James Burham (1941) caracterizaria como um “despotismo gerencial”. Se, por um lado, “a burocracia sindical dos países capitalistas se encontra ao serviço da burguesia, no Estado soviético essa burocracia está ao serviço de um Estado burocrático e, por conseguinte, ao seu próprio serviço”, por outro lado, “entre a burocracia sindical soviética e a americana, inglesa ou francesa, as diferenças não são muitas no tocante aos objetivos a atingir”,[30] argumentava Rizzi.

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Para o autor, no entanto, a “alternativa” representada pela “democracia operária pura, de base e com autogestão”, “nunca conseguiu oferecer uma opção forte à ideologia dominante de idolatria do ‘livre mercado’ capitalista e à política econômica neoliberal”. Porém, conforme Chamayou demonstrou em seu estudo, a “contrarrevolução”, ou “contramovimento” neoliberal “que se preparou nos anos 1970, não foi concebido como alternativa ao Estado de bem-estar, mas como alternativa à sua contestação. Foi uma alternativa à alternativa”, de modo que o objeto de preocupação primordial dos economistas e empresários neoliberais não era “com o Estado, mas com a autogestão”.[31] Assim, a primordial preocupação com a radicalização operária que se manifestava internacionalmente nas greves selvagens, nas sabotagens e no abstencionismo das classes trabalhadoras, não perturbava o sono somente das cabeças de planilha neoliberais, como também dos quadros dirigentes dos partidos comunistas e suas centrais sindicais, na virada da década de 1960 para 1970, especialmente em países como Itália, França e Portugal. Até a primeira metade dos anos 1970, o PCF sempre condenou categoricamente a autogestão como um princípio incompatível com o planejamento socialista: “o PCF espera realizar, atualmente, de acordo com suas próprias fórmulas, uma ‘gestão democrática’ que implica uma ‘intervenção dos trabalhadores nas empresas’, evitando, ao mesmo tempo, os perigos ou as ilusões da autogestão. Notemos, desde já, que essa ‘intervenção dos trabalhadores’ se limita explicitamente a acontecer ‘nas empresas’. Essa restrição (…) já indica o abismo que continua a separar os comunistas dos defensores da autogestão generalizada a todos os setores da vida social, inclusive a política”.[32]

Diferentemente de uma autogestão econômica, parcial, que o PCF da época se dizia disposto no máximo a tolerar, a autogestão generalizada “é a organização social do poder reconhecido a cada um, na sua vida cotidiana, e exercido diretamente quer pelos próprios indivíduos quer por assembleias de autogestão. Ela surgiu na história do movimento operário de cada vez que a base quis impor e realizar as suas próprias decisões, não abandonando o seu poder a chefes, e não se deixando guiar por nenhuma ideologia”.[33] Portanto, é esta autogestão generalizada que assombrava, muito embora por diferentes razões, tanto os economistas e empresários neoliberais, quanto os dirigentes comunistas.

 

4. Os casos italiano, francês e português

 

Na Itália, o ano de 1969 marcaria uma guinada à direita do Partido Comunista Italiano (PCI), após o congresso realizado em janeiro daquele ano em Bolonha. A oposição de esquerda do partido criticaria veementemente as posições oficiais adotadas no congresso, considerando-as inadequadas na resposta ao esmagamento da Primavera de Praga pelo exército soviético, como no posicionamento reacionário diante da greve geral selvagem de 1968 na França. Para tanto, funda um jornal independente, Il Manifesto [O Manifesto], que provocaria a expulsão de seus redatores em novembro daquele ano. Enquanto isso, uma constelação de grupúsculos extraídos das alas extremistas do movimento revolucionário de 1968-1969, como Potere Operaio [Poder Operário] e Lotta Continua [Luta Constante], persistiam com a agitação política extraparlamentar junto às fábricas e universidades de todo o país. A partir de 1973, na ocasião da queda de Salvador Allende no Chile, o então Secretário Geral do PCI, Enrico Berlinguer (que se referia aos extremistas de Bolonha como a um grupo “pestilento”), passou a defender a necessidade de se firmar um compromisso storico na Itália, perspectiva muito devedora das concepções do antigo dirigente comunista Palmiro Togliatti, que defendia, no início dos anos 1960, pouco antes de sua morte, a necessidade de se forjar uma “nova maioria” no país. A estratégia do “compromisso histórico” consistia em estabelecer um “acordo orgânico” com a Democracia Cristã (DC) que combatesse a “estratégia da tensão” em ascensão na Itália. Uma aliança capaz de tranquilizar as classes proprietárias e intermediárias e de isolar os fanatismos tanto à extrema-direita quanto à extrema-esquerda do espectro sociopolítico, de modo que impedisse o avanço do terrorismo no país e estabilizasse o capitalismo italiano em crise desde 1967. Porém, a lógica eleitoral-parlamentarista que orientava a estratégia do compromisso storico impedia o PCI de enfrentar o avanço do neofascismo terrorista, pois este era intimamente associado ao governo democrata-cristão com o qual os comunistas pretendiam coligar-se para finalmente chegar ao poder. A partir de 1972, o PCI passaria a enfatizar progressivamente o caráter “popular” da DC por conta de sua base de massas entre os operários e camponeses católicos, além dos estratos médios de todo o país. Ademais, o PCI não perdia a oportunidade de reiterar as afinidades entre comunistas e católicos na Itália e proclamar a sua meta de buscar um pacto duradouro com os democratas-cristãos, que reconciliasse as duas principais forças políticas do país. Em 11 de março de 1977, Bolonha e Roma (ambas as municipalidades governadas pelo PCI) conheceriam uma onda de embates violentos, primeiro entre neofascistas e manifestantes contrários a uma reforma educacional proposta pelo governo, depois entre extremistas e comunistas que, iniciadas no âmbito dos campi universitários (com saldo de um estudante do grupo maoísta Lotta Continua morto pela polícia em Bolonha e uma jovem feminista morta em Roma), em um segundo momento ganharia as ruas e, finalmente, se espalharia por todo o país. Em Milão, uma assembleia de três mil delegados de diferentes fábricas se reuniu sem o PCI e seus sindicatos. No dia 12, uma das dezenas de rádios livres ligadas ao campo libertário, a rádio Alice, em Bolonha, é invadida pela polícia e em seguida proibida de funcionar. No dia 13, tanques militares adentram o centro da cidade, com a cumplicidade do prefeito do PCI.

Na França, desde o período da Resistência ao regime de Vichy (1940-1944), os comunistas detinham uma grande influência sobre a vida política e cultural do país que, até a fundação do Partido Socialista (PS) em 1971, contava com uma esquerda não comunista pequena e dividida. Contudo, desde então, o PCF manteve uma postura intransigentemente reacionária: ignorara completamente as consequências da modernização gaullista, apoiara a URSS na repressão à revolução húngara de 1956, recusara-se a levar adiante a desestalinização da organização (mesmo após a morte de Stalin e do Relatório Kruschev) e prosseguira com os expurgos de suas correntes radicais, medidas responsáveis, em grande medida, pelo posicionamento anticomunista de grande parte dos jovens contestatários de Maio de 68. No dia 16 de maio de 1968, a classe operária entra para o movimento de ocupações acionado pelos estudantes da Sorbonne, quando o seu Comitê de Ocupação decide participar da assembleia geral da Renault em Billancourt. Neste momento, a ameaça de uma junção entre os operários e as ocupações revolucionárias que se desenvolveram a partir da luta dos estudantes, apavoram tanto os comunistas como os gaullistas. Enquanto De Gaulle convoca uma força suplementar de cerca de 10 mil reservistas do Exército, o PCF põe “trabalhadores e estudantes em estado de alerta contra toda palavra de ordem aventureira”, e a CGT se coloca defronte os portões da fábrica para “impedir o encontro entre estudantes e operários”.[34] Em sua Sociologia das crises políticas, Michel Dobry salientou a “contribuição funcional” dos partidos comunistas “em situações explosivas”, na “canalização dos movimentos sociais em direção a saídas institucionais”, “que é o caso, por exemplo, do Partido Comunista Francês durante as greves de 1936 e 1968”.[35]

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O papel contrarrevolucionário do PCF durante a crise de maio-junho de 1968, bem como do PCI durante o “maio rastejante” de 1967-1977, assim como o apoio do PCP a ambos, fomentou na juventude europeia de modo geral, e na portuguesa em particular, uma cultura revolucionária que escaparia totalmente ao controle dos partidos comunistas. Pela primeira vez em sua história, o PCP, ainda na clandestinidade, tinha de responder a uma crítica à esquerda da tática da “revolução democrática” e de aliança com a burguesia anti-salazarista (preconizada pelo dirigente Álvaro Cunhal a partir de 1965-1966), na medida em que “as circunstâncias mudavam rapidamente, alteradas por um descontentamento social e uma revolta da juventude estudantil contra o colonialismo, impregnada das ideias de Maio de 68”.[36] Do mesmo modo que as correntes não comunistas do movimento revolucionário, na França e na Itália, se defrontavam com o papel e a função contrarrevolucionária dos partidos comunistas de seus países, em Portugal, o PCP era acusado de ter se tornado “a grande esperança da burguesia portuguesa na questão central de todo o capitalismo moderno: a representação operária”.[37] Uma vez que a dinâmica do movimento autônomo ultrapassaria a sua dimensão meramente reivindicativa, em direção a horizontes de luta que rejeitavam igualmente as perspectivas, aparentemente rivais, do capitalismo ocidental e do capitalismo de Estado sino-soviético, o PCP e a Intersindical sob seu controle, passariam a combater as greves e lutas que resistiam ao seu duplo enquadramento, sindical-partidário: “transformados em defensores realistas da nova ordem em gestação (…) apoiaram as intervenções militares nas greves e organizaram manifestações de rua contra uma pretensa atitude de ‘greve pela greve’”.[38] Os dirigentes do PCP acusavam os operários mais radicalizados e combativos de atuarem como “provocadores” e de fazerem o jogo da reação fascista, com a diferença que, na revolução portuguesa, os quadros comunistas não estavam presentes somente nas fábricas, no terreno da produção, mas igualmente no terreno da gestão estatal, ocupando cargos no novo Ministério do Trabalho, em empresas públicas, universidades e meios de comunicação. Em agosto de 1974, os comunistas chegam a apoiar as primeiras legislações de repressão aos movimentos sociais de base autônoma, que proibiam “as greves durante a vigência de convenções coletivas e autorizavam o lockout no caso de greves selvagens”.[39] Assim, a aliança entre os militares do Movimento das Forças Armadas (MFA), o PCP e o Partido Socialista (PS) visava mais a um processo de modernização e racionalização política e econômica do capitalismo português e de entrada no Mercado Comum europeu, do que propriamente a uma verdadeira revolução social, que seria definitivamente domesticada com a promulgação de uma nova Constituição, em abril de 1976, concluindo um processo de “contrarrevolução democrática” ou “democratização contrarrevolucionária”.[40]

Foi por meio deste longo processo contrarrevolucionário que as exigências manifestas nas dinâmicas revolucionárias das décadas de 1960 e 1970, como das mulheres e dos novos setores do trabalho qualificado por autonomia e liberdade, ignoradas pelas rígidas instituições partidárias e sindicais da esquerda comunista e socialista, acabariam sendo incorporadas e neutralizadas pelo próprio capitalismo vitorioso, na forma de uma inserção subordinada da mulher no mercado de trabalho e de uma desregulamentação predatória das legislações trabalhistas. Esta associação entre as forças contrarrevolucionárias e a dinâmica de modernização do aparato econômico do capitalismo revela como o poder de uma classe dominante não resulta somente de alterações nas disposições políticas, jurídicas e econômicas sobre o regime de propriedade, nem da evolução mecânica das forças produtivas, mas pressupõe sempre uma série histórica de vitórias sobre as classes subalternizadas. “Sendo o capital uma relação social contraditória e sendo a luta de classes essa contradição, os conflitos sociais aparecem assim no cerne do modo de produção”.[41] É esta dinâmica entre revolução e contrarrevolução que o Comitê Enragés-Internacional Situacionista e o Conselho pela Manutenção das Ocupações visava ao constatar, no final do mês de maio de 1968, que “a classe operária conhece agora seus inimigos e os métodos de ação que lhe são próprios”. Assim como “a revolução proletária esboçou espontaneamente as suas formas adequadas nos conselhos, tanto em São Petesburgo, em 1905, como Turim, em 1920, tanto na Catalunha, em 1936, como em Budapeste, em 1956”, também na Itália de 1967-1977, na França de 1968 e na Portugal de 1974-1975, “a manutenção da velha sociedade ou a formação de novas classes exploradoras passou pela supressão dos conselhos”.[42]

 

5. Violência revolucionária ou “dimensão político-militar”?

 

Na última parte de seu artigo, o autor se refere a um abandono, pelos partidos de esquerda contemporâneos, da “dimensão político-militar da estratégia revolucionária”, o que segundo ele significaria uma “recusa a priori e idealista da violência revolucionária”. Contudo, não menos idealista é a associação que ele faz entre violência revolucionária e “dimensão político-militar”, esta última reduzida à “formação teórica dos dirigentes políticos”, de Joseph Stálin a Che Guevara, “que entendiam de teoria militar”. Inúmeros estudos antropológicos e sociológicos já demonstraram como a violência revolucionária – seja nas ações de resistência do povo vândalo ao tupinambá, das sufragistas inglesas dos anos 1890 aos amotinados de Watts (Los Angeles) em 1964 – felizmente, não depende da direção estratégica de comunistas que dominem “a ciência das armas”. Além disso, sabemos também dos resultados atingidos pelos sólidos conhecimentos em estratégia militar de Trotsky, Comandante em Chefe do Exército Vermelho, como a destruição do exército makhnovista, que garantia a autodefesa das experiências anarquistas de coletivização nos campos da Ucrânia, e o esmagamento da rebelião de marinheiros e soldados de Kronstadt, entre 1920 e 1921. Época na qual Voline denunciava Lênin e Trotsky por dirigirem contra anarquistas e anarco-sindicalistas os mesmos métodos empregados contra a reação dos exércitos brancos.

Jamais deixamos de exigir o impossível (2)

De acordo com um antigo situacionista, para quem a exclusão de “qualquer compromisso com as forças do velho mundo” constitui uma “exigência absoluta na sociedade da autogestão generalizada”, “a autodefesa é o primeiro direito dos revolucionários”: “A assembleia organiza-se imediatamente em grupos de defesa, encarregados entre outras coisas, da guerrilha em zonas não libertadas, com destruição dos centros econômicos vitais para os estatistas e de atentados visando a desorganização do inimigo; da produção de armas novas; da preparação de táticas insólitas; da proteção das fábricas prioritárias, das fontes de abastecimento, dos depósitos, das zonas de armazenamento, dos postos clínicos, das telecomunicações”.[43] Nesse sentido, não se tratava, para a geração de 68, de abdicar do uso da violência revolucionária nem da dimensão estratégica das lutas, mas de dissocia-las da necessidade de um corpo político-militar especializado para conduzi-las. Debord, que em maio-junho de 1968 se posicionou ao lado dos conselhos autônomos em relação aos partidos e sindicatos (operários e estudantis), foi também um profundo conhecedor de Sun Tzu, Tucídides, Maquiavel e Clausewitz, ao ponto de Umberto Eco tê-lo descrito, no final da década de 1980, em um artigo publicado no jornal Libération, como uma “espécie de Maquiavel ou Clausewitz moderno”. Nos dias seguintes à queda do fascismo em Portugal, Debord comentava que era necessário, a partir de então, “defender a autonomia das assembleias de trabalhadores e suas armas”,[44] e Manuel Rodrigues defendia, em 1975, a instauração de “milícias populares de vigilância e defesa das conquistas do proletariado”, cuja ação deveria ser acompanhada de perto por “conselhos regionais, constituídos por delegados de todas as empresas e unidades de produção de uma dada região ou grande cidade”.[45]

Também neste âmbito, a experiência da revolução portuguesa de 1974-1975 legou importantes lições. O golpe militar de 25 de Abril de 1974, que efetivamente derruba Marcello Caetano, sucessor de Salazar desde 1968, pôs fim tanto ao regime fascista na metrópole, quanto à guerra nas colônias. Um putsch organizado por um movimento político dos capitães das Forças Armadas, que se recusaram a continuar servindo ao fascismo e ao colonialismo português. Houve, nesse sentido, uma implosão interna do colonialismo português em crise, que favoreceria o processo de libertação nacional impulsionado, desde o início da década de 1960, por movimentos político-militares em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola. Entretanto, o MFA, que ficaria conhecido como um movimento de “militares de esquerda”, ao estabelecer uma aliança com os partidos comunista e socialista, se tornaria, a despeito de seu papel central no derrube do fascismo e na libertação das colônias africanas, um elemento de contenção da revolução social desencadeada, na sequência do golpe de 25 de Abril, principalmente nas regiões de Lisboa e do Alentejo, pelos movimentos espontâneos e apartidários de autogestão operária e campesina. Isto porque as forças tradicionais do exército português, organizadas em torno do chamado Grupo dos Nove, reconquistariam o poderio alcançado pela esquerda do MFA (apoiada pelos comunistas), criando as condições necessárias para uma recondução da sociedade portuguesa à normalidade. A experiência portuguesa demonstrou “como toda e qualquer luta no seio da instituição militar tem limites bem precisos e por que razão esta instituição do poder capitalista não pode aceitar uma reforma interna que a transformaria num pretenso ‘exército popular’ (…) e como todo o investimento de energias militantes numa tal perspectiva é inteiramente suicida”.[46] Após o 25 de Abril, os grupos maoístas acreditavam poder transformar as instituições militares desde o seu interior, endossando a tática preconizada pelo PCP no início da guerra colonial. Coletivos à esquerda dos maoístas e dos comunistas, como o do jornal Combate (1974-1978), apostavam numa via oposta, ao defenderem uma ação completamente exterior à instituição militar, voltada, portanto, não a qualquer transformação de seu aparato, mas sim à sua supressão, uma vez que tal instituição não poderia, por princípio, ser protagonista de qualquer processo que se pretendesse verdadeiramente revolucionário. A absoluta submissão e delegação de poderes e objetivos aos chefes, que caracterizam qualquer estrutura militar, assim como qualquer empresa capitalista, eram vistas por essa corrente minoritária da revolução portuguesa como uma integração dos princípios burgueses no movimento social. À época, tal posicionamento era considerado “delirante” pela extrema-esquerda portuguesa, que via na instituição militar o principal ator do processo revolucionário. Contudo, a conspiração do Grupo dos Nove e o golpe de 25 de Novembro, atestariam que os “princípios essenciais do funcionamento do Exército” são inerentes aos “princípios fundamentais do funcionamento da sociedade capitalista, de que o Exército, corpo especializado, é uma emanação”.[47]

Como vimos, o horizonte revolucionário colocado pelo militante do PCB se confunde com o da tomada do Estado pela via político-militar. É precisamente esta concepção (jacobina e bolchevique) de revolução, segundo a qual a natureza “revolucionária” de um movimento é determinada pela tomada mais ou menos bem sucedida do aparelho estatal, que permite às castas militares brasileiras qualificarem como uma “revolução” o golpe de 1964. Afinal, elas se apoderaram do aparelho de Estado e o controlaram por duas décadas. Quanto ao PCB dos anos 1960-1970, o partido se opôs aos grupos que defendiam a via da luta armada para o derrube da ditadura militar, ocasionando as cisões de 1967-1968, quando surgem organizações guerrilheiristas dissidentes do PCB, como a Corrente Revolucionária (CR), a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A concepção de revolução que guia o autor do artigo é da “libertação nacional” nos quadros do nacionalismo de esquerda. O horizonte do socialismo nacionalista não é, nesse sentido, propriamente o da revolução social, nem mesmo socialista, mas “nacional-libertador”, como aquele encampado pelo PCB na época de Luís Carlos Prestes. Baseado na experiência das lutas de libertação nacional da Ásia e da África, ele confere um lugar central ao apoio dado pela URSS aos movimentos independentistas de diversos países subdesenvolvidos, asiáticos e africanos, ao mesmo tempo em que ignora a opressão e exploração imposta ao proletariado dos países submetidos ao imperialismo russo, no terreno da produção. É preciso lembrar, a este propósito, que as revoluções interrompidas nos países do leste europeu, no final das décadas de 1950 e 1960, configuravam-se, em parte, como movimentos nacional-libertadores contra o domínio soviético. Ao deslocar a centralidade da crítica do capitalismo para uma crítica do imperialismo, o socialismo nacionalista substitui a análise da luta de classes e dos conflitos sociais pela análise da luta geopolítica entre nações. É funcional, nesse sentido, que esta análise ignore o fato de que os movimentos de libertação africanos apoiados pela URSS, uma vez no poder das antigas colônias, não alteraram significativamente as estruturas de opressão e exploração capitalistas locais. “Com efeito, a nova classe que dirigia a Rússia considerava, como seus aliados naturais, as futuras classes dominantes de países coloniais e se esforçava para ajuda-los”.[48] Tais experiências levaram a resultados muito distintos dos esperados, ao promoverem uma substituição das velhas classes dominantes estrangeiras por novas elites dirigentes, assentadas em bases autóctones. Da Índia à Rússia, passando pela China, “as revoluções nacionais assumiram uma série de formas e características mantendo uma estrutura basicamente capitalista”.[49] Esta mesma constatação poderia ser estendida às revoluções nacionais africanas, asiáticas e sul-americanas da segunda metade do século XX, mencionadas no artigo do militante do PCB.

Finalizando, o autor do artigo afirma que “passou da hora de irmos às raízes do problema”, ao se referir à “época contrarrevolucionária que vivemos”. Curioso diagnóstico este, da nossa “época contrarrevolucionária”, para quem não vê qualquer evento ou horizonte revolucionário no mundo pós-89. Além do mais, no caso das contrarrevoluções, é por óbvio em seu contrário, nas revoluções, que devemos encontrar “as raízes do problema”. Mas, se “ser radical é tomar as coisas pela raiz”, como se diz, é preciso reconhecer também que, em matéria de história e luta de classes, de revolução e contrarrevolução, existem raízes mais profundas do que outras, mais rasteiras, as quais podem ser apanhadas desde a superfície. Em matéria de radicalidade, são as raízes do primeiro tipo que realmente importam.

Jamais deixamos de exigir o impossível (2)

Notas

[19] Carlos Aguiar de Medeiros (2015), citado pelo autor do artigo.
[20] A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 182.
[21] Tendo sido oportunamente implementada na ocasião da repressão soviética à Primavera de Praga, no ano de 1968, a Doutrina da Soberania Limitada de Brejnev preconizava a intervenção de Moscou na política interna dos demais Estados constituintes da URSS. A sua revogação, por Gorbatchov, entre 1987 e 1989, constituiria, juntamente à Glasnost [transparência] e à Perestroika [reestruturação econômica], um dos elementos originários da decomposição da URSS, concluída entre 1989-1991.
[22] Grégoire Chamayou. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 391.
[23] Citado por Sonya Faure. “Grégoire Chamayou: Pour se défendre, le néolibéralisme a fait refluer le trop-plein de démocratie”. Libération, 09/11/2018.
[24] Os bolcheviques e o controle operário. Porto: Afrontamento, 1975, p. 19.
[25] Brinton, [1976] 2018, pp. 372-373.
[26] Ratgeb (Raoul Vaneigem). Da greve selvagem à autogestão generalizada. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974, p. 9.
[27] Mailer, 2018, p. 354.
[28] Brinton, 2018, p. 364.
[29] Los soviets en Rusia (1905-1921). Madrid: Zero, 1975, p. 268.
[30] A burocratização do mundo (1ª parte). Lisboa: Antígona, 1983, p. 28.
[31] Chamayou, 2020, pp. 392-393.
[32] Yves Boudet. O Partido Comunista e o socialismo autogestionário, 1975.
[33] Ratgeb, 1974, p. 85.
[34] Corrêa e Mhereb, 2018, pp. 96-97.
[35] Sociologie des crises politiques. Paris: Presses des Sciences Po, 2009, p. 272.
[36] Jorge Valadas. “Anti-amnésia: os Cadernos de Circunstância, de ontem para hoje”. Flauta de luz – Boletim de Topografia, nº 2, mar. 2014, pp. 25-33.
[37] António Ferreira. A queda do fascismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974, § 13.
[38] Reeve, 2019, p. 244.
[39] Ibidem, p. 245.
[40] Jean Barrot. Fascismo & Antifascismo, 2016.
[41] João Bernardo. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, p. 309.
[42] “Dirigido a todos os trabalhadores”. Corrêa e Mhereb, 2018, p. 157.
[43] Ratgeb, 1974, p. 91.
[44] Carta a Afonso Monteiro de 8 de maio 1974. Correspondance vol. 5 (1973-1978). Paris: Fayard, p. 157.
[45] A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores. Porto: Afrontamento, 1975.
[46] Charles Reeve. O 25 de Novembro. Lisboa: Editora Meridiano, 1976, p. 28.
[47] Reeve, 1976, p. 52.
[48] Anton Pannekoek. Os conselhos operários, 1947.
[49] Paul Mattick. Marx & Keynes. Os limites da economia mista. Lisboa: Antígona, 2010, p. 321.

 

A autoria das pinturas que ilustram o artigo é do artista português João Alves.

 

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