Por Arthur Moura

O conhecimento é a categoria de maior importância na cultura Hip Hop, pois vem dele a possibilidade de avanço nas lutas sociais pela emancipação do gênero humano. Vem dele também o aprimoramento dos demais elementos, o graffiti, o rap, o DJ e o break. O conhecimento nos coloca a pensar a totalidade de forma articulada. Por isso a cultura Hip Hop só faz sentido se os elementos se conectam e produzem num contexto o comum. O fato é que este é hoje o desafio da cultura Hip Hop: articular-se.

A pergunta correta para este título é: como o processo de mercantilização da cultura Hip Hop permitiu o surgimento de um rap conservador de direita? Talvez ainda devêssemos nos debruçar sobre esta questão. Creio que posso dar algum tipo de contribuição nessa reflexão pelo fato de ter envolvimento direto com a cultura. Também dediquei minha graduação e mestrado na elaboração de algumas questões importantes que não podem ser ignoradas. Essas reflexões estão presentes no meu livro O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro, que também pode ser baixado gratuitamente em PDF.

A cultura é um campo marcado pelas disputas conceituais e de significados, valores e caráter político evidenciando no seu interior diversos aspectos contraditórios da sociedade cindida entre classes antagônicas. Tais disputas se configuram no interior da cultura através de diversos segmentos que lutam pela hegemonia resultando frequentemente em determinações ou ideias sobre aquilo que é ou não verdade, que é ou não aceitável, tendo por fim a construção de ideologias da competência [1] elegendo aquele que pode ou não falar sobre um determinado assunto formando os competentes e consequentemente os incompetentes construindo relações de domínio convergente com interesses de classe e ordens de poder mais específicos de dominação.

O fenômeno do rap conservador é o resultado de um longo processo de mercantilização da cultura Hip Hop como demonstrarei ao longo deste texto [2]. O fato de a cultura ter se mercantilizado abriu todas as portas para a penetração de valores que antes eram antagônicos aos rappers e agentes da cultura como grafiteiros e pichadores, bboys e DJ´s. O rap de direita conservador é um fenômeno recente e ainda carece de debate e investigação sistemática. Trata-se de um fenômeno pós-2013, que é quando a extrema-direita passa a se organizar de forma mais enfática no campo cultural influenciando diretamente nas disputas pelas mentalidades, sobretudo entre os setores mais vulneráveis da sociedade. Forjar um rap de direita foi apenas uma das várias estratégias desenhadas por setores mais radicais das classes dominantes que teve importante orientação do conhecido guru da extrema-direita Olavo de Carvalho. O slogan “Olavo tem razão” é presente em alguns desses raps, como é o caso dos Mensageiros da Profecia com a música “Direita vou ver”. Essa inserção, no entanto, só pode ser possível haja vista alguns fatores fundamentais que precederam o boom das Jornadas de Junho.

Não podemos deixar de lembrar que mesmo o rap não declaradamente de direita (como diversos grupos e MC´s que surgiram no levante cultural da extrema-direita), mas elementos da própria cultura, fizeram o jogo da política neo-fascista. Esse foi o caso do vídeo-propaganda do Vem Pra Rua (movimento da extrema-direita) publicado em 2015 e protagonizado por MC Maomé (integrante do grupo Cone Crew Diretoria), Caio, Gok, Estudante e Buddy Poke. Muito pouco se debateu naquela ocasião sobre a gravidade de MC´s que participam de rodas culturais e figuras bastante conhecidas (caso do MC Maomé) estarem reafirmando um projeto que endossou a eleição do atual presidente da república, uma figura notadamente neo-fascista. Naquela ocasião eu e diversos militantes da cultura Hip Hop escrevemos um breve manifesto que dizia o seguinte:

Este movimento liberal e proto-fascista tem como pautas o Impeachment da presidente Dilma, a redução da maioridade penal, a terceirização dos serviços, intervenção militar, a criminalização de movimentos populares combativos, a mercantilização da vida, dentre muitas outras pautas de cunho absolutamente antidemocrático e antipopular. Por isso, entendemos que o discurso da “liberdade de expressão” utilizado por muitos MC´s e demais agentes da cultura ao mesmo tempo em que tentam se esquivar de responsabilidades diretas sobre os fatos em última instância faz jus às políticas empreendidas por setores empresariais, bancada evangélica, forças armadas e demais segmentos antidemocráticos. Devemos ressaltar que a cultura Hip Hop ao apoiar este âmbito de disputas políticas fortalece setores que historicamente lutaram e lutam contra os fundamentos da cultura de rua como a luta pela democracia direta, a luta contra o genocídio negro, a luta contra o patriarcado e as lutas a favor das liberdades coletivas e individuais. (Hip Hop se manifesta – Não vamos para rua com a direita!)

O rap é a conformação de diversos elementos. Em primeiro lugar da oralidade, mas também das bases e timbragens. O rap é a musicalidade que traduz ou retrata de alguma forma o Hip Hop como base para se atuar em sociedade, pensar as problemáticas e de como agir. É a música que se constrói como resultado das desproporções do campo material em disputa. É um elemento que é discursivo até mesmo na composição dos beats e no uso dos samples [3]. O rap é uma cultura oral; não se afirma somente através de aparatos de produção, mas da fala, sendo por isso a manifestação elementar da cultura Hip Hop.

A história do rap no Brasil, a título de esquematização para melhor compreensão, pode ser divida em alguns períodos centrais. A começar pelo final da década de 80, quando o rap ainda tomava forma a partir de outros territórios nos Estados Unidos (e em outros países) mergulhado na questão racial. Os negros adeptos da cultura Soul na década de 80 manifestavam-se nas ruas e nos bailes Black e sofriam constante repressão contra as manifestações produzidas pela juventude. No Brasil os bailes eram constantemente invadidos pela polícia, que associava o movimento negro aos movimentos de esquerda que lutavam contra a ditadura civil-militar. Os organizadores dos bailes não raro eram levados ao DOPS mesmo não tendo qualquer relação com a esquerda organizada. Os dançarinos, antes mesmo de chegarem aos bailes, eram revistados e muitas vezes humilhados pelos policiais. Isso fez com que os rappers acentuassem ainda mais o antagonismo entre as forças coercivas e as populações das periferias. A polícia não deixou de agir de forma repressiva com os rappers. Pelo contrário. As manifestações atuais, como é o caso das rodas de rima no Rio de Janeiro, foram e continuam sendo reprimidas de forma covarde pela prefeitura, que utiliza do braço armado para criminalizar o movimento.

Em 1988 é lançado o LP Hip Hop Cultura de Rua, produzido por Nasi, André Jung (do Ira!), Akira S e Dudu Marote. Esse disco é tido por muitos como o primeiro registro de rap do Brasil. Artistas como Thaíde e DJ Hum, Código 13, MC Jack e O Credo fazem parte do disco. Em paralelo o grupo Consciência Black lançava os Racionais MC´s. Os discos marcam a reunião e articulação de grupos e produtores para estabelecer e formar as bases de novas linguagens na música e na militância. Por mais que a militância engajada e sistemática desse lugar aos encontros de rua e na formação de grupos, o caráter político se preservava nas letras e no tipo de postura que tinham com a sociedade e o seu contexto.

Em seguida, a década de 90 foi marcante principalmente no que diz respeito à difusão do rap no Brasil, muito por conta da indústria cultural, de canais de TV como a MTV, focada no público jovem, rádios, grandes eventos, etc. A década de 90 trouxe diversas formas musicais à tona. Bandas como Nirvana, Rage Against the Machine, Faith no More, Alice in Chains, Primus, Soundgarden, Pearl Jam, Green Day, Blink 192 (novo punk pop), Planet Hemp, O Rappa, Mamonas Assassinas, Titãs, Charlie Brown, Raimundos, Sepultura, Marilin Manson, System of a Down, Slipknot, Tupac, Notorius Big, Body Count, Brujeria e diversos outros ganharam visibilidade não só como banda, mas muitos também como marcas que comporiam um mercado maior.

Longe das gravadoras, o rap no Brasil começa a surgir como segmento independente. A partir da década de 90 transformações importantes ocorrem impulsionando novos estilos. Ainda assim, o mercado industrial cultural direcionava seus investimentos em segmentos que muitas vezes sequer dialogavam com o rap. A não ser bandas já consagradas como Rage Against the Machine ou Limp Biskit que traziam o rap em sua roupagem, mas ainda assim, o que surgiria seria diferente. A indústria cultural, e aí inserimos os canais midiáticos e a estrutura corporativa, preferiu esperar antes de se aproximar do estilo que nascia.

No Rio de Janeiro o marco é o disco Tiro Inicial, lançado em 1993 pelo selo Radical Records, produzido por Mayrton Bahia e coordenado pelo CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas). No encarte, afirma o blog Disco Furado, “uma frase busca manter a isenção dos grupos quanto a qualquer interpretação do conteúdo de suas letras. Uma orientação do advogado Nehemias Gueiros Jr. contra o risco de possíveis processos.” O disco tem sete faixas e tem os grupos Poesia Sobre Ruínas, Gabriel o Pensador, NAT, Damas do Rap, Geração Futuro, Consciência Urbana e Filhos do Gueto. As letras são denúncias da condição do negro, do trabalhador, enfim, dos setores desprivilegiados. Coloca a guerra existente, mas não se ilude com relação à verdadeira face da polícia e dos bandidos.

A faixa que abre denuncia o racismo e sua eficácia social na dominação daqueles que ironicamente são a maioria, mas que devido aos mecanismos da classe dominante se mantêm subjugados e precisam olhar a si próprios e identificar suas feições que legitimam sua identidade, comum aos discriminados em meio a um contexto despótico repressor. Em seguida a violência policial e a delinquência juvenil também são abordados, famintos que vagam pelas noites, abandonados, e que são sistematicamente vítimas da violência do Estado. “E aí vai um conselho pra quem é inteligente, nunca discrimine o menor carente. Faça alguma coisa pelos menores carentes!” Há também crítica aos pastores que lucram com a alienação dos fiéis.

O grupo Filhos do Gueto coloca de forma enfática a repressão policial sistemática contra a população: “você pode se dar mal se recusar a um pedido de um policial. De um lado os bandidos, de outro policiais, eu tô tentando descobrir que diferença isso faz” e coloca os policiais como os verdadeiros marginais, marginais pagos pelo Estado. Ressaltam também o caráter seletivo da Justiça. Falam dos métodos da classe trabalhadora como piquetes e greve. E concluem: “O que mais me dá raiva agora eu vou dizer: é que a polícia existe é paga pra nos proteger. Mas não é isso que eu posso observar. Então fica a pergunta: de que lado ela está?” Damas do Rap falam de um mundo onde todos são irmãos e superaram as contradições sociais, ainda que sem a extinção do Estado.

Toda essa política repressiva, denunciada pelos grupos no disco Tiro Inicial, não é parte de um suposto excesso do Estado contra boa parte da população, mas sim a sua real função na sociedade capitalista. Por isso, para o grupo Geração Futuro, “o sistema de racismo é eficaz”, e então sugere o grupo NAT: “mate todos os porcos no poder”. Em verdade, afirma Oliven (2010, p.14) sobre este ponto,

A violência e a tortura com que a polícia tem tradicionalmente tratado as classes populares, longe de se constituírem numa “distorção” devido ao “despreparo” do aparelho de repressão, “tem uma função eminentemente política – no sentido de contribuir para preservar a hegemonia das classes dominantes e assegurar a participação ilusória das classes médias nos ganhos da organização política baseada nessa repressão. O exercício continuado dessa repressão ilegítima consolida as imagens de segurança de status social das classes médias diante da permanente ‘ameaça’ que constitui para elas qualquer ampliação das pautas de participação popular.

A polícia, como ressalta Sousa (2012), desde muito antes da formação do movimento Hip Hop, exerceu repressão sistemática contra toda e qualquer movimentação cultural dos negros. O documentário O Negro da Senzala ao Soul, de 1977, realizado pela TV Cultura, apresenta essa problemática desde os idos do século XIX, quando houve a chamada abolição, mas que ao contrário do que muitos pensam não incluiu o negro na sociedade de forma igualitária ou mesmo alterou significativamente a sua condição de vida, trazendo a problemática para os dias atuais em que o negro ainda permanece sob o estigma das classes perigosas. As culturas de resistência nesse caso são claramente um instrumento nocivo à ordem estabelecida pela sociedade burguesa, que tem na polícia e nos meios de comunicação (e, claro, na jurisdição burguesa) os aparatos que garantem a hegemonia da classe dominante. Como aponta Campos (2011, p. 64), neste caso, “a verdade é que grupos hegemônicos da sociedade sempre trabalharam associados ao Estado para que o controle pudesse ganhar ares de legitimidade”. Isso mostra o caráter de classe do Estado e sua real função na sociedade capitalista.

A anticordialidade dos manos, ressaltada por Rafael Lopes de Sousa, é nada mais que uma tomada de posição por parte do rap, que se desenvolveu nas periferias, neste caso as do estado de São Paulo, mas tão logo espraiou-se para boa parte do país por tornar-se uma referência política para o rap. A este respeito, diz Sousa (2012, p. 30):

se o lado “nobre da cidade” elegeu as suas prioridades e identificou o pobre como suspeito preferencial, com o surgimento do rap os pobres vão, igualmente, inventariar muitos motivos para colocar a vida dos boys em suspeição. Cria-se, assim, uma situação de desconfiança mútua que, para os rappers, foi estabelecida pelo preconceito das elites e mascarada pelos apelos de entendimento e harmonia social da “democracia racial”.

Mais uma vez, é importante ressaltar que as contradições sociais apontadas pelos grupos do disco Tiro Inicial não são uma exceção ou qualquer tipo de desvirtuamento de alguns policiais com relação a uma conduta desejável pela sociedade. Isso nos antecipa uma série de equívocos, muitas vezes perpetrados pela esquerda burocrática, tendo como alvo de disputas as corporações policiais como setores propensos a uma transformação ou possível humanização ou reforma, o que se mostra como elemento de alienação e convergência com interesses repressivos despolitizando o sentido da luta. Essa é a lógica de funcionamento da própria corporação. Isso mostra que a relação da polícia com as favelas não é outra senão o controle da população através do medo e ameaças constantes contra a integridade da classe trabalhadora, o que se mostra absolutamente visível em ações diárias das polícias contra moradores de favelas a pretexto de um cínico combate ao tráfico de drogas.

A burguesia sempre desconfiou dos reclames que vinham das favelas. Os segmentos dominantes da sociedade concentram-se nesse momento na desqualificação do rap em detrimento de culturas pretensamente superiores, tipicamente apropriadas por uma intelectualidade burguesa. Muito embora o rap paulista tenha notoriedade no rap de resistência (ou de contestação, como alguns preferem chamar), a situação social e política do Rio de Janeiro fez com que diversos grupos se envolvessem diretamente com as questões da cidade, como colocarei adiante no caso do disco Tiro Inicial.

Em 1999 foi lançado o disco Hip Hop pelo Rio, produzido por Def Yuri, Tito Gomes, Kleber França e Paulo Jeveaux. As letras também denunciam a forma como a classe dominante enxerga os rappers. O disco foi um empreendimento independente e não contou com grandes produtores, como foi o caso do Tiro Inicial. As dificuldades para o lançamento foram, portanto, ainda maiores, visto que àquela altura lançar um trabalho seguia parâmetros outros não tendo, por exemplo, a internet como forte aliada dos produtores independentes.

Em seguida, em 2001, Marcelo D2 apresenta a coletânea Hip Hop Rio. Participam do disco Marcelo D2, Esquadrão Zona Norte, Mahal, Três Pretos, Inumanos, Speed e Black Alien, Don Negrone, BNegão, DJ Negralha, Artigo 331 e Núcleo Sucata Sound. O disco tem uma qualidade particular pela diversidade dos grupos, destacando a singularidade do rap carioca com letras metafóricas e com rápido jogo de palavras, como é o caso de Black Alien e Speed. O caráter identitário do Rio de Janeiro com o rap que vem das ruas, com o grupo Negaativa, a luta pela superação de contradições como forma de não estagnar a vida com Três Pretos, críticas contundentes em MC´s emergentes de Mahal, Inumanos com sua estética inconfundível, e rimas pesadas com Esquadrão Zona Norte em pleno contexto de guerra no Rio de Janeiro. Esse cenário de guerra também é ressaltado pelo extinto grupo Artigo 331, que fala da Zona Norte como um território dominado por bandidos.

O neoliberalismo, fenômeno pós-II Guerra Mundial, já nos idos de 1945 travou uma batalha contra o Estado intervencionista e de bem-estar. O texto de origem dessa reação teórica e política é de 1944 e se chama “O Caminho da Servidão”, de Hayek. Segundo Anderson (1995, p. 9-23) “trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça vital à liberdade não somente econômica, mas também política.”

Esse período de crise atingiu sobremaneira o pobre e o precariado. Em “A Formação dos Sujeitos Periféricos”, Tiarajú (2013, p. 2) coloca da seguinte forma a partir da sua própria experiência:

Naquele começo de 1994, o neoliberalismo começava a entrar forte nas periferias. O desemprego crescente fazia aumentar a informalidade. Já existiam os catadores de material reciclável e outras formas de se virar para viver, espécies de saídas de emergência calcadas na necessidade, se quisermos utilizar o título de um livro recente sobre o assunto.

Tiarajú (2013) refere-se aos anos 90 como um contexto de morte. Mesmo referindo-se aos bairros pobres das diferentes zonas paulistanas este contexto serve-nos também para pensar a dinâmica do capitalismo no Brasil e ampliá-lo para um contexto mundial. Este contexto revela-se extremamente hostil aos mais pobres por trazer em si as condições políticas objetivas para o seu esmagamento como classe. Esse contexto de morte pode ser observado na relação do Estado com a classe trabalhadora, gerando altas taxas de homicídios e também entre as contradições da própria classe gerando violências entre si. Segundo Tiarajú (2013, 14),

a pauperização generalizada nas periferias nessa época deu-se no cenário de erosão das promessas de progresso social e individual associadas ao trabalho e, mais ainda, ao binômio trabalho-moradia, expresso no projeto da casa própria. No seu conjunto, circunstâncias desestabilizadoras que reverberavam nas relações sociais nos bairros periféricos.

Tais aspectos não eram uma realidade apenas de países subdesenvolvidos. Nessa época, na Europa ocidental o desemprego era de 11%, e 3% da população de Nova York estava desabrigada. Isso falando de centros importantes para o capitalismo. A concentração de renda, outro fator gritante na década de 90, teve o Brasil como candidato a campeão mundial. Como consequência, o aumento das diferenças entre países pobres e ricos acabou aumentando a dependência de países pobres. Não podemos deixar de observar também que as décadas de crise (ou a década perdida, como preferem alguns autores ao se referir à década de 90) fomentavam uma onda separatista principalmente em países do Ocidente, como Grã-Bretanha, Espanha, Canadá e Bélgica. Já os países do Leste Europeu se viram na mesma situação a partir de 1991, com o fim da URSS. Esse movimento separatista era muito mais resultado de um egoísmo econômico do que a vontade de se estabelecer novos territórios independentes.

Dentro desse quadro de contradições uma parcela da juventude se esforça por denunciar, através de suas criações artísticas, a concepção da sua condição pauperizada como inimiga do progresso moderno e da ordem social. O rap nos finais da década de 90 ainda era um estilo marginal, evitado em mercados convencionais. A imagem que se construía a seu respeito nas classes dominantes girava em torno de uma desqualificação generalizada e a construção de uma visão negativa a seu respeito. Uma observação importante de Camargos (2015, p.15) em Rap e Política diz o seguinte:

Ao escrever uma coluna para o Jornal do Brasil em 1993, Apoenan Rodrigues revela uma leitura particular de uma cultura musical que, naquele contexto, começava a se consolidar no país. Para ele, “Rap já é um tipo meio chato de música na sua repetição incessante. No caso dos grupos brasileiros que cultivam o gênero, então, o assunto ainda piora quando o que sobra da pobreza musical são letras lamurientas e mal construídas.” (Apoenan Rodrigues, “Rap ganha vida nova”, Jornal do Brasil, 12 out, 1993).

E prossegue:

A opinião do jornalista evidencia como uma experiência social e cultural expõe as tensões que constituem a vida em sociedade, porque ver o rap de modo tão negativo é indício de “lutas de representações”, de um descompasso que se instala na maneira como diferentes setores sociais pensam a sociedade.

Essas lutas de representações na verdade denunciam as diversas cisões sociais estabelecendo perspectivas não só divergentes, mas antagônicas, nas quais quanto mais há denúncia maior o risco do denunciante, sendo, portanto, necessário deslegitimar as expressões que se colocam artisticamente contra todo um conjunto de opressões. A violência física é a materialização da violência discursiva de setores conservadores como anteriormente citado. E sabemos, pois, que essa violência que surge contra os rappers e demais artistas de setores favelados age de forma mais direta com todo o fascismo perpetrado principalmente pela polícia militar que, historicamente, são os carrascos dos invisíveis.

Leia aqui a 2ª parte do texto.

Notas

[1] Para Marilena Chaui (2012), “A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.”
[2] No corpo deste texto estão presentes muitas passagens do meu citado livro.
[3] “Estilisticamente a música rap situa-se de forma compreensível entre o moderno e o pós-moderno, ao servir-se das técnicas pós-modernas do sampling, da citação e da colagem de vários sons para propósitos modernos de auto-expressão, articulando crítica social e rebelião. O rap tem uma relação muito estreita com as tecnologias musicais e pode ser visto como uma forma de tecnocultura, visto que, apesar de depender muito da voz e da dicção para os seus efeitos, a sua produção envolve o uso hábil das novas tecnologias musicais. Ainda que o Hip Hop originário parodiasse a sofisticação técnica do disco através da versátil manipulação técnica dos gira-discos pelos DJ´s e algum rap inicial fosse tecnicamente primitivo, o rap tardio evoluiu para uma complexa tapeçaria de som, utilizando o sampling, a sobreposição de pistas, computadores e toda uma panóplia de sofisticadas técnicas de mistura. Não existe, com efeito, muita música “real” ou “original” no rap, mas batidas básicas de percussão e riffs de guitarras sobrepostos com sons gravados.” Steven Best e Douglas Keller. Rap, revolta negra e diferença racial.

Ilustram este artigo fotos de alguns dos rappers em maior destaque em aplicativos como Spotify e outros reprodutores de músicas. A imagem de destaque é de Cleiby Trevisan e as duas últimas são, respectivamente, de Eduardo Anizelli e Paulo Abreu. Já o nome artístico dos cantores é “Djonga”, “BK” e “Hot e Oreia”.

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