Por Arthur Moura

As favelas surgem nesse cenário estabelecendo-se como redutos de mão de obra barata que abastece diversos setores da cidade e, mais tarde, a que não é absorvida encontra lugar no tráfico de drogas. Essa violência obviamente foi gerada ao longo de um processo histórico. As favelas do Rio de Janeiro também surgem, segundo Campos (2004, p. 21):

por não constituírem em indivíduos fenotipicamente enquadrados nos ideais de monarquistas e, posteriormente, de republicanos. Os negros escravos ou alforriados foram excluídos da prática política e marginalizados economicamente, apontados pela sociedade da época – e permanecendo até os dias atuais, agora de maneira mais subjetiva – como “vadios”, “vagabundos”, “desocupados”, e outros termos depreciativos sociais, que, na base, tinham como pano de fundo o preconceito racial, fruto do estigma legado pela coroa portuguesa ainda no século XVII.

Outro exemplo das lutas de representações que se refere Roberto Camargos é a publicação de 2007 de Bárbara Gancia, texto intitulado “cultura de bacilos”.

Em um país em que o presidente da República acha espirituoso falar em “ponto G” em coletiva de imprensa, distribuir dinheiro público para ensinar a jovens carentes as técnicas do grafite ou a aspirantes a rapper como operar pick-ups, pode até parecer coisa natural. Mas eu pergunto: a que ponto chegamos? Desde quando hip-hop, rap e funk são cultura? Se essas formas de expressão merecem ser divulgadas com o uso de dinheiro público, por que não incluir na lista o axé, a música sertaneja ou, quem sabe, até cursos para ensinar a dança da garrafa? O axé, ao menos, é criação nossa. Ao contrário do hip-hop, rap e funk, que nasceram nos guetos norte-americanos.

Na última quarta-feira, em meu comentário diário na rádio BandNews FM, tomei a liberdade de dizer o que pensava sobre esse lixo musical que, entre outros atributos, é sexista, faz apologia à violência e dói no ouvido. Para quê? Imediatamente a caixa postal eletrônica da rádio foi inundada por protestos tachando-me de racista e fascista.

Sei, sei. Quer dizer que se eu afirmar que a música sertaneja é uma porcaria alienante, tudo bem. Mas se disser que usar boné de beisebol ao contrário na cabeça, calça abaixada na cintura com a cueca aparecendo e tênis de skatista é coisa de colonizado que nem mesmo sabe direito o que o termo hip-hop (um e-mail se referia à musica “rip-rop”) significa, sou racista e fascista?

No texto de Larry Rohter, o antropólogo Hermano Vianna afirma que Gilberto Gil olha para o hip-hop, o funk e o rap “não com preconceito, mas como se fossem oportunidades de negócios”. Não entendo muito de comércio, mas será que produzir uma legião de grafiteiros e de DJs é “oportunidade de negócio”? (16/03/2007 Jornal Folha de São Paulo)

Negar toda a estrutura histórica e cultural do Hip Hop serve unicamente na intenção de desautorizar qualquer empenho em propagar as manifestações da juventude principalmente negra, abrindo brechas para os micro-fascismos e racismos disfarçados de liberdade de expressão, artifício usual entre jornalistas e comunicadores conservadores. Observa-se também o desdém para com governos de caráter mais popular, ainda que liberal e populista, que se diferenciaram muito pouco na prática do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, o que evidencia um forte ódio contra as classes subalternizadas na busca de apagar as suas manifestações artísticas e os seus referenciais ou até mesmo de qualquer garantia à sua sobrevivência, restando ao subalterno apenas a subserviência. O que mais importa não é o caráter vendável da cultura, mas sim o seu poder difusor de valores antagônicos ao da jornalista, por exemplo.

A negação do estilo que nascia não se refletia nas regiões pauperizadas dos grandes centros urbanos onde a cada dia o rap ganhava mais força. Sua identidade se forjou frente às exigências da vida cotidiana daqueles economicamente desfavorecidos.

Com o início dos anos 2000 tudo começa a mudar. As mídias corporativas em geral não são o foco central dos novos rappers. Estes nesse momento preocupam-se mais com a transformação do rap como estilo próprio, inclusive na sua auto-promoção com o desenvolvimento constante da internet e seu uso como ferramenta privilegiada. É nesse período que grupos como Quinto Andar começam um exaustivo trabalho de divulgação na internet. No Rio de Janeiro, o rap começa a reivindicar uma estética própria, muito embora ainda fortemente influenciado pelo boombap e toda a roupagem clássica norte-americana dos samples de soul e funk dos anos 60 e 70.

No período de 2009 a 2016, percebe-se um grande desenvolvimento do rap desde um maior aprimoramento das produções fonográficas, que começa na produção da base ou instrumental, a gravação do MC e a finalização da track [1], à organização que dá continuidade ao processo de propagar determinado conteúdo até outros ramos da produção, isso sem contar com uma maior massificação por conta da inserção televisiva que agora passou a absorver cada vez mais o rap. Atualmente ninguém precisa gravar em beat [2] gringo, ao menos que essa seja uma opção. Os beatmakers locais já construíram seus próprios estilos e linguagens, diferenciando-se num universo igualmente grande de produtores e beatmakers. Em São Paulo, entre muitos outros, Dheeny (que particularmente foi importante para a minha carreira), Munhoz, DJ Caique, Renan Samam, Nato PK; no Rio, Goribeatzz, Machintal, Papatinho, Damien Seth, Maolee, DuBrown, 2F; em Curitiba, Nave, Dario, Laudz, etc, são apenas alguns exemplos de nomes da produção.

A organização de eventos tanto privados como públicos também ganha destaque nesse período, já que houve continuidade e uma organização sistemática que garantiu os espaços ocupados e um público cada vez maior. O mercado também se complexificou, pois os próprios grupos passaram a funcionar como empresas, sendo os MC´s os empresários. Afirma Nissin (do grupo Oriente) em uma das entrevistas que realizei, “que a identidade hoje em dia dos grupos se encontra nos funcionários também vestirem a camisa disso, tá ligado?” Tudo isso corrobora o fato das culturas populares produzirem suas próprias formas de sobrevivência e neste caso pelo viés empreendedor.

As diferentes gerações que se entrecruzam organizando-se entre pares é chave importante para a compreensão das transformações da cena Hip Hop, neste caso mais especificamente o rap. Cada geração do rap exerceu e exerce um papel na história. E a relação desses artistas com o meio também se modifica. Em entrevista que realizei com Marcelo D2 ele colocou que no seu tempo não existia essa coisa de views. O sucesso se media pela venda dos discos e shows realizados. Hoje a relação é outra devido à enorme importância da internet. A função de alguns MC´s mais antigos da cena é também contribuir para uma espécie de coesão de grupo, mesmo implicando diversas contradições no seu interior. Estes MC´s também formulam máximas e ideologias que por fim conformam-se na forma-mercado.

Enquanto os Racionais insistiam numa postura anti-cordial, Marcelo D2 já partia, mesmo nos níveis de produção, de um lugar-conceito midiático-empresarial influenciando decisivamente na cena do rap carioca. Sobre isso diz Verônica (2006, p. 5):

Assim, alguns grupos passaram a elaborar estratégias na sua relação com a grande mídia, negociando a sua visibilidade Marcelo D2, por exemplo, já falou sobre o cuidado que passou a ter com a linguagem de suas músicas: “comecei a tirar palavrões de minhas letras, usar palavras mais certas.

Essa versão empresarial do rap deve muito a esse início. Por isso, pouco a pouco foi se tornando desnecessário empunhar todas as armas a um inimigo declarado, que concentrou todos os esforços na construção de subjetividades dominadas sob o mito das classes perigosas. Em troca seria necessário um espaço, por menor que fosse e que ao mesmo tempo contemplasse certos aspectos daquilo que se pretendesse veicular. Esse espaço não precisa ser protagonizado pelo negro pertencente à classe trabalhadora ao passo que quando este ocupa um lugar de destaque midiático sua posição é de uma forma geral acrítica com relação às grandes corporações. Dentro dessa produção de um sentido midiático e propaganda construiu-se também a ideia de uma correlação de forças possível que proporcionasse uma aparição de fato crítica quando o que se privilegia são os aspectos vendáveis de uma mercadoria e não evidenciar contradições com risco de fecharem-se portas.

A consolidação de novos nomes que passaram a ganhar destaque e a trazer um novo espírito ao rap foi marcado por figuras como Emicida, Rael (ex-integrante do grupo paulista Pentágono), Projota, Rashid, Criolo, Cone Crew, Shawlin (Cachorro Magro), Oriente, Funkero, Ret, Néctar Gang, Cacife Clandestino, 3030 e diversos outros grupos. Juntamente com esses grupos vieram novas formas de distribuição, propaganda e marketing. A mercantilização do rap deu-se ao longo de um processo paulatino onde as formas de mercado foram desenvolvidas no interior da própria cultura e num segundo momento transmutado como cultura de massa. Podemos observar este fato na construção da necessidade da profissionalização no rap.

A transformação do discurso do rap para uma categoria profissionalizada exige que sua classe seja reconhecida e acima de tudo valorizada. MC´s passam a não mais fazer shows de graça, começam a surgir premiações nas principais batalhas que tornam o espetáculo mais envolvente para os participantes acirrando também o nível de disputa que está em jogo. A profissionalização também surge como um discurso excludente. Os que detém mais tecnologia agregada são os que têm maior respeito e merecimento de estar na cena. São os que têm as músicas mais bem mixadas, os clipes em Full HD e seguidores que se pretendem fiéis. O discurso da profissionalização mostra o quão evoluído se encontra quem hoje comanda a cena e apresenta uma falsa ideia de quem está agora começando é necessariamente ruim. (MOURA, Arthur. Uma liberdade chamada solidão)

Para que fosse possível tornar-se mercadoria em escala industrial, de massa, o rap teve que não só abandonar práticas e perspectivas de combate e enfrentamento, mas aceitar o projeto de poder alheio reforçando suas bases aqui e ali tendo com isso benefícios irrecusáveis. A forma tosca de se produzir foi substituída por profissionais qualificados que sabem as exatas frequências de cada timbre ao produzir um disco. O profissionalismo passa a ser sinal de amadurecimento. No entanto, por profissionais entende-se também os burocratas. Burocratizou-se o processo de produção aspirando determinadas contrapartidas que passou a fazer parte do jogo. Agora os MC´s, Dj´s, enfim, toda essa gama, são negociadores, ou como eles mesmos dizem, empresários. Vende-se um beat, contrata-se um show, produz-se uma mercadoria, fecham-se acordos, produzem-se imagens. É o jogo e há de saber jogá-lo. Dentro disso tudo à crítica restou o seu esvaziamento.

A crítica foi sorrateiramente relegada ao campo negativo na cultura Hip Hop principalmente por rappers do Rio de Janeiro e São Paulo, sendo por isso vista como recalque e elemento a ser evitado para a boa condução do campo das amizades e negócios que formam redes de poder longe de pretensões éticas ou formam uma ética a partir de valores de mercado. Isso tudo faz com que a cultura se referencie por elementos individuais e não coletivos enfraquecendo o seu espírito. Consome-se determinado artista e não determinado grupo. Os grupos fragmentaram-se muitas vezes tendo seus componentes incorporados aos sistemas de mercado forjando a sua própria alienação. Nisso as abordagens dos temas caíram de qualidade já que o âmbito da política se fez valer em nível do privado, blindado desde seu lugar a um elemento inofensivo à ordem. Por isso para que a crítica possa existir nesses conformes ela tem que se manifestar como forma-mercadoria. Esta é uma crítica que já está presente no senso comum. Para constatar isso, basta ver, por exemplo, a enxurrada de vídeo-clipes que aproveitou as revoltas de Junho de 2013 e que agora se mostram em suas posições igualmente acríticas e por vezes reacionárias e antiéticas. O caráter corporativo e ideológico também é fator importante.

No meu primeiro trabalho sobre o assunto (o capítulo IV do meu TCC), tratei da questão da ideologia no rap a partir de dois elementos que me parecem centrais: as ideologias do um só caminho do MC Marechal e a Rua é Noiz do Emicida. São importantes pelo seu trajeto histórico e pela influência que exercem. Tais ideologias, não servem somente como forma de aglutinar ou fortalecer as identidades, mas funcionam como forma de governo e domínio. Nos dois casos, a figura a ser fortalecida é o líder que também funciona como um patronato. Algumas críticas que me foram feitas apontam para uma possível defasagem no debate, haja vista que outras ideologias como as professadas por Ret (claramente pós-moderna e neoliberal) ou pela Cone Crew afetam de forma mais determinante a juventude. Tenho discordância neste sentido e continuo aqui o debate ainda prezando por uma análise mais detida sobre as ideologias de Marechal e Emicida, que são influentes na base formando inclusive a subjetividade dos futuros grupos e MC´s de rap. Me referi a elas como ideologias de poder e consumo, mas trato aqui de reiterar que este poder está diretamente ligado a fazer curvar os seus adeptos a uma relação de dominação, sobretudo de mercado e de respeito a liderança, assim como às formas burocráticas de organização, mas também de interesses subjetivos e de poder de seus principais interlocutores no mundo da arte e na sociedade de uma forma geral.

Essa síntese continua válida, corroborada, claro, pela própria estrutura de poder construída pelos MC´s-empresários. A arte, diz Frederico (2005, p. 26), “é uma representação que nos conduz a uma realidade diferente de nosso cotidiano”, e quando ela passa a nos conduzir ao senso comum das relações, é hora de olhar para dentro e identificar os problemas. Dois elementos centrais são a construção de ideologias no rap e o processo de fetiche da mercadoria.

O fetiche é como se fosse um objeto mágico com poderes sobrenaturais. A carranca, diz Carcanholo (2011, p. 87), é um fetiche “e o fenômeno da mente humana de atribuir poderes à escultura, ao pedaço de madeira, e de tornar o ser humano submisso ou dependente dela é o que caracteriza o fetichismo.” E conclui:

O fetiche parece ter seus poderes derivados da sua própria natureza e não da mente humana ou da sociedade. A dimensão mágica reside no fato de que o que é social aparece como natural. (…) A mercadoria já é, então, um fetiche, e os homens estão subordinados a ela por meio do mercado. Essa subordinação é cada vez maior: quanto mais desenvolvido for o mercado, quanto mais dependentes forem os produtores da existência das relações mercantis.

O fetiche-deus é o dinheiro e na sociedade burguesa o fetiche se dá na própria forma de relação mediada por coisas. A natureza do fetichismo social, diz Alves (2009, p. 115),

como forma de objetividade social é ocultar/obnubilar a raiz social das coisas, isto é, “negar” – no plano da consciência social – o próprio homem que trabalha. Uma sociedade fetichizada – como a sociedade burguesa – tende a ocultar o fundamento ontológico do ser social capitalista: o trabalho humano e a forma social estranhada que o constitui (a relação capital).

É nesse processo de fetiche da mercadoria que nascem as ideologias consentidas a partir do empreendedorismo. Emicida destacou-se como um empreendedor transformando a “Rua é Noiz” numa marca, enfim, em algo a ser consumido. Hoje participa de grandes desfiles como São Paulo Fashion Week, está atrelado a um sem número de corporações capitalistas e, não por acaso, promove a completa recusa ao marxismo. Nesse processo, a própria figura do ídolo torna-se ela mesma um fetiche.

“Sou o terror dos clone
Esses ‘boy’ conhece Marx
Nós conhece a fome” (Emicida)

As ideologias no rap resultam de um processo de afirmação e construção de redes que aperfeiçoam-se no sentido não só em afirmar determinado segmento de artistas mas pretende também o governo sobre os outros através da construção sistemática de lideranças que se destacaram no cenário. Ao mesmo tempo em que houve o crescimento do rap como estilo musical (ao passo que se secundarizou o rap como instrumento de luta contra as opressões de classe), ocorre também o desenvolvimento e aperfeiçoamento de aparatos e dispositivos de controle no seio da cultura hip hop através, por exemplo, da ideologia da competência onde o MC serve não só como porta-voz da cultura, mas como parâmetro do gosto e valores sendo uma espécie de chefe a ser obedecido de forma inquestionável, como bem nos parece a figura de Marechal. Nesse caso tais ideologias servem para forjar uma unidade de pensamento e ação. O pensamento é todo ele concebido pelo que possui mais poder e as ações servem como modo de colocar em prática o ethos do grupo. No caso de Marechal o grupo deve uma certa lealdade a ele. As dissensões são tratadas com exclusão.

As ideologias de um modo geral concentram esforços em ampliar cada vez mais a difusão e aceitação do rap em praticamente todas as camadas sociais. É preciso problematizar a função das ideologias para além da vontade de poder dos seus líderes, pois estes são como fio condutor de um contexto geral e amplo que geralmente não está sob seu controle. As ideologias perpassam desde aspectos revolucionários como os mais egoístas possíveis e dificilmente colocam-se a questionar a si próprios num movimento de superar todo um conjunto de contradições. São por isso fundamentais no que diz respeito a estabelecer redes de negociação entre a cultura hip hop e o capitalismo.

As ideologias no rap variam. Os segmentos conservadores banalizam os conceitos fundamentais da cultura priorizando uma estética sensual na qual a busca pela liberdade transmutou-se em resignação ajustando-se aos anseios do capital. A ideologia do foda-se, muito divulgado pelo grupo Cone Crew Diretoria, é um bom exemplo desse caso. O foda-se, ser largado, era não só um estilo de vida para o Quinto Andar, mas um meio de denunciar contradições das relações automatizadas das cidades em questão. Maurício, do grupo Carta na Manga, um dos entrevistados para esta pesquisa, coloca a questão da seguinte forma:

Na época do De Leve tinha muito essa coisa do estilo foda-se, né? E o foda-se naquela época significava muito essa coisa de você tá querendo questionar qualquer ordem estética, sacou? Tipo, “tô falando assim sem papas na língua narrando a minha história sem estar ligado a nenhuma força de poder e sem tipo querer deixar a minha arte limpinha, né cara?”. Hoje o foda-se já tá virando… a linguagem dessa juventude, o foda-se, é um foda-se de total fuga da realidade. O foda-se como uma proposta não de questionamento da ordem, mas um foda-se de reprodução da ordem, sacou? Vamos mandar um foda-se pra essa ordem e viver drogados porque nós vamos ser mais felizes assim, entendeu? Tudo é foda-se, foda-se. Isso acaba virando em certo sentido um discurso cada vez mais de menino mimado, cara. De um cara que não tem coragem de enfrentar as contradições da sua vida, cara. É escroto. É um foda-se que não é libertador. (Maio/2013)

Nesse contexto o rap ganha mais visibilidade a partir das suas próprias movimentações de mercado, mas numa busca por algo mais completo a nível de circulação de mercadorias. Entra, então, a mídia como um lugar central também a ser ocupado. E que rap é este então que foi aceito pelas mídias? Ou o que possibilitou essa fusão com a ideologia burguesa? Isso foi possível por uma demanda de ambos segmentos em aparecer e reproduzir cada vez mais na televisão e representar a cultura a partir de um viés reapropriado por valores burgueses. Como afirma Max B.O. em “O Rap e a Mídia” (2014), de Juliana Caroline e Pamella de Souza:

Eu acho que a partir do momento que tem gente que pode representar o Hip Hop e contar a sua realidade independente de qual seja o veículo de comunicação da mídia, o canal de TV ou a emissora, acho que o crescimento dos artistas de rap da arte do Hip Hop também possibilitou isso. Então acho que é normal, é um sinal de que o rap simplesmente seguiu a evolução de todas as outras coisas.

Legitimar essa relação é papel dos grupos e MC´s, produtores, etc. Estes não acreditam que polemizar seja bom para a cultura, pois o que é mais importante é a presença dos rappers nas mídias televisivas. O que se faz valer é o escamoteamento das tensões. Por que então aceitar participar, por exemplo, de programas como Fátima Bernardes ou qualquer outro programa-espetáculo como o BBB? O que um grupo de rap faria num programa como este além de responder perguntas vazias? Como bem coloca Bourdieu (1997, p. 16) em Sobre a Televisão, “tenho a impressão de que, ao aceitar participar sem se preocupar em saber se se poderá dizer alguma coisa, revela-se muito claramente que não se está ali para dizer alguma coisa, mas por razões bem outras, sobretudo para se fazer ver e ser visto.” Tem que ir pra mídia, aparecer, diz um personagem no filme também anteriormente citado. “Quanto mais gente ouvir seu trampo é melhor.”

Para a maioria da cena a ideia de protesto é algo que já se desgastou transformando-se numa espécie de reclamação de caráter negativo. “O discurso de protesto tem que existir sim, mas tem que falar de coisa boa também sabe. O povo da favela já tá cansado de ouvir as mesmas coisas”, afirma um dos personagens do filme O Rap pelo Rap, de Pedro Fávero. Esse discurso é a porta de entrada para legitimar toda forma de mercado e a consequente inserção do rap nesse âmbito despolitizando debates cruciais, como, por exemplo, a questão da mídia. Sobre isso diz Sombra:

Falta a gente industrializar essa coisa de vender a música, de vender o nosso visual ‘streetware’. Aquela coisa de fazer o fim lucrativo gerar em torno de nós mesmos que cultuamos essa cultura Hip Hop. E pra isso acontecer a gente tem que estar a cada dia que passa em todos os meios midiáticos possíveis. Seja ele jornal impresso, revista, a mídia da rede social, eu digo a internet, tecnologia avançada, a mídia televisiva, a mídia radiofônica e o corpo a corpo com as pessoas mais do que nunca faz com que isso venha a se expandir.

A indústria cultural aparece aí como elemento que pode até mesmo salvar vidas e não o contrário, como geralmente é a regra, mostrando muitas vezes uma ingenuidade com relação às reais intenções do projeto industrial cultural. A televisão não mais é uma corporação que deva ser destruída, mas sim apropriada e ocupada, incorporada por estes que agora a reivindicam, seja para participar de um programa de auditório, uma pegadinha, propaganda, ou programa de entrevista e reportagem.

A mídia que antes via o rap de forma absolutamente negativa e estereotipada, produzindo a criminalização dos movimentos de rua, principalmente as que envolvem negros, passa a comportar tais manifestações. Uma das questões centrais do filme O Som do Tempo é a nova dimensão que alcançou o rap. Para a quase totalidade dos entrevistados, o “rap mente aberta” proporcionou — ou mesmo possibilitou — a expansão do gênero, principalmente no que diz respeito ao seu novo lugar no mercado. Conclui-se que o cunho político, ou seja, a contestação juntamente com ações propositivas, tendo a resistência como caráter, não rege e constrói a narrativa do rap, ele faz parte de um campo temático que não necessariamente opta pelo social. Ele faz parte de um dos assuntos que pode vir a ser abordado no rap. Assim, o amor, as dificuldades, as desilusões e conquistas fazem parte de uma espécie de cardápio, onde o público pode facilmente acessar o assunto predileto. Isso faz com que o novo público, em sua maioria jovens consumidores, dispense a necessidade de procurar outro estilo que esteja na moda para saciar sua busca por identidade. O rap já oferece artistas que cantam sobre amor, violência, maconha, sucesso e opulência, rua, protesto e política, polícia, etc.

Com isso, hoje já se fala numa “indústria independente”, mais humana, orgânica e principalmente administrada pelos competentes da cultura hip hop. Pode parecer constrangedor, mas a junção harmônica de conceitos antagônicos ressignificou não só os fundamentos do hip hop, mas o entendimento do que vem a ser capitalismo. Essa relação não denuncia mais o conflito gerado pelo próprio sistema capitalista, mas apresenta-o como um possível reparador de si próprio. O capitalismo passou a ser entendido como a única forma de relação possível no que diz respeito à produção da arte e sua difusão. E devemos pensar que não se trata de nenhuma alusão irresponsável sobre a real dinâmica da cultura e seus agentes. Mesmo a resistência é pensada convergindo e associando-se muitas vezes a segmentos que se critica nas próprias letras, colocando-se ora como uma visão estratégica de luta, ora como um reformismo político que traz na prática um critério importante de avaliação. Dentro desse contexto, o rap do Rio tornou-se mais “diplomático”, ou seja, permissivo, propenso às adversidades. Esse crescimento gerou o reconhecimento de uma fatia importante da sociedade, o que assegurou ao rap o status de ser mais uma oferta possível dentro do mercado de consumo da indústria cultural.

Esse ecletismo pós-moderno constrói a “democracia de discursos” na cultura Hip Hop. Em segundo plano, se desvencilha de categorias essenciais à própria afirmação política e social da cultura com relação às suas questões de caráter racial e de classe, obliterando, portanto, sua relação de enfrentamento com os segmentos que o oprimem sistematicamente. E, por fim, tal processo leva a cultura Hip Hop a se fragmentar a tal ponto a construir relações autônomas entre os diversos elementos que dão coesão a todo o corpo cultural, a saber, o graffiti, o rap, o break e o conhecimento. Todo esse processo foi determinante para que o rap de direita pudesse encontrar o seu espaço no interior de uma cultura agora propensa a pautas conservadoras.

Notas

[1] Faixa, música.
[2] Instrumental do rap.

Ilustram este artigo fotos de alguns dos rappers em maior destaque em aplicativos como Spotify e outros reprodutores de músicas. Na ordem temos Emicida, Choice e Orochi. As imagens foram reproduzidas da internet e a autoria delas não pôde ser encontrada.

Leia aqui a 1ª parte do texto.

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