Por Manolo

Chove em Salvador, volta o medo de deslizamentos de terra e alagamentos. Volto a falar do assunto, desta vez com uma abordagem diferente: em vez dos deslizamentos, agora, os alagamentos. “Natureza” tem menos a ver com isso que escolha deliberada de governantes em SÉCULOS. Vejam:

Só há um mapa que permite ver os cursos d’água de Salvador ao longo dos séculos, e não é o “Caminho das águas de Salvador; é o mapa de Carlos Weyll, de 1851.
O mapa de Weyll  abrange principalmente as bacias dos rios Camarajipe e Lucaia, e as bacias coletoras de Itapagipe e de Ondina, assim identificadas no “Caminho das Águas de Salvador.
O mapa de Weyll, aliás, corrige o Caminho das Águas de Salvador” em vários pontos destas bacias. A bacia coletora de Ondina, por exemplo, é a bacia do rio Camarão.

Veja os tuítes a seguir cruzando o mapa de Weyll  com um mapa moderno. Fica fácil de entender porque “tudo alaga” em Salvador quando chove.

O “Rio da Lucaia” em Weyll é a atual avenida Vasco da Gama, inaugurada em meados do século XIX como “Estrada Dois de Julho”. Foi totalmente tampada muito recentemente, mas o vale do Lucaia explica os alagamentos na área.
Em Weyll, o “Tanque do Engº da Conceição” é o atual Largo do Tanque. Dele, sai um fio d’água: é a atual avenida San Martin. As encostas concretadas “levam” naturalmente a água da chuva para lá.
Em Weyll, a “Rua da Valla” corresponde às avs. J. J. Seabra, Cônego Pereira e Heitor Dias/Via Expressa. Junto a elas, corre o Rio das Tripas, tampado na J. J. Seabra desde início do séc. XX, e depois ora aberto, ora tampado. Claro que alaga.
Em Weyll, há um rio entre Quinta das Biatas (Cosme de Farias) e Acú (Acupe). É o Rio Bonocô, que corre tampado (aliás muito recentemente) sob o canteiro central da av. Mário Leal Ferreira (conhecida como… Bonocô). Outro caso de encostas concretadas.
O “Canella” aparece em Weyll “cercado” por um rio. É o Rio de São Pedro, que corre como um fio d’água que inunda em cada chuva no Vale do Canela e desemboca no Lucaia, passando por onde a av. Garibaldi encontra com a av. Vasco da Gama.
Em Weyll, há um rio que começa atrás do Campo Santo e desemboca entre “Camarão” e “S. Lazaro”. É o Rio Camarão, hoje um “canal” que passa por dentro do Calabar. Quem mora lá pode dizer como ele fica durante as chuvas.
Em Weyll, existe rio que desemboca em “Areia Preta” (Ondina). No outro lado de uma rua (Cardeal da Silva), nasce outro. O primeiro talvez seja a atual Vila Matos; o segundo é o atual Vale da Muriçoca, na Federação.
Em Weyll, há dois rios em volta do “Acú” (Acupe). O “de baixo” é a atual avenida Ogunjá, que provavelmente soterrou o rio, o “de cima” é o Buraco da Gia, soterrado pelo atual HGE.
Em Weyll, há um “Rio Stº Antonio” entre “Casa da Povora” (Vila Laura) e “Matatu Grande” (Luiz Anselmo). O rio tem esse nome no Caminho das Águas de Salvador“, corre no atual Vale do Matatu, mas foi morto pelo esgoto do entorno.
Em Weyll, há um rio entre “Matatu Grande” (Luiz Anselmo) e “Quinta das Biatas” (Cosme de Farias). É o Córrego das Beatas, tem esse nome no Caminho das Águas de Salvador“, também morto pelo esgoto do entorno.
Em Weyll, perto de “Prambeé” (Pernambués) o “Camorogipe” recebe um rio caudaloso de fora do mapa. É o Rio Pernambués, que corre hoje rente às avs. Luiz Eduardo Magalhães e Paralela e desembocava no Costa Azul como “Chega Nego”.
A transposição do Camarajipe de 1972, aliás, desviou o curso do rio na altura do atual Shopping da Bahia para dividi-lo em dois: metade segue pela av. ACM + Juracy Magalhães (leito antigo), metade segue pela Tancredo Neves + Magalhães Neto (leito do Pernambués).
Último ponto interessante no mapa de Weyll: o “Tanque dos Lôbatos”, atual Dique do Cabrito. No mapa, ele aparece alimentado por um rio vindo do Parque São Bartolomeu, e outro vindo do “Dendezeiro” (provavelmente ainda existente).
Os exemplos de Weyll acabam aqui. Poderia “puxar” outros mapas e mostrar outros tamponamentos, como o do Rio dos Seixos, no Imbuí, mas eles não estão disponíveis online.
Tudo isso para dizer: não, a “natureza” não é responsável pelos alagamentos em Salvador, assim como não o é pelos deslizamentos. Alagamentos resultam da disputa entre classes sociais antagônicas pelos melhores espaços para suas moradias e atividades econômicas.
A ocupação das encostas é um dos efeitos da disputa entre classes sociais antagônicas pelos melhores espaços para suas moradias e atividades econômicas em Salvador. Alagamentos também: afinal, quem quer morar em pântanos, beiras de rio ou aterros alagadiços?
Pântanos, aterros e beiras de rio em Salvador são, como as encostas e áreas de risco, “o que sobra” quando melhores áreas para habitação e atividades econômicas já foram tomadas pelas classes dominantes, e só podem ser acessadas por compra ou aluguel.
Poderá haver, sim, obras de drenagem ou estabilização de encostas que resolvam total ou parcialmente o problema nas áreas mais críticas. Mas a “bomba” do acesso desigual à terra urbanizada em Salvador explodirá novamente no futuro, de outras formas.
É de luta de classes que falamos ao tratar de alagamentos em Salvador. Quando “pobres” perdem casas em deslizamentos ou alagamentos, precisam, sim, de apoio imediato, mas o problema voltará no futuro. Não por falta de obras, mas por acesso desigual à terra urbanizada.

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