por Granamir
1. Apresentação
Este texto não é resultado de uma pesquisa de tipo acadêmico, ou de alguma discussão política coletiva sistemática e aprofundada. Ele parte de uma percepção puramente empírica, uma sensação verificada durante o período de pandemia, desde os primórdios de 2020 até agora (Abril de 2022), que se desdobrou em dois aspectos.
De um lado, um assombro diante da criminosa omissão das instituições e forças políticas de oposição ao governo “Bozo”[1] em face do genocídio em curso no Brasil, em especial dos partidos de esquerda, centrais sindicais, movimentos sociais, etc., ao deixar de construir as lutas necessárias para tentar forçar o capital a pagar o custo do enfrentamento à pandemia. Essas forças políticas se tornaram cúmplices do genocídio cometido pelo governo que nominalmente dizem combater, ao deixar de convocar uma greve geral sanitária para exigir que somente os trabalhadores realmente essenciais tivessem que sair de casa, que todos os demais pudessem ficar em quarentena com empregos, salários e direitos garantidos, que os pequenos negócios não tivessem que fechar, que os trabalhadores essenciais tivessem proteção real, que houvesse um auxílio emergencial efetivo enquanto durasse a crise, que houvesse investimento público em exames, máscaras, álcool, remédios, leitos, vacinas, etc.
Conquistar tudo isso, ou sequer uma parte apenas, certamente exigiria uma grande mobilização e uma luta duríssima, e nunca há garantia de que uma luta terá adesão massiva nem muito menos de que será vitoriosa. Mas o que causou espanto foi o fato de que, da parte dessas forças, nem sequer houve a tentativa de buscar adesão popular a qualquer enfrentamento. Não houve qualquer iniciativa real para convocar alguma luta por nenhuma destas reivindicações. Greve geral, mobilização, protesto, piquete, travamento de estradas e avenidas, ocupação, ação direta, etc., desapareceram do imaginário e do vocabulário dessas organizações. E isso é espantoso porque a justificativa da existência de tais organizações é exatamente manter esses conceitos vivos no imaginário e na prática dos trabalhadores.
O que é mais estarrecedor é que a população não ficou passiva à espera de ser convocada à luta, mas pelo contrário, os conflitos sociais durante a pandemia no Brasil apresentaram uma intensidade e variedade impressionante, como está muito bem registrado neste documento monumental. Mas ao invés da busca pelo conflito como forma de expor as contradições fundamentais da sociabilidade do capital, o que tivemos, por parte daquelas organizações, foram lives, panelaços, algumas micaretas dominicais, comícios eleitorais e uma defumação de estátua. A luta nem sequer foi tentada, esboçada, cogitada, debatida, pensada, em pleno horror de um genocídio pandêmico que custou as vidas de mais de 660 mil pessoas e de uma crise econômica que custou os empregos e a subsistência de muitos milhões.
Enquanto a esquerda organizada no Brasil ignominiosamente virava as costas à luta para se jogar vergonhosamente em especulações mesquinhas no mercado eleitoral, de outro lado, uma série de explosões sociais começou a chamar a atenção em outros países do mundo, e este é o segundo aspecto que nos chamou a atenção e motivou a redação do texto. Essas explosões davam sequência a um movimento que já tinha manifestado seus primeiros sinais em anos anteriores, mas tinha sido pausado nos primeiros meses de 2020, precisamente devido à pandemia da covid-19. Mas esse movimento fez a sua volta ainda durante a primeira onda da pandemia, ainda sem que houvesse vacinas, ainda com muitas incertezas e ainda com o número de mortes subindo. E o fez em pleno centro do imperialismo mundial, em fins de maio de 2020, numa revolta popular que reagiu ao assassinato de um homem negro por um policial, incendiando nada menos do que uma delegacia de polícia, e desencadeando a maior leva de protestos naquele país em meio século. O contraste gritante entre a luta de massas nas ruas dos Estados Unidos e a passividade bovina das organizações políticas no Brasil já se fez sentir desde aquele primeiro momento. Ainda em 2020 outras explosões semelhantes se seguiram, na Bielorrússia, Tailândia, Quirguistão, Polônia, Peru. A lista prosseguia, interminável, nos países mais distantes, em realidades nacionais as mais díspares e sob pretextos os mais variados. Tornava-se evidente que alguma coisa estava acontecendo no mundo, embora ainda não no Brasil (mais tarde, o lugar do Brasil nesse fenômeno mais amplo seria ligeiramente reavaliado). Conforme os anos se sucediam, com 2020 dando lugar a 2021 e logo a 2022, sem que as explosões sociais dessem trégua, a noção de que se tratava de um fenômeno de grande magnitude histórica começava a se tornar mais nítida.
Caracterizamos esse fenômeno como uma onda de revoltas populares, e de saída, a maior onda da história da humanidade. Certamente, alguém poderá lembrar que houve movimentos em séculos passados que mobilizaram uma quantidade maior de pessoas, em números proporcionais à população mundial da época, tais como a guerra civil de Taiping na China (1850-1864) e a desobediência civil na Índia, nas décadas de 1920 e 30. Ou o processo de descolonização da África e da Ásia em meados do século XX, e o da América Latina no início do XIX, que envolveram dezenas de países. Entretanto, esses processos ou se limitaram a um único país, ainda que gigante em termos de território, população e história, no primeiro caso; ou envolveram mais as elites políticas agrupadas em partidos e guerrilhas do que a grande massa da população, além de se prolongar por várias décadas, no segundo caso.
O fenômeno da onda de revoltas que estamos identificando no século XXI se caracteriza por ser mundial, não apenas porque se espalha por vários países e continentes, e se espalha em intervalos muito curtos, de poucos anos ou meses; mas principalmente porque se espalha numa realidade social que tem traços cada vez mais comuns em praticamente todos os países do planeta, como resultado do processo de mundialização do capital das últimas décadas do século XX. Ou seja, trata-se de um tipo de fenômeno que é muito recente em termos históricos. A afirmação de que se trata da maior onda de revoltas da história da humanidade pode parecer bombástica, mas mostraremos que na verdade é bastante modesta, porque esse tipo de fenômeno que estamos tentando definir, as ondas mundiais de revolta, é característico apenas do nosso atual 3º Milênio. A ideia de que estávamos atravessando uma onda mundial de revoltas populares também não é original, ela é tão óbvia que já tinha aparecido em algumas publicações da própria imprensa burguesa, em fins de 2019, como por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui. Nosso único mérito foi apenas o de recolher essa pista, que estava no ar em fins de 2019, e seguir com ela ao longo do período de pandemia, quando seria de se esperar que as revoltas amainassem, e quando o tema de registrar os eventos de cada país como manifestações locais de um fenômeno global tinha perdido o interesse da mídia.
Todo recorte de algum fenômeno social para fins de estudo ou debate guarda algum grau de arbitrariedade, mas é preciso partir de algum lugar. Assim, neste texto, começaremos pelo ano de 2018, registrando os primeiros sinais desse processo global em andamento, e prosseguiremos até o auge da explosão social global em plena pandemia, chegando até o início de 2022. Neste percurso listaremos abaixo os principais focos dessa onda mundial de revoltas, tomando como critério para inclusão na lista os processos de luta de massas que apresentaram um ou mais dos seguintes aspectos: a) envolveram milhões de pessoas, b) se prolongaram por semanas ou meses, c) não foram detidos pela repressão inicial, d) paralisaram a vida no país inteiro, e) polarizaram a situação política no país dali por diante, obtiveram apoio massivo ou majoritário da opinião pública e redefiniram a correlação de forças, f) conseguiram a revogação de alguma lei ou medida governamental ou g) derrubaram o próprio governo ou mesmo o regime político.
A lista assim obtida com base nesses critérios não pretende ser completa nem definitiva, podendo ser suplementada e retificada no curso do debate. Tentamos anexar a cada item da lista algumas sugestões de leitura em links para textos que sirvam para dar ao menos uma visão geral do evento em questão, ou que sejam representativos do debate sobre o desenrolar da revolta em cada país. As sugestões de leitura não têm a pretensão de constituir um dossiê de cada caso particular, são textos recolhidos um tanto aleatoriamente, por isso são de qualidade desigual, incluindo algumas excelentes análises militantes, mas também simples matérias da imprensa burguesa. Reiteramos que não se trata de um apanhado sistemático de referências, mas de um acompanhamento um tanto instintivo de cada um dos casos, guiado pela intuição de que algo estava acontecendo. Conforme dissemos antes, a percepção de que esse fenômeno histórico estava em andamento foi se consolidando gradualmente ao longo do período de pandemia, e somente agora foi organizada em forma de texto, como ponto de partida para propor um debate.
Apresentamos então a seguir a lista das revoltas e, ao final, prosseguimos com um conjunto de teses provisórias, que buscam delimitar os contornos dessas ondas e seu significado para a luta de classes.
2. Lista de revoltas populares da onda atual
2018
– Nicarágua, protestos que começaram numa luta contra a reforma da previdência, paralisaram o país durante meses e exigiram a saída do presidente. Sugestão de leitura em Waslalas.
– Brasil, greve dos caminhoneiros paralisa o país, ameaça o governo de plantão e evidencia de uma só vez o descolamento da esquerda em relação à revolta e também a hegemonia reacionária, que meses depois levaria à eleição do Bozo. Sugestão de leitura no Passa Palavra.
– França, coletes amarelos, revolta contra um imposto que iria aumentar os custos de transportes, começa nas pequenas cidades, paralisa o interior do país e invade Paris nos fins de semana durante meses. Sugestões de leitura em Notes from Below, El Diário, Metamute e Ill Will Editions.
– Sudão, revolta contra a ditadura de 30 anos de Omar Al Bashir, que durou meses até conseguir a remoção do ditador no ano seguinte e um acordo para um regime de transição. Sugestões de leitura em The Nation, 500 WordsMag, Jacobin, Le Monde Diplomatique, Ediciones Extaticas e Crimethink.
2019
– Hong Kong, revolta contra uma lei autorizando o governo a extraditar opositores para a China continental. Sugestões de leitura em Libcom, Passa Palavra, The Atlantic, NQCH (1, 2 e 3), Chuang, Coletivo Planétes, Vimeo e Al Jazeera.
– Equador, revolta contra a retirada de um subsídio governamental, que faria com que aumentasse o custo dos combustíveis e transportes, além de outras medidas impopulares. Sugestão de leitura em Facção Fictícia, BBC, Proletarios Revolucionarios, OPLAS.
– Chile, revolta contra o aumento do preço dos transportes públicos, para a qual convergiu a insatisfação com o modelo econômico herdado da ditadura e que só foi sustada mediante um acordo para uma nova constituinte. Sugestões de leitura em Grupo Interdisciplinario Social Latinoamericano (Facebook), The Clinic, Quilombo Invisível, Primera Linea Revolucionaria Chile, Vimeo, YouTube, Crimethink (1 e 2), Repórter Popular, Lugar Comum, Passa Palavra.
– Bolívia, revolta contra a fraude eleitoral, motins policiais e renúncia de Evo Morales. Sugestões de leitura em Le Monde Diplomatique, Passa Palavra, Systemic Alternatives, Lavaca, Razon y Revolucion, Instituto Humanitas Unisinos, La Nacion, Desinformemonos.
– Catalunha, revolta contra a prisão dos políticos que organizaram um plebiscito sobre a independência da região frente a Espanha. Sugestões de leitura em El Diario, Corporacion Catalana de Mitjans Audiovisuals (1 e 2).
– Honduras, protestos contra um projeto de privatizações do governo, chefiado por um presidente que já vem sendo contestado desde as eleições de 2017, amplamente suspeitas de fraude. Sugestões de leitura em Deutsche Welle, O Globo, Jornal do Comércio, ConexiHon.
– França, greve geral contra a reforma da previdência, uma das maiores na história do país. Sugestões de leitura em G1, Brasil de Fato, Folha de São Paulo, El País, Público.
– Líbano, revolta contra um novo imposto que atingiria inclusive mensagens de WhatsApp, mas que acabaram se generalizando para questionar o regime político do país de divisão do poder entre facções confessionais e atravessaram o ano seguinte. Sugestões de leitura em G1, The New Inquiry, Al Jazeera, Jacobin, Twitter, Midia1508, Aventuras na História, Exame.
– Argélia, protesto contra a intenção do então presidente de concorrer a um quinto mandato. Sugestões de leitura em R7, Exame, G1, RFI, Passa Palavra, Pragmatismo Político.
– Iraque, protestos contra desemprego, ineficiência do serviço público e corrupção terminam questionando o regime de partilha do poder entre as forças políticas e a presença da ocupação estrangeira no país, adentrando também o ano seguinte. Sugestões de leitura em Rampant, Libcom, Alliance of Midle East Socialists, Yahoo News, G1, Estado de Minas, El País, Ceiri News, Reuters.
– Irã, protestos e greves contra o aumento dos combustíveis se prolongam até meados do ano seguinte e apresentam o maior desafio popular ao governo desde o início do regime dos aiatolás em 1979. Sugestões de leitura em Macleans, New York Times, Quilombo Invisível, Libcom, Alliance of Midle East Socialists.
– Indonésia, vários protestos ao longo do ano, contra a reeleição fraudulenta do presidente, a promulgação de leis autoritárias e tensões raciais separatistas na região de Papua. Sugestões de leitura em Agência Brasil, UOL (1 e 2), Folha de São Paulo, G1 (1, 2 e 3), BBC, Reuters, Euronews, Diário de Notícias, e-Global, Terra.
2020
– Estados Unidos, revolta contra a violência policial, dirigida especialmente contra a população negra, exemplificada no assassinato de George Floyd. Sugestões de leitura em Primeira Linha (Facebook), New York Times, Truthout, Mídia 1508, Vice, Jacobin, New York Post, Crimethink (1 e 2), Roar, The Intercept, Al Jazeera, It’s Going Down (1, 2, 3, 4, 5 e 6), In These Times, Detroit Free Press, Ill Will Editions (1 e 2), Puget Sound Anarchists (1 e 2) Artforum, Unicorn Riot, Revista Punkto, Spirit of May 28, UOL.
– Bielorrússia, revolta contra a enésima recondução ao cargo, por meio de eleições fraudulentas, de um presidente fóssil da era soviética. Sugestões de leitura em Twitter, Deutsche Welle (1 e 2), The Guardian, New Yorker, Nueva Sociedad, Los Angeles Times, Folha de São Paulo, Elephant in the Room, The New York Times, Uprising in Belarus (YouTube), Yahoo News e Crimethink.
– Colômbia, protestos contra o assassinato de um advogado pela polícia. Sugestão de leitura em El País.
– Tailândia, protestos contra os privilégios da monarquia, o regime militar e a má gestão da pandemia. Sugestão de leitura em Reuters, The Guardian e Rap Against Dictatorship (YouTube).
– Quirguistão, protesto contra o resultado da eleição parlamentar, considerada fraudulenta pela população. Sugestões de leitura em A Referência, Veja, G1, Deutsche Welle e Isto É.
– Haiti, protestos exigindo a renúncia do presidente devido ao agravamento da miséria. Sugestão de leitura em Gazeta do Povo, G1, UOL, Deutsche Welle, CNN e Isto É.
– Polônia, protesto contra decisão da instância máxima da Justiça praticamente excluindo a possibilidade de aborto legal. Sugestão de leitura G1, Shifter, El País, Piauí, Deutsche Welle, Folha de São Paulo, Outras Palavras, Elephant in the Room, The Guardian (1 e 2).
– Peru, revolta desencadeada pela destituição ilegal de um presidente pelo líder do Congresso, terminando com a destituição deste último, sem também expressar apoio ao presidente anterior, mas apresentando principalmente uma grande insatisfação com a gestão da pandemia e a crise econômica. Sugestão de leitura em La República, El País (1 e 2), BBC, Deutsche Welle, World Socialist Web Site, Federación Anarquista Rosa Negra, Patria Roja, Esquerda Marxista, Liga Internacional Socialista, Democracia Socialista e Latinoamérica21.
2021
– Indonésia, protestos contra a lei que retira direitos trabalhistas e regulações ambientais. Sugestões de leitura em Agência de Notícias Anarquistas, Esquerda Diário, Observador.
– França, protestos contra a lei de segurança global que proíbe filmar ações da polícia. Sugestões de leitura em Estadão, Nantes Revoltee, Passa Palavra, Band UOL.
– Índia, revolta dos agricultores contra uma legislação que iria favorecer as corporações do agronegócio e levar os pequenos produtores à falência, começando no final do ano anterior, perdurando por todo o ano de 2021. Sugestão de leitura em Brasil de Fato e Capire.
– Irã, nova onda de greves e protestos já no decurso da pandemia. Sugestões de leitura em Angry Workers e Iranian Progressives in Translation.
– Colômbia, greve geral massiva, com travamento quase total do país, prolongando-se por meses, contra projeto de lei de aumento de impostos e reforma da saúde. Sugestões de leitura em Agência de Notícias Anarquistas (1 e 2), Jacobin, Federação Anarquista, Folha de São Paulo, Passa Palavra, Outras Palavras, Sound Cloud, Deutsche Welle, Ponte, Facção Fictícia, Crimethink, RT, Teia dos Povos, Sul21, Zur, El Salto Diario, Revoluciones, Masacre en Cali, El país (1 e 2) e Resumen Latinoamericano (1 e 2).
– Birmânia, resistência ao golpe militar. Sugestões de leitura em Passa Palavra (1 e 2) e Deutsche Welle.
– Sudão, resistência contra o golpe militar que interrompeu a transição iniciada em 2018. Sugestões de leitura em Socialist Worker, MENA Solidarity Network, Crimethink, Peoples Dispatch e Reuters.
– Tunísia, protestos contra o parlamento do país, resultando em dissolução deste pelo presidente e crise constitucional prolongada. Sugestões de leitura em Social Science Research Council, Swissinfo e El País.
– Cuba, protestos contra a escassez e crise econômica generalizada, em meio à ressurgência da pandemia, no maior desafio ao governo desde 1994. Sugestões de leitura em Passa Palavra (1 e 2), Comunistas Cuba (1 e 2), Esquerda.Net, Joven Cuba, Observatório Internacional, G1, La Cosa e Movimento Revista.
– Nigéria, revolta contra a violência policial exigindo a dissolução de uma unidade especial notória pelos abusos e impunidade. Sugestões de leitura em Alma Preta.
– Senegal, protesto contra a prisão de um líder oposicionista. Sugestões de leitura em G1 (1 e 2), Euronews, Jornal do Comércio, UOL, Deutsche Welle e A Nação.
– África do Sul, protestos coincidindo com o julgamento do ex-presidente Jacob Zuma, sem no entanto expressar apoio direto a ele, rejeitando o conjunto do sistema político, a crise econômica, o desemprego e a pandemia. Sugestão de leitura em Crimethink.
– Estados Unidos, na tentativa de volta à normalidade depois das eleições e da pandemia estar aparentemente controlada, a polarização e a insatisfação continuam, bem como greves e um peculiar movimento de demissões em massa. Sugestões de leitura em Wildcat, Passa Palavra, Crimethink, UOL (1 e 2), Invidious, Labornotes, YouTube, Libcom, Folha de São Paulo e Newseeek.
2022
– Cazaquistão, revolta contra um aumento drástico no preço dos combustíveis e pelo afastamento total do político que detém o poder no país desde 1990. Sugestões de leitura em Crimethink (1 e 2), Communia, The Diplomat.
– Canadá, greve de caminhoneiros contra a exigência de passaporte de vacinação. Sugestões de leitura em The Guardian.
3. Teses provisórias sobre a atual onda de revoltas
As teses que apresentamos a seguir não têm o caráter de afirmações peremptórias ou absolutas. Elas são a sistematização daquilo que enxergamos como tendências, que não são automáticas nem exclusivas, mas que convivem e conflitam com tendências opostas e variadas, de um modo tal que quaisquer delas e de suas resultantes podem se tornar prevalecentes no futuro. Quando afirmamos, em cada uma das teses abaixo, que enxergamos as coisas caminhando numa determinada direção, isso não significa que não enxergamos as forças que podem empurrá-las na direção oposta, ou rumo a algum resultado imprevisto, mas apenas que apostamos na direção que escolhemos destacar.
As teses a seguir são, portanto, hipóteses e apostas analíticas que delineamos apenas para servir como referência das nossas posições atuais, para que possam ser aproveitadas em debates futuros; posições das quais podemos abrir mão, ou não, conforme avance a intervenção e a investigação num tema tão complexo como este da realidade mundial.
Aspectos históricos gerais
1. Os ciclos de revoltas populares deste século coincidem aproximadamente com as crises cíclicas do capitalismo. A partir da virada do milênio, começa a haver uma maior sincronia entre as crises econômicas, com a explosão delas em um determinado país de importância fundamental para o sistema irradiando suas consequências em praticamente todos os demais países e afetando o conjunto da população mundial, de maneira praticamente imediata. Os processos de luta social começam a refletir essa maior sincronia, produzindo episódios agudos de enfrentamento em vários países quase simultaneamente, ou em intervalos muito curtos, na forma de ondas.
1.1. A crise que teve como epicentro a quebra da Nasdaq em 2000 foi parte do cenário do chamado movimento antiglobalização (que teve seus eventos mais significativos nos protestos de Seattle em 1999 e Gênova em 2001), bem como das revoltas na América Latina (Argentina em 2001, Bolívia em 2000 e 2003, Equador em 2000 e 2005, Venezuela em 2002), as primeiras amostras de que um novo tipo de luta social estava despontando. A crise de 2008-2009 não provocou instantaneamente uma onda de revoltas, mas conforme os governos adotavam medidas de austeridade para cobrir os custos do resgate do capital, as respostas começaram a surgir nos anos seguintes, pois as populações começaram a se rebelar em massa contra essas medidas (greves gerais na Grécia entre 2010 e 2013, Primavera Árabe em 2010 e 2011 na Tunísia, Líbia, Egito, Síria, Qatar, Iêmen, movimento dos Indignados na Espanha e Occupy nos Estados Unidos em 2011, ocupação da Praça Taksim na Turquia e Jornadas de Junho no Brasil em 2013). A onda de revoltas registradas a partir de 2018 e listadas na parte 2 acima coincide com outra crise econômica de grandes proporções, que de certa forma foi disfarçada por uma crise social com aspectos mais gerais, que tem na própria pandemia a sua face mais evidente.
1.2. O ciclo de revoltas em torno da virada do milênio foi superado pelo ciclo seguinte, de 2010-2013, que teve proporções maiores; mas este, por sua vez, acabou sendo também superado pelo ciclo atual, de 2018-2022, ainda maior do que o anterior, e que acompanha uma crise econômica gigantesca, paralela à pandemia. Isso parece sugerir que as crises econômicas capitalistas são cada vez mais sérias, as retomadas são cada vez mais débeis e precárias; e as lutas sociais que acompanham essas crises cada vez mais massivas, generalizadas e radicalizadas.
2. Podemos rastrear essa tendência de agravamento das crises e recrudescimento das lutas, em direção à sua sincronização atual, pelo menos ao início da década de 1970, conforme se inverte a tendência geral de longo prazo de crescimento econômico que, nos países centrais do capitalismo, vinha desde o pós-guerra. Nessa inversão, se aprofundam um conjunto de características que marcam o capitalismo no último meio século: desemprego tecnológico estrutural, hipertrofia do capital financeiro, endividamento dos Estados nacionais, empresas e indivíduos, mundialização dos fluxos de mercadorias, riquezas financeiras, e do mercado de força de trabalho, políticas neoliberais de desregulamentação e privatização, ataques políticos e ideológicos ao movimento operário e suas organizações. Essas tendências gerais do capitalismo se combinam com a degradação ambiental e as crises sociais e políticas para compor o cenário altamente instável das últimas décadas. Esse cenário tende a uma homogeneização em nível mundial, uma vez que a mundialização das forças econômicas produz também uma mundialização das condições sociais e políticas, que por sua vez retroagem dialeticamente sobre aquelas forças econômicas. Esse processo de mundialização e homogeneização está em andamento há várias décadas, até chegar ao ponto atual, em que as crises e as ondas de revoltas tendem a ser também mundialmente mais sincronizadas.
2.1. Essa tendência à convergência e sincronização não implica nenhuma causalidade automática ou determinismo econômico, pelo contrário, indica a determinação recíproca e a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e políticos. A economia ou o capital não é uma máquina cega e automática que carrega nas costas todas as demais partes da vida social e as submete à sua dinâmica, ela é também mais uma dessas partes e está em interação recíproca com as demais. O combustível dessa máquina é a força de trabalho humana, que adentra no sistema como uma grandeza variável, medida em salário (que pode ser fixo, negociado em contrato coletivo, ou flutuante, arbitrado por plataformas digitais, e pode ser direto, pago em dinheiro, ou indireto, na forma de benefícios, condições de trabalho, direitos sociais, etc.), que aumenta ou diminui quantitativamente conforme condições de negociação que se movem ao sabor das lutas coletivas. Essas lutas são influenciadas por uma infinidade de aspectos altamente mutáveis, como formas de organização e ação, disposição de luta, conformidade ideológica, interferência do Estado, história social do país, clima cultural mais ou menos favorável à luta, etc. Logo, essa hipótese de uma crescente sincronização entre os movimentos da economia e da luta social em escala mundial não representa uma preferência pelo determinismo econômico, mas um registro da observação de que essa interação complexa entre economia e vida social tende para a homogeneização em nível mundial.
3. Em termos de participação direta e protagonismo das massas, não apenas de quem sofreu as consequências, as revoltas deste século são mais massivas do que muitas das revoluções do século XX. Algumas daquelas revoluções e as guerras de libertação nacional foram movidas por pequenas vanguardas operárias organizadas, guerrilhas pequeno burguesas e exércitos camponeses. Nesses movimentos, os participantes diretos se contavam na casa de milhares ou dezenas de milhares. As revoltas do século XXI envolvem massas gigantescas de centenas de milhares ou milhões de pessoas, atacando não somente as capitais com seus palácios governamentais e sedes do poder político, mas envolvendo muitíssimas cidades, paralisando países inteiros, prolongando-se por semanas ou meses, criando situações de ingovernabilidade e instabilidade que enfraquecem o poder político por vários anos.
Observações políticas preliminares
4. As revoltas populares do atual período não conseguem colocar em pauta a superação do capitalismo, por mais que tenham muitas vezes a potência de derrubar governantes corruptos, ditadores odiados de muitas décadas, (contra)reformas e medidas legais impopulares, etc., ou de no mínimo tornar ingovernável o país, derretendo a legitimidade dos poderes do Estado, abalando a coesão ideológica e criando dificuldades para a dominação, ao menos temporariamente, com consequências que se arrastam por alguns anos.
5. Apesar da debilidade estratégica, as revoltas apresentam uma imensa criatividade e vitalidade tática: os métodos de luta se difundem com impressionante velocidade e mobilizam muitas milhares ou até milhões de pessoas, os governos, partidos e mídias são pegos de surpresa, os movimentos de um país aprendem com os de outro e evoluem, o contágio atravessa continentes e oceanos em questão de dias ou semanas, barreiras de idioma e cultura são pulverizadas rapidamente, na medida em que massas humanas gigantescas aprendem e se inspiram umas com as outras.
6. A surpresa é uma característica comum em boa parte dessas revoltas. Até o dia anterior, ninguém imaginaria que a revolta explodiria num determinado país, por um determinado motivo, que pode ser tão trivial e rotineiro quanto um aumento de preços ou um ato de violência policial. Jamais se poderia imaginar que uma tal revolta pudesse acontecer em tal país, com tal população, tal história, tal cultura, tal regime político. E no entanto, assim que a revolta explode, ela se torna auto-evidente e auto-explicável. Aqueles atos triviais e rotineiros de violência policial ou de ultraje tecnocrático contra a dignidade humana da população aparecem em toda a sua crueza como intoleráveis e odiosos. E o que se passa a perguntar é como é possível que tanta gente tenha suportado por tanto tempo os abusos e violências da vida detestável nessa sociedade maldita e não tenha se revoltado antes.
7. O fato de que as revoltas estejam aumentando a cada onda, tanto em termos do número de países atingidos como do número de pessoas que tomam a iniciativa de ir às ruas em cada país, não significa necessariamente que a luta contra o capital esteja também automaticamente avançando. Em certos casos, e não são poucos, é sempre possível ou até bem provável que, pelo menos no momento imediato, forças políticas reacionárias estejam melhor posicionadas para explorar eleitoralmente e até ideologicamente as revoltas, resultando em movimentos políticos e governos que revertem uma parte das conquistas populares ou produzem retrocessos. Basta lembrar o golpe de Al Sisi no Egito em 2013 e a virada reacionária na revolta de Maidan na Ucrânia em 2014. Não foi por acaso que, provocativamente, colocamos a greve dos caminhoneiros de 2018 no Brasil e a do Canadá em 2022, no início e no final da lista, já na onda atual. As revoltas populares que atendem aos critérios pontuados na apresentação não são somente aquelas das quais os progressistas gostam, porque esperam obter dividendos eleitorais. São também aquelas que os reacionários são mais bem-sucedidos em explorar.
8. Se os partidos de esquerda e forças progressistas não conseguem se fortalecer nos processos de revolta, são eles que estão do lado errado. Estão entrincheirados ao lado da gestão capitalista e não contra ela. Coloca-se uma disjuntiva implacável para as forças políticas da esquerda: ou apostam de vez na revolta e na derrubada do capitalismo ou apostam na tentativa de gerenciar o sistema por meio da participação no Estado e da disputa eleitoral contra as forças da direita tradicional. Participar da gestão do sistema, entretanto, significa conformar-se aos seus limites cada vez mais restritivos. Não há mais espaço para projetos de desenvolvimento nacional, não há mais margem de manobra para ações autônomas em economias nacionais submetidas ao influxo implacável da mundialização, e não há como contestar a divisão internacional do trabalho já estabelecida há vários séculos. Não há como recusar os ditames dos organismos internacionais e instituições multilaterais (ONU, OMC, OCDE, FMI, Banco Mundial, BIS, etc.), seus tratados, sanções e vigilância. Não há como romper com tudo isso sem uma revolução anticapitalista.
Não existe “mundo multipolar”, existe um único sistema do capital global, estruturado de maneira hierárquica e conflitiva (Mészáros), com grandes potências, países de médio porte e importância regional e pequenos países subalternos. Seja por meio da coação dos grandes organismos, alianças e blocos, ou dos conflitos entre eles, das turbulências políticas e guerras, das efervescências ideológicas, religiosas, raciais ou de outro tipo; de uma maneira ou de outra, esse sistema impõe as exigências da lógica do capital sobre cada Estado nacional. Existe uma única lógica do capital, que coloca o imperativo da reprodução ampliada do valor acima de qualquer outra consideração, seja ela ambiental, sanitária, humanitária, etc. Tudo o que um governo nacional pode fazer é obedecer essa lógica, e qualquer que seja o partido governante, quer se denomine de direita ou de esquerda, a sua função será gerir o sistema e garantir os lucros do capital. As únicas diferenças permitidas entre os partidos políticos são retoques cosméticos no estilo da gestão. Quando optam pela tentativa de gerir o capitalismo, os partidos de esquerda se convertem no pólo “progressista” do neoliberalismo, com tinturas assistenciais, identitárias, ecológicas e politicamente corretas, em oposição ao pólo conservador.
9. A participação da esquerda na gestão, por sua vez, abre as portas para que forças políticas reacionárias com discurso “anti-sistema” apareçam oportunisticamente como alternativa para destronar os dois pólos da gestão neoliberal, canalizando a revolta popular para dentro da ordem e criando uma nova polarização, entre gestão e destruição (regressão) reacionária do sistema. Ameaçada pelas forças reacionárias “anti-sistema” (mas que na verdade reforçam a ordem capitalista manipulando a revolta contra ela), a esquerda institucional e eleitoral tende a apostar cada vez mais na tentativa de gerenciar o sistema, de defender a democracia e as instituições do Estado burguês, e apostar cada vez menos na revolta.
10. Uma esquerda que não está estudando, planejando, organizando, mobilizando, agitando para o fim do capital, do Estado, do direito, da propriedade privada, da mercadoria, do valor, do dinheiro, do trabalho assalariado; não é parte da solução, é parte do problema. Os partidos de esquerda (tanto os eleitorais quanto os ditos revolucionários e organizações menores, que de modo geral são meros parasitas dedicados a captar militantes na base dos primeiros) são cada vez mais parte do inimigo sistêmico a ser enfrentado. Quando a revolta explode, são pegos invariavelmente em conluio com o governo de plantão para abafar a explosão por meio de uma negociação em que oportunisticamente se colocam como “representantes” para dessa forma reduzir tudo a uma pauta, diluindo, simplificando e desviando o processo de luta, de modo a efetivar a recuperação e derrota do movimento; isso quando não estão eles próprios exercendo o governo e a repressão.
11. Mais de um século de hegemonia do reformismo e do estatismo na esquerda fez com que desaparecesse do seu horizonte a superação do capital, do trabalho assalariado, da forma mercadoria, do dinheiro e do Estado. O horizonte da esquerda, acatado por praticamente toda a militância (às vezes resmungando um pouco, às vezes nada), é alcançar o poder do Estado para de alguma forma tentar negociar melhorias materiais para a população, as quais por fim não passam mais de alívios pontuais e temporários. Tais melhorias não se sustentam, porque na verdade não é possível administrar, controlar nem enfrentar o capital a partir do Estado; pelo contrário, a lógica do capital se impõe e transforma todo e qualquer Estado, governo ou partido em instrumento a seu serviço. Tudo o que um governo consegue conceder para a população com uma das mãos é retirado pelo capital com a outra, de diversas maneiras, pelo simples funcionamento da economia capitalista, pela inflação, pela concorrência, pelo descumprimento de regras e regulamentações, pela chantagem de investidores, etc., de modo que ao final a lógica implacável do sistema prevalece de maneira férrea sobre os discursos de qualquer governo. Dessa forma, não é raro que partidos da esquerda estejam nos governos e nessa condição sejam eles próprios o alvo das revoltas populares.
11.1. O caso do Brasil de 2013 é emblemático dessa tendência: causa mais indignação na consciência média da esquerda o fato de que as Jornadas de Junho daquele ano enfraqueceram o governo do partido que defendem do que o fato de que tal partido estivesse no governo. O PT estava no governo, o que significa que só poderia estar administrando para o capital, o que de fato fez, e o fez da forma que conhecemos: favorecendo os bancos, empreiteiras e agronegócio, burocratizando, cooptando e corrompendo os sindicatos e movimentos sociais, associando-se com partidos reacionários e igrejas neopentecostais, despolitizando a pobreza e incentivando a cidadania do crédito, a meritocracia, o empreendedorismo e o individualismo, duplicando o encarceramento e a criminalização da pobreza, e empoderando as polícias e os militares com UPPs, leis antiterrorismo, força nacional de segurança, ocupação do Haiti, etc. Mas nada disso incomoda os seus partidários, pois tudo isso é tido pela parcela mais “esclarecida” e progressista da população, as pessoas que definem a si mesmas como de “esquerda” e portadoras de “consciência social”; como natural e inevitável, como “parte do jogo”, e não justamente como algo que inevitavelmente agrava as condições de vida, contra as quais a massa da população pode e deve se revoltar.
11.2 Essa indignação invertida mostra o quanto as coisas estão de cabeça para baixo na política da esquerda institucional e no pensamento dos seus seguidores. Cegos para as transformações profundas do capitalismo, para o estreitamento das margens de gestão à disposição do Estado nacional, o esvaziamento dos mecanismos democráticos formais, o cansaço e descrença da população nesses mecanismos, a ausência de meios por onde a insatisfação possa ser canalizada para produzir mudanças reais; os esquerdistas se surpreendem quando surge “do nada” uma “onda reacionária” para ameaçar seus governos de estimação. E se mostram duplamente cegos ao não identificar que aquelas alianças partidárias duvidosas e capitulações ideológicas problemáticas ao punitivismo, empreendedorismo, individualismo, etc., por parte dos partidos governantes, são justamente a brecha de onde emergem as tais ondas reacionárias. E quando se deparam com um governo mais abertamente reacionário, para completar a cegueira, não percebem que as condições para mobilizar e enfrentar o reacionarismo foram enfraquecidas pelos próprios partidos de “esquerda”, com sua inapetência para enfrentar o capital e sua disposição a se associar à gestão deste.
Nota dos editores
[1] referência depreciativa a Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República.
As imagens que ilustram este artigo são do pintor inglês J. M. W. Turner (1775 – 1851).
Isso tem a ver com umas coisas que eu tô tentando entender. Vou fazer comentários separados porque a coisa não tá muito organizada na minha cabeça.
1) não é a maior, mas é uma das maiores. A maior com certeza é 1967-80 (da Comuna de Xangai até a greve geral polonesa). Pode ser que seja maior do que 1917-23 mas teria que ver.
2) eu tô tentando reavaliar o porquê do socialismo não estar colocado. Tenho pensado sobre isso. A minha impressão geral é que a gente tem uma visão idealizada do período da Terceira Internacional.
Pra ter uma ideia, em 1921 a IC tinha 900 mil filiados, e foi perdendo até chegar a 300 mil em 1929. Nesse período todo, em linhas gerais, era uma organização revolucionária. Depois de 1934-6 virou reformista (ou centrista em alguns países). Só chegou a ter partidos de massa em quatro países nos anos 1920 (Alemanha, França, Tchecoslováquia e Iugoslavia). Isso é uma grande potência? Os outros partidos não eram qualitativamente diferentes de um PSTU da vida. Sobre a fase reformista, hoje talvez, proporcionalmente, tenha até mais partidos reformistas tipo o PSUV da Venezuela, a La France Insoumise etc.
O fato de parecer que o socialismo tava na ordem do dia nos anos 1920 eu acho que tem mais a ver com outra coisa: uma forma alternativa de desenvolvimento das forças produtivas, que era possível na época e hoje não é mais, por causa da globalização, mas que não era socialista. Socialismo mesmo sempre foi uma minoria dentro da classe trabalhadora. Talvez hoje tenha mais consciência socialista difusa mundialmente do que na época da IC.
3) essas ondas acontecem nós pontos baixos do ciclo de Kondratieff. Se for assim, vai diminuir na década de 2030.
4) Eu achava que a grande virada dessa onda que começou em 2011 foi na Grécia. Ali, a esquerda chegou ao governo e não conseguiu dar uma resposta real à questão da austeridade. Por isso, a direita identitária passou à iniciativa, com a fórmula de sair da austeridade na lógica de “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
5) teve uma greve geral na Índia mês passado. 50 milhões de pessoas pararam. A central sindical entrou em crise, porque avaliou que a greve tava esvaziada 🤣🤣🤣 (???!!!). Imagina quando cair a ditadura na China.
6) Hoje tem mais densidade sindical e cooperativas do que no começo do século XX. Mais uma vez, aí eu acho que tem uma idealização, porque a maioria dos sindicatos lá atrás também eram pelegos, e a gente lembra dos grandes picos de lutas.
7) 7) tem uma coisa sobre a austeridade que eu não tenho certeza. Mas a minha impressão é a seguinte: o neoliberalismo na Europa serviu pra estabilizar a parte da renda nacional que foi pros trabalhadores e, se não tivesse austeridade, teria aumentado muito e inviabilizado o sistema.
8) é difícil de acreditar, mas: a classe trabalhadora não foi derrotada dos anos 80 pra cá nos países capitalistas (no campo stalinista a questão é mais complexa). Teve retrocessos, mas não acabaram com os direitos principais (férias, saúde, previdência, jornada). E a classe trabalhadora cada vez tem mais acesso à educação. Por isso, tem cada vez mais condições materiais de virar o jogo.
9) quais seriam as possibilidades de derrota? Eu imagino pelo menos três:
– uberização generalizada
– guerra interimperialista
– um salto tecnológico que dispense a maior parte dos trabalhadores
10) ninguém ainda descobriu as formas políticas, sociais e econômicas pra romper com o capitalismo. O que eu imagino é que o modelo de revolução com duas forças armadas lutando pelo controle de um território vai acontecer cada vez menos, e em regiões cada vez mais atrasadas (Síria, Nepal, Índia etc é só ver os exemplos). Uma parte dessa ação provavelmente vai ser reformista ou até menos que política no sentido tradicional (as mudanças sociais por causa do feminismo, ou veganismo, ou algumas formas de ecologia por exemplo).
11) eu fico pensando assim: vamos imaginar que a Syriza lá na Grécia quisesse romper, o que eles iam fazer? Que tipo de organização de base eles teriam que impulsionar? Como eles iam fazer com a economia?
Ou eu vejo também algumas experiências municipalistas libertárias na Espanha. O que dá pra fazer nessa escala? Qual tipo de iniciativas ecológicas?
12) a gente não sabe quais seriam as formas organizativas também. O que eu tenho certeza é que mais de 80 anos mostraram que os “partidos de quadros” não funcionam.
13) falei dos sindicatos e cooperativas não porque eu acho que são as instituições estratégicas pra ir ao socialismo, e sim porque são as organizações econômicas do dia a dia. Eu acho que a posição antissindical do autonomismo e comunismo de esquerda é retomar a visão errada da IC de que os trabalhadores estão normalmente dispostos a irem num rumo revolucionário, e que os sindicatos e partidos é que freiam (que o trotskismo formalizou como crise de direção). A atividade da classe trabalhadora é economicista ou reformista, a não ser em situações muito fora do normal.
14) a corrente da comunização diz que a forma espontânea de organização são as assembléias (pelo menos é a posição do Théorie Communiste) acho que isso é uma adaptação ao retrocesso político, assim como a rejeição ao que eles chamam de programatismo. Que uma revolução acontece depois da tomada do poder e aplicando um programa é óbvio, eles é que teriam que provar que tem como socializar a produção e a sociedade antes de tomar o poder. O povo da crítica do valor (Krisis e Exit!) têm uma concepção parecida.
A respeito do texto de Communia, sobre o Cazaquistão no começo desse ano, já possui tradução: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2022/01/protestos-no-cazaquistao-5-pontos-chave.html
Vou colocar todas as respostas aqui num comentário só, usando a numeração que o Rodrigo Silva já colocou, pra facilitar pra quem quiser comentar na sequência.
1) O texto tem uma ambiguidade que se evidenciou agora no debate, ao não distinguir entre revolta e revolução. Uma revolução é um evento maior e mais intenso do que uma revolta. No final da I Guerra houve uma onda de revoluções na Europa que foi mais importante para a história mundial, embora tenha ficado restrita à Europa e arredores (Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, Turquia, Irlanda, motins e greves na França e Inglaterra). O que temos hoje são revoltas, que são menores e menos intensas que as revoluções. Mas enquanto revolta apenas, a onda atual é maior. Tenho dúvidas sobre a possibilidade de estender os movimentos de 1968 até 1980.
2) Na parte 2 do texto procura mostrar que o avanço da mundialização do capital nas últimas décadas criou um certo tipo de condição social que é mais inóspita pra se pensar a superação do capital. Pra resumir, quanto maior o número de pessoas que se proletariza, mais essas pessoas sentem a sua condição como individual. O problema é o tipo de proletarização que está rolando hoje, que é jogar as pessoas individualmente no mercado e bloquear as vias culturais de socialização.
3) Prefiro não opinar sobre ciclos de Kondratieff, por ser cético a respeito da sua utilidade explicativa para a história do capitalismo. Me inclino mais a pensar que tanto os ciclos periódicos de curta duração do capitalismo como as fases mais longas são únicos, e desenvolvem um tipo de processo histórico que é mais cumulativo do que repetitivo.
4) Você deve estar certo. Eu só detectei a virada um pouco mais tarde, quando a Primavera Árabe reverteu em guerra civil na Líbia, na Síria e no golpe de Al Sisi no Egito, e ainda relutei muito em aceitar que estávamos perdendo. Na época eu ainda estava preso à narrativa de que as massas sempre avançam.
5) A Índia é um país confuso demais. A China tem o proletariado mais concentrado do mundo hoje. Se vier alguma novidade vai ser de lá. No dia em que derrubarem o PC vai ser um terremoto mundial.
6) Não sei se eram mais pelegos, minha impressão era de que o enfrentamento era mais cru, qualquer greve era ilegal. Acho que as instituições que existem hoje estão muito mais integradas ao Estado, inclusive. É só ver o que o MST e o MST viraram hoje, são antessalas de programas governamentais.
7) Bom, mas o objetivo da luta de classes não é estabilizar o sistema, é inviabilizar mesmo. Que é o que um movimento reformista combativo deveria fazer, arrancar concessões do capital até socializar tudo. Atualmente existe uma moda de discutir o neoliberalismo como algo para além de um certo tipo de política econômica, mais como uma ideologia, quase uma religião, que molda todos os aspectos do comportamento. E nesse sentido pode ser até mais nefasto.
8) Hipótese que parece boa demais para ser verdade.
9) Eu vejo a uberização e o salto tecnológico acontecendo, embora seja verdade que a uberização nunca vai ser total e sempre vai haver um núcleo significativo de trabalhadores qualificados e organizados. Sobre guerra interimperialista, me parece que não tem como haver confronto direto e as potências vão fazer guerras por procuração, usando forças no interior dos países periféricos da área de influência de cada um.
10) Também concordo que as formas de transição não estão assim disponíveis ao alcance das mãos. Mas eu acho que existem sim parâmetros pra se imaginar. A análise do Marx sobre o capital, a forma mercadoria, a lei do valor, o fetichismo, servem pra alguma coisa, para se saber o que deve ser rompido e substituído. Mas claro, eu também acho que confrontos do tipo da guerra civil russa, que ainda são o modelo com o qual praticamente toda a esquerda que se diz revolucionária hoje ainda sonha; não devem ser o mais comum. A consciência ambiental e feminista deve ter um papel importante sim.
11) Eu implico muito com partidos reformistas tipo Syriza ou PT ou outros voltados para eleições. Mas não é porque eu acho que eles, uma vez eleitos, deveriam anunciar a abolição do capital, mas são pelegos e deixam de fazer isso e traem as expectativas. Mas é porque toda a trajetória que leva eles até serem eleitos já está errada, porque é unilateral. Porque ninguém nunca cumpre algo como a estratégia do Projeto Democrático Popular do PT de 1987, por exemplo, em que você tem um braço dos movimentos sociais e um partido eleitoral. O partido eleitoral sempre toma as rédeas e sempre subordina o movimento, sendo que tem que ser o contrário. O movimento social tem que se manter independente em relação ao Estado e combativo contra o capital, o tempo todo, antes, durante e depois de qualquer disputa eleitoral. E é isso que sempre se perde.
12) Nessa parte eu também tenho bastante acordo, para mim esse modelo do “partido de quadros” reproduz a hierarquia capitalista ao invés de colaborar na ruptura.
13) Eu não acho que os trabalhadores são por definição revolucionários e que só os sindicatos e cooperativas atrapalham o avanço revolucionário. Mas eu acho sim que os sindicatos e outros movimentos institucionalizados atrapalham, e que as direções são sempre pró capitalistas. E é possível um tipo de luta econômica cotidiana que não se subordina ao horizonte das relações capitalistas e sirva para ajudar a enxergar para além delas. Só é muito difícil de fazer, porque sempre se para no meio do caminho.
14) O que eu gosto na comunização é que eles chegaram a conclusões parecidas com as da crítica do valor, que tem um núcleo válido de enfatizar o fetichismo como alvo a ser destruído; mas chegaram a isso sem abrir mão da luta de classes, que é para mim o erro da crítica do valor. Mas claro, eu não acho que a comunização ou qualquer outra corrente tenha uma concepção bem desenvolvida da transição, que baste aplicar como uma receita. Acho que estamos todos numa certa penumbra, sem enxergar muito bem o que tem que acontecer. O meu texto caminha pra uma defesa de duas condições que atualmente não se combinam, o impulso para a insurreição e a necessidade da autogestão. Eu não sei como elas podem algum dia se combinar, mas o que eu defendo é que de algum jeito vão ter que se combinar.