Por Fagner Enrique
Logo após a publicação do artigo Bestializados?, escrito por Manolo, escrevi um comentário, que pode ser conferido aqui, discordando de um ponto específico daquele artigo: a afirmação de que as medidas que estão sendo tomadas pelo Poder Judiciário para combater o bolsonarismo, especialmente pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, não podem ser definidas como medidas de exceção. Afirmei que embora o STF esteja praticando atos previstos na letra da lei, da Constituição, do Regimento Interno do STF e assim por diante, tais atos contradizem abertamente princípios jurídicos que, acrescento agora, são tão ou mais importantes, a meu ver, do que as regras inscritas no ordenamento jurídico.
Afirmava eu, no comentário, que as medidas de exceção explicam-se pelo objetivo do STF de tirar os bolsonaristas de circulação, privar-lhes de fontes de recursos, acabar com sua capacidade de articulação, enfim, destruir o movimento. Faço agora uma pequena correção: não se trata necessariamente de destruir o movimento, mas de tentar reduzi-lo à impotência ou domesticá-lo, realidade que os movimentos dos trabalhadores e a militância de esquerda conhecem bem de perto. Mas vamos adiante. Argumentei ainda que estamos diante de um Judiciário que, a pretexto de proteger a democracia contra o bolsonarismo, pratica atos cada vez mais autoritários. Além disso, continuei, a democracia que querem proteger é uma democracia reduzida às “instituições”, quer dizer, mera estrutura estatal, esqueleto sem vida, privado dos tecidos e fluidos que um dia deram-lhe alguma vitalidade, forma democrática sem conteúdo democrático. Que tal estrutura seja útil para o proletariado, creio que não (a esquerda eleitoral crê que sim), mas que seja para ele mais benéfica do que uma estrutura autoritária ou totalitária, ninguém em sã consciência pode negar.
E alertei finalmente que, fazendo uso de medidas de exceção para a defesa de uma institucionalidade cadavérica, representantes dessa institucionalidade contam com o aval de grande parte da população e dos principais órgãos capitalistas de imprensa, e inclusive, infelizmente, da própria esquerda, desertora de sua principal missão: recolocar na ordem do dia a luta de classes, o que pressupõe, penso eu, formas libertárias de resolução de divergências políticas e formas autogestionárias de resolução de problemas econômicos. Pelo contrário, a esquerda aplaude, apoia, colabora e difunde um denuncismo típico de regimes totalitários. E acrescento agora: enquanto a esquerda desiste de ser de esquerda e pede repressão, satisfeita de ver os bolsonaristas provarem do próprio remédio, a classe trabalhadora depara com uma democracia progressivamente autoritária, uma aberração mais e mais alheia, mais e mais estranha ao espírito de socialismo democrático que no passado a animou, ou pelo menos parte dela.
Pois bem. Deparando com meu comentário, meu interlocutor decidiu escrever outro artigo, intitulado Lei, exceção, canários, o que encaro como um estímulo à transposição do debate da seção de comentários do Passa Palavra para a seção de artigos. O presente artigo foi escrito, pois, no intuito de contribuir para o debate e, quem sabe, a análise da conjuntura.
As divergências entre mim e Manolo ficam muito claras quando Manolo nos dá o seu conceito de Direito. Escreve o autor que o Direito é “técnica de exercício de poder e de governo. Ponto”. Uma definição simples e direta. Da minha parte, o que posso fazer agora é apresentar uma concepção alternativa e radicalmente diversa do que seja o Direito.
Uma concepção dialética do Direito
No artigo Lei, exceção, canários, Manolo critica aqueles — a quem chamou “canários-de-belchior” — para quem o Direito reduz-se à norma pura, que olham para o ordenamento jurídico com um viés normativista, formalista, inconscientemente neokantiano. Manolo tenta aqui desvencilhar-se das duas correntes básicas do pensamento jurídico, o positivismo e o jusnaturalismo. Tenta, mas a meu ver não consegue. Ao negar o caráter de exceção das medidas aplicadas contra os bolsonaristas, Manolo apega-se justamente à “norma pura”, adotando o viés mais normativista possível. E por adotar um ponto de vista normativista, Manolo resvala no mesmo erro dos positivistas e dos jusnaturalistas: confunde o Direito com o chamado direito positivo e, por aí, com o poder organizado dos capitalistas. Manolo critica quem reduz o Direito à norma pura, mas define o Direito como técnica de exercício de poder e de governo. Não poderia haver melhor definição para o direito positivo, tal como o definiu Hans Kelsen, para quem o direito positivo se subsume ao conceito de norma jurídica, que por sua vez “se expressa na ideia de dever”. Ora, não há exercício de poder e governo sem que haja imposição de obrigações e exigência de obediência, de cima a baixo, do governo ao governado: enfim, o dever. O Direito, para os positivistas, é obrigação imposta ao indivíduo pela via da coação, mediante sanções estatais aplicadas por quem detém o monopólio da força, e ao mesmo tempo técnica social, “que permite aos homens conduzirem-se de uma maneira determinada” [1].
Manolo afirma ter-se espantado com uma “estranha coincidência de posições” entre mim e os adeptos do liberalismo social, que na verdade não existe, como demonstrarei a seguir. E o alerta que fiz em meu comentário serviu ainda para que, através de uma taxonomia curiosa, Manolo me classificasse como um “canário-da-mina”, outra espécie, mas pelo visto do mesmo gênero. Seja como for, na verdade não se trata de mero alerta, mas de entrever quais são as linhas potenciais de desenvolvimento histórico, que devem ser levadas em consideração — ou pelo menos deveriam ser — por pessoas que pretendem derrubar o Estado e os capitalistas. Seria bom que essas pessoas refletissem sobre as possíveis consequências do tipo de apoio por elas prestado ao tipo de política praticado pelos agentes estatais.
Não pretendo defender o ordenamento jurídico como um ecologista que se agarra no topo da árvore para evitar que venha abaixo. O Direito não é um edifício tombado como patrimônio histórico. Não é isso: a questão é problematizar um comportamento reiterado entre os agentes estatais, não apenas porque crie precedentes, mas pela normalização de condutas que representa, normalização esta que poderá ser, no futuro, não apenas gravíssima, mas fatal.
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Enfim, vejamos agora uma concepção alternativa e radicalmente diversa de Direito. Não encontrei até hoje, em minha trajetória de estudo e prática jurídica, uma definição mais acertada de Direito do que a de Roberto Lyra Filho, autor que, aliás, me foi indicado pelo próprio Manolo, ficando aqui desde já registrado o meu agradecimento. Tentarei aqui seguir os passos do grande mestre e, ao mesmo tempo, incluir talvez um ou outro insight próprio. Para não ficarmos de rodeios, Lyra Filho também nos dá uma definição a princípio simples e direta de Direito: trata-se de “princípios e normas libertadores”, devendo considerar-se a lei “simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas” [2].
O Direito não se resume, pois, ao direito positivo: ele abrange necessariamente pressões coletivas desde a base, regras e princípios não estatais que emergem das lutas dos explorados, posições vanguardistas que englobam a luta pela democracia e a igualdade social, a garantia do direito das minorias à diferença, o progresso social e o avanço dos direitos humanos no sentido da libertação econômica. Enfim, o Direito tem como um de seus componentes o direito positivo, isto é, dever imposto pelo governo ao governado, mediante sanções e uso institucionalizado da violência, técnica de controle social, mas também tem outro componente: aspirações libertárias dos explorados que, em luta contra os exploradores, obrigam-nos ou pelo menos constrangem-nos a inscrevê-las no ordenamento jurídico, a contragosto ou porque percebem que disso depende a manutenção da coesão social. É a velha luta de classes, em que uns pretendem transformar a sociedade, libertando-se de condições injustas de existência, e outros pretendem conservar e proteger a sociedade, sua sociedade, de novas conquistas. Lyra Filho fala na teimosia da História, da locomotiva amarrada que “acaba rompendo as amarras e passando por cima de quem quiser se encostar à frente e pará-la com a bunda”.
O Direito em sentido amplo, na perspectiva de Lyra Filho, aqui grafado com “d” maiúsculo, é constituído de antidireito e direito autêntico. De um lado, legitimam-se práticas de exploração e supressão de liberdades. De outro, tais práticas são deslegitimadas e legitimam-se outras, voltadas para a libertação política e econômica, o que caminha, para mim, na direção do ponto em que a autonomia política se conjuga com a autogestão dos processos de produção, circulação e distribuição de riqueza.
Mas esse Direito a que me refiro não nasceu da cabeça do jurista ou do “legislador”, esta entidade a-histórica encontrada nos manuais. Ele resulta de uma análise histórica: as sociedades humanas sempre se caracterizaram pela sucessão de modos de produção, regimes políticos, estruturas sociais e formas culturais assentadas na exploração e na supressão de liberdades — incluindo-se aí a dimensão antijurídica do Direito, que sempre funcionou como fator de legitimação da práxis dos exploradores —, mas os explorados sempre lhes resistiram, opondo-lhes regras e princípios libertários. É algo inescapável, porque a essência do ser humano é a de ser um agente de transformações, na natureza e na sociedade. O ser humano busca libertar-se continuamente das condições naturais e sociais a que se encontra submetido, embora uns pretendam fazê-lo impondo aos outros o fardo da empreitada. Como escreveu Marx, “ninguém luta contra a liberdade; no máximo, luta contra a liberdade dos outros”. Há, porém, aqueles que pressionam no sentido oposto, por avanços que inevitavelmente, embora limitados e compensados de muitas maneiras, vão sendo consentidos pelos donos da riqueza e do poder. É o direito autêntico, positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais, formulação de princípios supremos de justiça social. Contudo, a luta de classes, onde as classes dominantes impõem sua vontade muitas vezes a ferro e fogo, quando falham outros artifícios, faz do Direito um amálgama contraditório de direito autêntico e antidireito. O direito autêntico pode até estar inscrito no núcleo do ordenamento jurídico, varrendo o antidireito para uma posição marginal, mas será sempre submetido, quando necessário, a um enquadramento que é a sua antítese.
Nesse processo, as Constituições vão sendo reescritas para incluírem cada vez mais direitos, direitos estes que, não obstante, para serem exercidos satisfatoriamente pela totalidade dos explorados, necessitariam de uma revolução social.
Essa concepção de Direito rompe tanto com o positivismo quanto com o jusnaturalismo. O positivismo, como já vimos, reduz o Direito ao direito positivo, à norma pura, que vai sendo conformada historicamente sob liderança e tutela das classes dominantes, que vão impondo, assim, limitações e condicionamentos à mudança social, sempre com fundamento no próprio direito positivo, num ciclo, ou melhor, numa armadilha jurídica inescapável, na medida em que as transformações legítimas são sempre aquelas limitadas pelo já existente. É a perspectiva do estrito controle social, engessando e sacralizando um direito positivo que não passa de estágio transitório do fenômeno jurídico, que deverá ser superado em nome do progresso social, através da luta social. O positivismo, ironicamente, obsta o progresso em vez de propiciá-lo. Os jusnaturalistas kantianos, por sua vez, buscam o Direito em categorias metafísicas, mas como buscam-nas no pensamento jurídico hegemônico, tal como se foi consolidando ao longo da história, também sob tutela dos exploradores, não fazem mais do que conceber categorias que expressam a práxis das classes dominantes, sobretudo porque a maior parte dos juristas nasce e se cria nesse meio, ou têm aí sua formação política e intelectual. Os juristas tendem, portanto, a confundir o Direito com os valores culturais dominantes. Eles só conseguem escapar desse ciclo autorreferencial quando começam a pensar o Direito a partir de categorias concebidas pelos explorados no curso das lutas sociais, mas mesmo assim tendem a subordiná-las às categorias hegemônicas, incorporando-as através de um filtro cultural.
E por que falar não em dois Direitos, mas num só, internamente contraditório? Lyra Filho apresenta seus argumentos, mas eu apresentarei um meu. Porque as classes sociais não vivem, como ensina João Bernardo em Dialética da Prática e da Ideologia [3], apenas em relação-de-negação, mas também em negação-em-relação. A relação-de-negação absoluta é situação excepcional, pois rompe a trama de que se constitui o tecido social. A negação-em-relação é, por outro lado, o fundamento da coesão social, a trama que tece o tecido da sociedade de classes.
Nessa perspectiva dialética, portanto, existe uma pluralidade de fontes do Direito, razão pela qual o direito autêntico e o antidireito interpenetram-se. Voltando às lições de Lyra Filho, embora haja uma pluralidade de fontes do Direito, há unicidade de critérios de legitimação da norma. Norma legítima é aquela que, em consonância com o direito autêntico, aponta no sentido da libertação. E, por outro lado, os critérios de legitimação são universais, em sintonia com um movimento dialético que vai do particular ao geral, do regional ao nacional, do nacional ao mundial, num processo de totalização. O direito autêntico sempre teve caráter universalista, indo de encontro ao relativismo valorativo tão em voga na esquerda atual.
E quais seriam as fontes do Direito? Tradicionalmente as leis, os costumes, a doutrina, a jurisprudência, a analogia, os princípios gerais do direito e os atos negociais [4]. As principais fontes do Direito são, nos países da common law, a jurisprudência extraída dos costumes, e nos países da civil law, preferencialmente a lei, admitindo-se sistemas híbridos. Mas já Miguel Reale afirmara — sim, Miguel Reale, o homem pensava, vamos pensar com ele — que “com o predomínio do processo legislativo; ou do processo jurisdicional, correspondentes às duas áreas culturais básicas do mundo contemporâneo, prevalecem neste as fontes de direito de natureza estatal sobre as de caráter puramente social” [5]. Como o proletariado não controla o poder de Estado — aliás estruturado de maneira hierárquica e afunilada, sendo incompatível com qualquer perspectiva de democracia proletária —, não consegue fazer predominar no ordenamento jurídico as regras, princípios e categorias que concebe na luta contra os capitalistas, mas isso não o impede de, através de movimentos organizados ou expressões espontâneas, declarar o que entende por Justiça.
Acho que fica bastante claro, pois, que a minha concepção de Direito, a concepção que entendo mais precisa, é bastante distinta da dos adeptos do liberalismo social.
Exceção: expressão máxima do antidireito
E qual é a expressão máxima do antidireito? O estado de exceção. Mas essa expressão absoluta, por imperativo de eficiência e eficácia das técnicas de controle social, pode existir, nos regimes democráticos, de modo fragmentário, nas modalidades previstas nas normas constitucionais ou infraconstitucionais: no Brasil, o estado de defesa (Constituição, art. 136), o estado de sítio (idem, art. 137), a intervenção federal (idem, art. 34) e a operação de garantia da lei e da ordem (Constituição, art. 142, regulamentado pela Lei Complementar nº 97, de 1999, e pelo Decreto nº 3.897, de 2001) [6]. E, a meu ver, analisando os acontecimentos recentes, o máximo antidireito também pode existir de maneira informal e hiperfragmentária, sem a necessidade de instituição de um estado de exceção, mas através do que chamei, naquele meu comentário que motivou o segundo artigo de Manolo, de medidas de exceção.
De acordo com Giorgio Agamben [7], o estado de exceção não é necessariamente uma ditadura, mas um espaço vazio de Direito, uma anomia resultante da suspensão do Direito. Os atos praticados durante o estado de exceção situam-se, relativamente ao Direito, num não-lugar absoluto. Trata-se de uma situação fática, não de uma situação jurídica, que se situa no limite entre a política e o Direito, forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Segundo Agamben, é “terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida”. É como que uma “guerra civil legal”, que permite a “eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”. O regime totalitário seria, assim, o estado de exceção em grau máximo — geral, absoluto e permanente, diria eu. Ocorre que, segundo o autor, o estado de exceção vem se tornando uma prática essencial nos Estados contemporâneos, inclusive os democráticos, convertendo-se em técnica de governo de relevância estratégica decisiva, patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo, justificado por um suposto direito subjetivo do Estado à autopreservação.
As medidas que vêm sendo tomadas contra os bolsonaristas pelo Judiciário não configuram, logicamente, um estado de exceção geral, absoluto e permanente, como defini acima. Os bolsonaristas acreditam estar vivendo num regime desse tipo quando falam, por exemplo, na “ditadura do STF” e veiculam as mais delirantes teorias conspiratórias. Também não configuram, a meu ver, aquilo que chamei de estado de exceção fragmentário, procedimento formal caracterizado pela suspensão localizada, relativa e temporária de direitos constitucionais — estado de defesa, estado de sítio, etc. —, concebido para assegurar a autopreservação do Estado em face de qualquer ameaça. Mas para mim configuram medidas de exceção, informais e hiperfragmentárias, ou cirúrgicas, uma anomia e um vazio de Direito pragmático e improvisado, algo que resulta, penso eu, da inusitada novidade de um presidente fascizante que buscou, de todas as maneiras possíveis, precipitar no caos, na desarticulação mútua e na absoluta inoperância as “instituições democráticas”, tentando intensificar um processo de pulverização que dura já 10 anos, na busca pelo poder pessoal, mobilizando e tentando manobrar uma rede multifacetada de indignados, desde movimentos de protesto mais ou menos pacíficos a potenciais grupos paramilitares e iniciativas que se abeiram do terrorismo.
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Sobre esse último ponto, considero úteis as contribuições de Manuel Castells em Redes de Indignação e Esperança [8]. Estamos há 10 anos convivendo com redes de indignados no Brasil, movimentos emocionais cuja insurgência não começa com um programa ou estratégia política. “Isso pode vir depois”, escreve Castells, “quando surge a liderança, de dentro ou de fora do movimento, para fomentar agendas políticas, ideológicas e pessoais que podem ou não relacionar-se às origens e motivações dos participantes do movimento”. Segundo Castells, o Big Bang de um movimento desse tipo começa “quando a emoção se transforma em ação”. Trata-se de movimentos de rebelião multifacetada, de rápida difusão viral de imagens e ideias, suscitada pela indignação, caracterizados pelo uso da internet e de redes sem fio como plataforma de comunicação digital, possibilitando que sua mensagem chegue a uma multiplicidade de receptores em redes horizontais de comunicação interativa. Por fim, caracterizam-se também pela negação da legitimidade da classe política e a denúncia de sua subserviência às elites financeiras.
Ora, a experiência com esse tipo de movimento no Brasil girou, desde 2013, exatos 180 graus, da extrema-esquerda à extrema-direita, evoluindo de uma indignação proletária suscitada pelo esgotamento do pacto de conciliação de classes presidido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) para uma indignação pequeno-burguesa e de gestores frustrados — como bem demonstrou o próprio Manolo na excelente série Um governo contra o governo? —, que se desdobrou na rejeição da própria institucionalidade da Nova República. É a “classe média” anômica, assim definida por Eugenio Raúl Zaffaroni, citado por mim noutro artigo publicado neste site [9], agora deparando com o vazio de Direito que vem reivindicando há muito tempo, de mãos dadas com dois novos sujeitos anômicos de tendências aparentemente suicidas: o precariado, de um lado, anômico devido à insegurança permanente das relações contratuais a que se encontra submetido e, de outro, uma esquerda que se redescobriu autoritária e punitivista, anômica por não ser capaz de agir efetivamente contra a precarização das relações de trabalho e a pulverização de suas organizações — seja pela perda de relevância política e econômica dos partidos, sindicados e movimentos sociais, e sua conversão em empresas capitalistas, seja pela rápida pulverização dos coletivos por disputas identitárias — e anômica ainda pela sua incapacidade de resistir ao avanço do fascismo, do reacionarismo religioso, de moralismos retrógrados e de uma virilidade masculina grosseira, musculosa e armada.
Diante dessa nova realidade, representantes do Estado brasileiro, sobretudo o Judiciário — ocupando o nível mais alto do sistema de justiça e pretendendo exercer um poder moderador, concorrendo nesse sentido com as Forças Armadas — improvisam medidas de exceção, tão fragmentárias quanto o sistema político brasileiro e o próprio tecido social. É o arrebatamento de uma nação pelo caos, e o estupor.
A essa esquerda anômica, que referi acima, restam tão somente duas alternativas: ajudar a levar de volta à Presidência da República o atual representante máximo do pacto conservador e dos mecanismos de ascensão social [10], ou um de seus apensos, para o que tem demonstrado há muito grande aptidão, e alienar no Estado o combate ao fascismo. O nível a que chegamos. Se no estado de exceção o Estado desenvolve sua aptidão antropófaga, deglutindo vorazmente essência humana de liberdade, a esquerda da exceção desenvolve, além da sua aptidão conservadora, uma nova aptidão, a da autofagia, bem na linha do suicídio anômico durkheimiano.
Frutos da árvore envenenada
Voltemos aos argumentos do meu interlocutor: Manolo escreve que “é nos movimentos da relação entre classes sociais antagônicas que o Direito deve ser entendido, porque não é senão uma série de fotografias da correlação de forças em cada momento desta luta”, e estou inteiramente de acordo, exceto na parte do método fotográfico, que abordarei em instantes. Logo a seguir afirma que “o problema não é existirem ou não ‘medidas de exceção’ na atual onda de repressão aos bolsonaristas (que a meu ver não há), mas sim o fato de ser a força do aparato repressivo do Estado a barrar seus intentos golpistas, não a força de ações e mobilizações de trabalhadores”, no que estou parcialmente de acordo. De fato, um dos principais problemas da atual conjuntura é, já o afirmei, o fato de que a esquerda não tem força para resistir ao avanço da extrema-direita e do fascismo. Seja como for, o fascismo ascende justamente quando a classe trabalhadora e a esquerda estão em crise, não nos momentos de ascenso das lutas sociais, como demonstra João Bernardo em Labirintos do Fascismo [11].
O problema é que, logo depois de fazer a profissão de fé na luta de classes, Manolo suspendeu a eficácia do argumento, como um tribunal que suspende a eficácia de uma decisão de primeiro grau, e passou a analisar a questão da existência ou não de medidas de exceção com base unicamente na norma pura, aquela do proverbial “canário-de-belchior”. E o fez porque, para Manolo, o Direito, num dado tempo e lugar, é uma “fotografia da correlação de forças entre as classes sociais”. Vendo as lutas sociais de modo unilateral, do ponto de vista das classes dominantes no momento que escolheu fotografar, o fotógrafo deixou de ver nas lutas dos explorados a enunciação de princípios e regras libertadores, alguns deles inscritos no direito positivo apenas porque houve, noutras conjunturas históricas, e parece que vamos demorar a ver isso novamente, lutas sociais. Mas o Direito não é a captura do momento da supremacia social de uma classe, nem tem ele uma única fonte, a práxis dos exploradores; ele é um processo histórico pluralista, em que o antidireito dos exploradores é confrontado pelo direito autêntico dos explorados. A esquerda, penso eu, não pode se contentar, nem muito menos se entusiasmar com a fotografia do momento, pensando: “bom, se não temos força para enfrentar o fascismo e atualmente a correlação de forças é favorável à ‘reação democrática’ das classes dominantes, então isso é o Direito no momento e tudo vai muito bem”. É quase como dizer que, se o Direito se confunde com a política, o governo nunca erra. Fico me perguntando como uma esquerda que pensa assim viveria, ou melhor, sobreviveria no stalinismo.
Assim, Manolo cai no mesmo erro dos positivistas e jusnaturalistas, confundindo o Direito com o direito positivo e os valores culturais das classes dominantes, captados pela câmera fotográfica, e não pela câmera de vigilância da luta de classes. E Manolo deixa de abordar ainda a questão dos critérios de legitimação da norma pura, que se submetem ao direito autêntico e seus valores universais, não à técnica de exercício de poder e governo dos exploradores num dado momento. A posição de Manolo, aliás, acaba escorregando para o relativismo valorativo, um relativismo temporal. Os campos de concentração seriam, de acordo com essa perspectiva, perfeitamente conforme ao Direito.
Já Pachukanis alertara, em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo [12], que a teoria do Direito não pode deixar de lado os interesses materiais que se manifestam na sociedade, ou seja, o Direito não se resume a conceitos jurídicos abstratos ou à técnica jurídica, ou a categorias puras kantianas elevadas acima da experiência. Por outro lado, o Direito não deve ser reduzido ao seu conteúdo material, sua origem nos fatos da vida, nas relações sociais. Ele deve ser visto como um objeto dotado de vida própria, em intercâmbio dialético com as relações sociais. O Direito, assim, não é abstração pairando acima da sociedade, alheia aos fatos e relações sociais, nem mera invencionice resultante dos interesses dominantes num dado momento, mas elemento constitutivo das relações sociais, forma jurídica associada ao conteúdo e à forma das relações humanas — tal como as categorias abstratas da economia (o valor, por exemplo), simultaneamente resultado e antecipação dessas relações. Trata-se da aplicação, ao Direito, da lógica dialética.
O problema é que nem sequer a “fotografia” do ordenamento jurídico brasileiro afasta a preocupação com as medidas de exceção: as normas devem ser interpretadas sistematicamente, e o sistema do ordenamento jurídico brasileiro é democrático, humanista e garantista. Manolo escolheu fotografar umas partes e deixou outras fora do enquadramento. Vejamos, portanto, como a interação entre princípios e regras, no sistema do ordenamento jurídico brasileiro, autoriza a conclusão de há sim medidas de exceção no Brasil atual.
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Manolo argumenta que o Inquérito nº 4871 (Inquérito das Fake News) foi aberto pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, com fundamento em dispositivo do Regimento Interno do STF, “dentro do poder de polícia que exerce nas dependências do tribunal […] e com plena autorização regimental”. Para além da “plena autorização regimental”, Manolo reitera o argumento da “enorme latitude hermenêutica” e da “considerável dose de boa vontade”. Ora, as técnicas de interpretação determinam que, na aplicação da lei penal, é vedada a chamada interpretação extensiva, que resulta numa ampliação do significado da lei. Para a teoria da literalidade da lei penal, qualquer caso de dúvida, no tocante à interpretação da lei penal, deve ser resolvido mediante interpretação restritiva, compatível com o princípio de que a dúvida beneficia o réu. Mesmo que se argumente que há uma diferença entre lei penal e lei processual penal (o inquérito é procedimento do processo penal), o entendimento é o mesmo, pois dispositivos processuais penais restritivos de liberdades pessoais ou que tenham natureza mista devem ser rigorosamente interpretados. A “enorme latitude hermenêutica” e a “considerável dose de boa vontade” consistiram, na verdade, em suspensão do Direito e pura técnica de controle social.
Manolo em seguida alega que as medidas, colocando aspas, “autoritárias” e “de exceção” foram cometidas em outro inquérito, o Inquérito nº 4879, conhecido como Inquérito dos Atos Antidemocráticos. Na verdade, houve mais de um inquérito com essa denominação, como eu já havia afirmado em meu comentário ao artigo Bestializados?, creio que, acrescento agora, devido a uma confusão da imprensa na cobertura dos fatos. Mas, enfim, Manolo alega que o inquérito foi aberto por iniciativa da Procuradoria-Geral da República e distribuído por sorteio, e conclui: “Onde está a exceção aí? Em lugar algum. Mesuras e salamaleques do processo penal foram seguidos à risca”. Discordo e, aliás, faltou checagem especialmente na parte relativa à distribuição por sorteio, pois, como se pode conferir aqui, o inquérito, que se encontra sob sigilo, foi “distribuído por prevenção” a Alexandre de Moraes no dia 16/08/2021. Como eu havia sintetizado em meu comentário, esse é apenas um dos atos praticados ao arrepio de princípios e regras libertários que só existem hoje no ordenamento jurídico porque os governados, especialmente os explorados, já sofreram todo tipo de arbitrariedades e lutaram muito ao longo da história por algumas garantias. O “acidente jurídico” da lei que transporta as melhores conquistas, na perspectiva de Lyra Filho.
Desenvolverei apenas quatro dos argumentos que apresentei no comentário ao primeiro artigo de Manolo, a respeito do inquérito originário, o Inquérito das Fake News, pois esse inquérito é onde se enraízam as medidas de exceção. Caso não houvesse o objetivo declarado do STF, com a conivência de outras instituições, de domesticar o bolsonarismo ou reduzi-lo à impotência, esses quatro argumentos estariam suscitando discussões acerca de temas como juízo de exceção, abuso de autoridade e nulidade de todos os atos praticados, incluindo logicamente as prisões, as medidas cautelares, os elementos de informação coletados (em regra, no inquérito policial não se produzem provas, e sim elementos de informação, sendo as provas produzidas em julgamento).
- As ameaças e ofensas aos ministros do STF, feitas virtualmente, sobretudo através das redes sociais, passaram a ser investigadas como se tivessem ocorrido nas dependências físicas do tribunal. Enfim, a interpretação extensiva do Regimento Interno, mencionada acima.
- Um dos ministros, vítima das ameaças e ofensas, e portanto parte interessada no processo, foi designado (não sorteado) relator. Aqui foi ferido de morte o princípio processual penal do juiz natural, relativo ao direito do cidadão de ser julgado por um juiz cuja competência foi fixada previamente na Constituição e que seja independente e imparcial. Foi instituído, pelo contrário, um juízo de exceção, isto é, aquele juízo que é instituído após a prática do delito, com o objetivo específico de julgá-lo, e ainda por cima presidido por um juiz impedido, devido ao seu interesse na demanda, violando-se o art. 252, inciso IV, do Código de Processo Penal. Além do Código de Processo Penal, há aqui uma porção de normas constitucionais e de direito público internacional sendo violadas (entre elas, Constituição, art. 5º, incisos XXXVII e LIII; Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, art. 8º; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, arts. 9º e 14, etc.). Lembre-se que Lula só está sentado hoje na cadeira do Presidente da República porque foi reconhecida a imparcialidade do juiz que o condenou, mas a esquerda… Ah, essa esquerda é muito esquecida, não tem boa memória, como já argumentei noutra ocasião [13]. Poder-se-ia alegar que o STF não proferiu nenhuma sentença, o que torna tudo ainda mais grave, pois prisões e outras medidas restritivas de liberdade estão sendo decretadas no curso da investigação, sem que os investigados tenham culpa formada, violando-se, portanto, a Constituição (art. 5º, incisos LIII e LIV), o Código Penal (art. 59) e o princípio da culpabilidade.
- Ainda quanto ao princípio do juiz natural, o STF é competente para julgar crimes cometidos pelo Presidente da República, o Vice-Presidente, membros do Congresso, seus próprios ministros e o Procurador-Geral da República (Constituição, art. 102, inciso I, alínea b). O tribunal não é competente para o julgamento de crimes cometidos contra seus ministros por pessoas não elencadas no dispositivo constitucional, e mesmo entre as que estão elencadas, em hipótese alguma poderia um dos juízes, como vítima, julgar os autores do crime, por estar impedido. Novamente, mesmo que não estejamos ainda na fase do processo judicial, prisões e outras medidas restritivas de liberdade têm sido decretadas, sem que os investigados tenham culpa formada.
- Todo inquérito deve ser temporário, consectário do princípio constitucional da duração razoável do processo (inscrito na Constituição no art. 5º, inciso LXXVIII), sob pena de configurar-se extensão injustificada da investigação (crime previsto no art. 31 da Lei de Abuso de Autoridade), mas os inquéritos vão se avolumando sem que se vislumbre o fim das investigações. Há precedentes judiciais de arquivamento de inquéritos que, violando esse princípio, duraram anos. Ademais, é preciso que um inquérito tenha delimitação objetiva (dos fatos investigados) e subjetiva (das pessoas investigadas), mas como o bolsonarismo é uma rede de indignados em movimento, novos fatos e novas pessoas vão sendo incluídos. Novos inquéritos vão sendo abertos e distribuídos ao mesmo juiz.
Esses quatro argumentos — aos quais Manolo não respondeu em seu segundo artigo — são mais do que suficientes para ensejar a aplicação dos princípios da vedação da prova ilícita e da vedação da prova ilícita por derivação, baseados na teoria dos frutos da árvore envenenada. Todos os elementos de informação coletados nesses inquéritos poderão ser, posteriormente, na fase do julgamento, considerados absolutamente nulos, pois obtidos de maneira ilícita, violando-se regras de competência e o princípio do juiz natural, por meio de verdadeiro juízo de exceção. E as pessoas presas seriam libertadas, devido à ilegalidade das prisões. Medidas cautelares seriam revogadas, etc. Pouco importa que outros inquéritos tenham sido abertos por iniciativa da Procuradoria-Geral da República, ou por crimes cometidos nas dependências do STF, como em 8 de janeiro, pois todos os atos praticados desde a abertura do primeiro inquérito, por serem frutos da mesma árvore, nutridos pelas mesmas raízes, não têm validade.
Não creio, pois, que as “mesuras e salamaleques” do processo penal foram seguidos à risca. O que vejo é um vazio de Direito, a suspensão cirúrgica do Direito, de maneira pragmática e improvisada, cujas motivações são, de um lado, a noção de direito subjetivo do Estado à autopreservação, que já serviu para tentar justificar muitos crimes cometidos por agentes estatais ao longo da história e, de outro, a existência de uma rede de indignados que não vê legitimidade nesse Estado.
Suicidas
Volto a um ponto anterior: não se trata de adotar um viés normativista e formalista, e nem apenas de preocupar-se com precedentes que podem, no futuro, ser usados contra nós. Trata-se de problematizar a normalização, e legitimação pela esquerda, de um padrão de comportamento que vem sendo reiterado pelos agentes estatais. Que agora esse comportamento seja reiterado em prejuízo dos fascistas, pouco importa. O que importa é que ele vá se prolongando no tempo, conformando uma cultura, um modus operandi que representa uma regressão histórica e nos coloca, para retomar o tema da correlação de forças, numa péssima posição.
No artigo Vocês preferem ser torturados ou não ser? [14], João Bernardo traça um paralelo interessante entre a repressão clandestina nas democracias, os métodos de vigilância e a mais-valia relativa, de um lado, e a repressão explícita nas ditaduras e a mais-valia absoluta, de outro. Pois bem. A esquerda que aplaude e apoia as medidas de exceção, ou que não vê nelas medidas de exceção, é consciente ou inconscientemente a esquerda da mais-valia absoluta jurídica.
O capitalismo, como ensina João Bernardo [15], é o único modo de produção até hoje em que os exploradores disponibilizam o quadro tecnológico dos explorados. Devido a esse enquadramento, os capitalistas não vivem de costas para a classe trabalhadora, como uma casta apartada e completamente alheia à cultura e instituições criadas pelos trabalhadores. Pelo contrário, buscam não apenas enquadrá-los num quadro tecnológico como também monitorá-los de perto, acompanhando sua evolução cultural e política e buscando incorporar ao sistema econômico práticas dos trabalhadores que possam impulsionar a produtividade e, portanto, a exploração. A isso o autor chama “recuperação das lutas sociais”. Além disso, os hábitos, as modas, a arte, o lazer, enfim, tudo aquilo que os trabalhadores produzem quando não estão trabalhando para o patrão representa, para os capitalistas, a aquisição de habilidades, oportunidades de investimento e novos mercados em potencial. E a incorporação de práticas gestadas pelos trabalhadores ocorre com especial intensidade nas conjunturas de derrota das lutas autônomas dos trabalhadores, precipitados pela burocratização interna de suas instituições, por um lado, e sua conversão em empresas capitalistas, por outro. Os burocratas ingressam na classe dos gestores e, paralelamente às divisões internas e desilusões, fica preparado o terreno para a repressão a qualquer ímpeto de radicalização, seja nas ruas ou no interior das empresas.
É interessante, nesse sentido, traçar um paralelo entre o processo de recuperação das lutas autônomas dos trabalhadores e o processo de assimilação, pelo Estado, de regras e princípios libertadores enunciados pelos explorados. Essa assimilação se dá, logicamente, sempre de maneira subordinada às regras e princípios que consolidam as hierarquias e a hetero-organização dos processos de trabalho, a propriedade privada dos meios de produção, o afunilamento de oportunidades políticas e econômicas, a “livre iniciativa” dos detentores do capital, etc. Mediante essa assimilação, os exploradores estipulam o compasso, o conteúdo e a amplitude das mudanças por eles consentidas. É a faceta jurídica da luta de classes e do processo de recuperação das lutas.
Mas permitam-me desenvolver o argumento noutra direção. Como vimos acima, o Brasil está há uma década vivendo um período de pulverização da esquerda e descenso das lutas dos trabalhadores, e testemunhando, na mesma conjuntura, o rápido desaparecimento de uma rede de indignados de extrema-esquerda e a rápida ascensão de uma rede de indignados de extrema-direita, fascistas, além do fortalecimento de partidos de direita e extrema-direita, reacionarismos religiosos e moralismos retrógrados. Essas pessoas não constituem um movimento de contestação no interior das empresas combatendo as relações de exploração, então logicamente não há nada aqui a ser recuperado, pois não há lutas autônomas de trabalhadores. Isso não significa que não vá haver, por outro lado, assimilação por parte do Estado, sobretudo tendo em vista que, para os agentes estatais, o Estado possui direito subjetivo à autopreservação. O próprio Manolo refere essa assimilação quando discute o processo de desnazificação da Alemanha em seu artigo Bestializados?, e estou inteiramente de acordo com a análise.
O bolsonarismo veio para ficar e a “reação democrática” será concentrada em sua ala mais radical, porque, enfim, com alguns deles se poderá trabalhar no futuro. Paralelamente, as medidas de exceção voltadas contra a ala mais radical do bolsonarismo criam condições para que sejam voltadas novamente no futuro contra qualquer ímpeto de radicalização à esquerda, e com muito mais violência, como 2013 esteve aí para mostrar. O governo atual, repito, é o do pacto conservador e dos mecanismos de ascensão social. Não vejo motivos para a esquerda ficar com um sorriso no rosto vendo os bolsonaristas serem vítimas de medidas de exceção, pois, com uma mão, as “instituições democráticas” tentarão domesticar ou reduzir à impotência o fascismo radical e, com outra, abrirão as portas e convidarão a sentar-se à mesa, com tapinhas nas costas, elementos do fascismo conservador, quem esteja disposto a colaborar. Quando os trabalhadores decidirem romper novamente com o pacto conservador e os mecanismos de ascensão social, veremos os mesmos agentes estatais atuando, e de acordo com o mesmo modus operandi, tendo a esquerda dado sua contribuição ao legitimar a “reação democrática” contra o bolsonarismo.
Enfim, é esse o processo que vemos desenrolar-se diante de nossos olhos. A esquerda deveria sempre aplicar dois princípios básicos: tudo aquilo que aponta no sentido da libertação, não de uns apenas, mas de todos, deve ser apoiado, bem como tudo aquilo que aponta no sentido do controle da classe trabalhadora sobre os processos econômicos. Só assim o universalismo da ideia de liberdade poderá conjugar-se à especificidade da abolição das relações de exploração. A esquerda da mais-valia absoluta jurídica e das medidas de exceção, porém, caminha no sentido oposto, atuando como linha auxiliar, não apenas de agentes estatais em completa negação do Direito, exercendo pura técnica de controle social, forma jurídica do arbítrio, mas ainda dos mecanismos que permitem a assimilação do fascismo e sua cultura totalitária à democracia. Os suicidas.
As obras que ilustram o artigo são da autoria de Juan Muñoz (1953-2001).
Notas
[1] Conferir o livro de Kelsen Teoria Pura do Direito, disponível aqui em espanhol.
[2] Para uma síntese da concepção humanista dialética do autor, conferir o genial O Que é Direito, disponível aqui.
[3] Conferir aqui.
[4] Para um enfoque tradicional, conferir, por exemplo, o livro de Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito (aqui).
[5] Conferir, do autor, Lições Preliminares de Direito, disponível aqui.
[6] Sobre se a operação de garantia da lei e da ordem constitui estado de exceção ou não, é interessante ler este artigo, publicado na revista da Escola Superior de Guerra, onde o autor, exercitando a lógica com primor, afirma que tal operação não consiste em estado de exceção, mas aplica-se em situações de “absoluta excepcionalidade”, nas quais seja necessário decretar a intervenção federal.
[7] Conferir, do autor, o livro Estado de Exceção, disponível aqui.
[8] O livro de Castells está disponível aqui.
[9] Conferir, de minha autoria, O que ainda podemos aprender com 2013? 4) Suicídio (aqui).
[10] Conferir, de minha autoria, A esquerda foi corrompida (aqui) e Eleições de 2022: à esquerda jaz uma esquerda (aqui).
[11] A terceira versão do livro pode ser conferida aqui. A quarta foi lançada pela editora Hedra no ano passado.
[12] O livro de Pachukanis pode ser encontrado aqui.
[13] Conferir, de minha autoria, Lula… mas de novo? (aqui).
[14] O texto pode ser conferido aqui.
[15] Conferir especialmente, do autor, Economia dos Conflitos Sociais, disponível aqui.
Considerar as medidas de Moraes e do STF e de outras instituições como oriundas do “direito subjetivo à autopreservação” do Estado é esquecer um fator que me parece mais importante que tudo que tem sido debatido pelos autores: a Constituição e os valores atacados pelo bolsonarismo são uma conquista histórica dos trabalhadores, a formalização, em lei, de valores que a luta social conseguiu impor, ou negociar, ou ter como concessão ao longo da luta pela democracia como método político de organização social capitalista (sendo o método econômico a mais-valia relativa).
Quando o STF se defende, como pode ou como não poderia se seguisse a lei estritamente, ele está, pela posição institucional que ocupa no ordenamento jurídico e social, defendendo o órgão encarregado de zelar e vigiar a observância de um documento que norteia e dá o parâmetro legal da vida social, sendo por isso um documento não apenas jurídico, mas político, ideológico, cultural, histórico. Se o ataque é às bases da democracia e da Constituição, as instituições podem e devem usar de subterfúgios ilegais para a autodefesa, não porque tenham um direito subjetivo à autopreservação, mas porque são baluartes de valores maiores e mais amplos que qualquer formalismo da lei positivada. Elementos jurídicos formais e processuais servem para salvaguardar ataques a direitos, não podem servir de muro que impede a defesa das bases do ordenamento democrático. Não se pode defender garantias democráticas a ataques à democracia, essas garantias não seriam dadas aos esquerdistas, então porque estamos defendendo q sejam dadas aos fascistas? O “espírito das leis” não pode ser impedido de ser defendido devido a alguma formalidade da lei.
É assim até que forças sociais organizadas derrubem o regime e imponham novos valores, socialmente legitimados, mostrando que os valores positivados na Constituição e demais leis não atendem e não refletem mais o solo social, mas enquanto isso não ocorre as instituições capitalistas democráticas podem e devem agir como estão agindo, e nesse ponto não devia haver surpresa na esquerda com o uso de métodos não tão estritamente legais ou ilegais, pois é assim que a justiça burguesa funciona desde sempre, devido ao fato de que não existe neutralidade e há luta política e interesse político em cada ação dos membros do aparato estatal, incluindo os membros do STF. Há ainda a seletividade penal, que mostra nitidamente o caráter político da justiça, que pune e efetiva algumas leis, enquanto desconsidera outras.
Talvez esse debate teórico (e de precisão conceitual) entre Manolo e Fagner esteja motivado pelo receio de que estes métodos “de exceção” sejam repetidos e se voltem contra a esquerda no futuro, mas me parece uma preocupação desnecessária, pelo simples fato de que a justiça sempre é uma justiça de classe, cujo movimento depende da correlação de forças da luta de classes, e que nunca houve receio de se usar (e sempre foram usadas) medidas de exceção contra a esquerda.
A esquerda não pode se pautar em cobrar “coerência” e “tratamento igual” ou “neutro” de órgãos capitalistas. Qualquer garantia jurídica deverá ser sempre arrancada pela força, a força da organização na luta social. Com isso quero dizer que não há problema algum na esquerda aplaudir medidas de exceção contra o bolsonarismo, medidas que sempre foram e seguirão sendo usadas contra a esquerda. Se o bolsonarismo não tem força política para impor suas demandas, azar deles. Se o bolsonarismo está sendo (até que enfim) levemente perseguido e punido por seus crimes, é porque nós, os trabalhadores, conseguimos ao longo de séculos de luta modelar as instituições democráticas (burguesas) de um modo e com uma força capaz de fazer frente a ataques fascistas à democracia e a outros direitos e conquistas históricas.
É um tiro no pé querer defender e garantir um tratamento democrático e constitucional a uma força social que atua para derrubar conquistas históricas básicas da classe trabalhadora, conquistas que consideramos pequenas e que lutamos para ampliar e que agora correm o risco de serem retomadas impondo uma sociabilidade autoritária e retrógrada. Política não se faz com boas intenções e demonstrações de coerência e de neutralidade. Se o alvo das medidas de exceção é essa força social fascista, que representa uma regressão histórica, nós, de esquerda, aplaudimos e apoiamos as medidas, que servem para garantir nossa própria condição de vida e de organização para a luta social contra o capitalismo. Se as mesmíssimas medidas se voltam contra nós, nos organizamos e impedimos politicamente sua atuação. E quem nos cobrar coerência não entendeu o que é politica. Não é, de modo algum, defendendo o respeito dos direitos dos bolsonaristas que se vai garantir o respeito aos direitos dos esquerdistas. Crer nisso é crer na neutralidade da justiça.
Pablo,
Em nenhum momento escrevi que a Justiça é neutra, aliás pelo contrário, já que o Direito é um dos aspectos, para mim, das lutas sociais. Quanto à defesa da democracia, nosso papel é defender uma democracia que seja a realização da soberania popular em termos concretos, o que também pressupõe a luta social, pelo menos para quem concebe a soberania popular como autonomia da classe trabalhadora. Parece-me ilógico alienar no Estado a defesa de uma democracia onde o seu principal agente está ausente, e onde outros agentes – estatais – reiteram e prolongam no tempo um modus operandi caracterizado pela supressão da agência popular, ao mesmo tempo em que trabalham pela união de forças políticas conservadoras – incluindo as provenientes do bolsonarismo – na defesa de uma democracia reduzida às “instituições”. Por fim, você escreve que “se as mesmíssimas medidas se voltam contra nós, nos organizamos e impedimos politicamente sua atuação”. É como se – para reverter um processo social que vem contando, infelizmente, com ampla legitimação social – bastasse o querer, a simples vontade.
E assim Pablo lê o artigo de Fagner da mesma forma que Fagner leu o meu: pouquíssimos cuidados ao analisar certo perspectivismo expositivo, certo estilo de expor a posição do outro para depois rebatê-la. “Do ponto de vista de”… é o que se lê muito, tanto no meu artigo sobre os canários quanto neste de Fagner. Ou se tem atenção a isso, ou erra-se de cabo a rabo, como erraram Fagner e Pablo diversas vezes.
Fagner errou ao atribuir a mim o formalismo que atríbuí eu mesmo, o tempo inteiro, aos canarinhos do belchior. A maior parte do artigo foi dedicada a descrever este ponto de vista e criticá-lo usando os próprios argumentos dos formalistas para evidenciar o curto-circuito. Escrevi, quase sempre, que “do ponto de vista dos formalistas”, “do ponto de vista dos canários-de-belchior”, “do ponto de vista de”… e Fagner atribuiu a mim o que eu havia dito, muito explicitamente, ser o ponto de vista de outros que não eu. O núcleo da minha argumentação, do que é meu ponto de vista no debate, está concentrado nos itens 6 e 7, embora se possa ouvir aqui e ali algum trinado no mesmo sentido. Aliás, para defender o próprio ponto de vista Fagner tem se mostrado neste artigo muito mais legalista, muito mais formalista e muito menos atento às realidade práticas do Direito do que supus no meu artiguinho ornitológico.
No mesmo erro cai Pablo ao atribuir a Fagner a afirmação da existência de certo “direito subjetivo à autopreservação do Estado”, quando estamos, eu e Fagner, dizendo que este é o ponto de vista dos agentes do Estado, que se arrogam, sim, o “direito” de defender-se, e às instituições por onde atuam, contra qualquer ameaça, venha ela da “esquerda” ou da “direita”. Fagner foi tão explícito quanto eu, ao dizer que só “do ponto de vista” desses agentes do Estado se pode conceber este “direito subjetivo”. Que agentes do Estado se achem no direito de defender-se contra o que consideram ameaças, é fato tão evidente que soa estranho, no mínimo, argumentar contra a existência deste próprio fato. É isso legítimo? É desejável? Isto sim é ponto para debate, não esse fato tão óbvio. Como se sabe, nem eu nem Fagner defendemos a legitimidade desse “direito subjetivo à autopreservação do Estado”. Quem duvida, basta ler o que nós dois escrevemos.
Ou bem temos cuidado ao reconstruir e apresentar o argumento do outro num debate, ou debatemos com o vento, não com nossos reais interlocutores, tampouco com os fatos e problemas reais que apontam. Em breve, quando a exploração nossa de cada dia permitir, apresentarei alguns desenvolvimentos em torno dos temas deste debate.