Por Igor Gonçalves Caixeta
Uma ameaça global e permanente: a instalação de uma ditadura
Em 2018, uma insurreição da extrema direita, conclamada, desde 2014, por um número crescente de brasileiros, não se fez necessária. Os representantes do fascismo no pleito daquele ano, o Capitão Jair Bolsonaro e o vice General Mourão, venceram o segundo turno das eleições presidenciais. Quatro anos depois, um espiral de violência política, o aprofundamento da tutela militar e da intimidação miliciana sobre Estado e sociedade, a instalação de uma ditadura reacionária cimentada em massas, ou novas tentativas de algo do tipo, permanecem no horizonte de parte da direita. Frente à derrota que sofreu em 2022, a tese de que a esquerda, o TSE e o STF fraudaram as eleições, tornou-se, uma vez mais, o principal recurso mobilizador dos autoritários de direita brasileiros. Ações truculentas para se manter no poder – ou, supostamente, para impedir que fraudes se consolidem – são a conclusão lógica desta premissa.
Levantes como o que se anunciou ao longo de anos e se concretizou no início de 2023 não são novidade, nem aqui nem no resto do mundo. No Brasil do século XX, múltiplos golpes de Estado e tentativas de golpe – em 1937, 1938, 1964 – contaram com envolvimento da extrema direita. No século XXI, embalados por alegações de fraude eleitoral, o golpismo e a violência reacionária impuseram-se à política não só do Brasil, mas de diferentes países onde movimentos de cunho fascista se popularizaram.
Na Ucrânia, a campanha pela deposição do governo de Viktor Yanukovych, alcançada através de uma insurreição violenta liderada por grupos paramilitares em 2014, foi iniciada pela tentativa de deslegitimação da vitória de seu partido dois anos antes, após eleições parlamentares. Entre os manifestantes que alegavam fraude eleitoral na cidade de Kiev, em 2012, estavam figuras da extrema direita ucraniana como Oleg Tyagnybok, antissemita que lidera o partido Svoboda (Liberdade). Tyagnybok destacou-se como uma das maiores lideranças que atuaram pelo fim prematuro da presidência de Yanukovych, e o Svoboda foi a principal força política por trás da insurgência nacionalista entre 2013 e 2014. A expansão, radicalização e institucionalização das milícias fascistas ucranianas foi acompanhada pela guerra – primeiro uma guerra civil, ao leste, e depois uma guerra em todo o país, contra a Rússia.
Em anos recentes, processos disruptivos estiveram ainda mais atrelados a alegações de fraudes por parte de direitistas incapazes de engolir o fracasso eleitoral. Em 2019, após a reeleição de Evo Morales, a Bolívia viveu uma onda de violência provocada por policiais, membros do exército e milícias de extrema direita, que levou à substituição do então presidente pela racista não-eleita Jeanine Añez. O golpe de Estado, de caráter abertamente anti-indígena e fundamentalista cristão, foi legitimado internacionalmente pela Organização de Estados Americanos (OEA), que validou as mentiras da oposição boliviana acerca de fraudes nas eleições.
Outro apoiador do golpe na Bolívia, o ex-presidente norte-americano Donald Trump, também tentou algo do tipo em seu país. Depois de meses negando o resultado das eleições presidenciais de 2020, que dizia terem sido fraudadas, Trump convocou seus apoiadores a “marchar sobre o Capitólio”, durante a cerimônia de certificação da vitória de seu opositor, Joe Biden, que ocorria no centro do legislativo dos EUA. O prédio foi invadido, a cerimônia interrompida, mas os manifestantes de extrema direita não conseguiram alcançar os políticos que ali estavam, nem reverter a derrota de seu líder.
Extremistas de direita ucranianos, bolivianos, estadunidenses, não estão tão distantes de seus homólogos do Brasil. Há desde brasileiros que incorporam símbolos, discursos e reproduzem táticas dos radicais internacionais, até os que cooperam diretamente com eles. Não era fortuita, por exemplo, a presença da bandeira do Pravyi Sektor (Setor Direito) em protestos pró-Bolsonaro durante seu governo. A importação, em 2020, da bandeira do grupo neonazista da Ucrânia (responsável, em boa medida, pela violência no país leste-europeu em 2014), é um indicativo do desejo de alguns de “ucranizar” o Brasil, expressão empregada, na mesma época, por apoiadores e ex-apoiadores de Bolsonaro, como Sara Giromini e Daniel Silveira, então deputado federal pelo PSL do Rio de Janeiro.
Como a Ucrânia, os EUA também são um modelo para a extrema direita brasileira. Allan dos Santos, investigado pelo STF por atos anti-democráticos (junto a Giromini, Silveira, e outros radicais de direita), transmitiu para o canal Terça Livre, direto de Washington, a manifestação que culminou na invasão do Capitólio. Uma reportagem da Agência Pública demonstrou como parte do público do canal, que acompanhava e comentava a transmissão ao vivo no YouTube, recebia os acontecimentos nos EUA: “Se povo brasileiro tivesse 30% da vontade dos Americanos”, “acorda Brasil…”, “Vamos invadir o STF. Quem topa?” A tentativa de golpe também foi elogiada por deputadas e deputados federais ligados a Bolsonaro, e a tese da fraude nas eleições dos EUA, meses após a posse de Biden, continuou sendo sustentada pelo então presidente brasileiro.
Eduardo Bolsonaro, como o pai, não perde oportunidades de estimular o golpismo. Em 5 de janeiro de 2021, um dia antes da insurreição na capital norte-americana, o deputado era o único estrangeiro presente no encontro de conspiradores que reuniu, numa residência privada de Trump, homens próximos ao ex-presidente, como seu ex-estrategista Steve Bannon e o empresário Mike Lindell. Bannon, Lindell e Eduardo se encontraram novamente nos EUA em agosto do mesmo ano, num evento antifraude onde o filho de Bolsonaro propagou boatos sobre supostas fraudes em seu país e na Bolívia. Na nação fronteiriça ao Brasil, em meio ao que há de pior em matéria de golpismo, Eduardo Bolsonaro também encontrou amigos. Não só ele: diversos membros e apoiadores do governo Bolsonaro mantinham relações com a extrema direita boliviana, e há fortes indícios da participação do governo brasileiro no golpe da Bolívia em 2019.
“Nós devemos aprender com o erro dos outros. Alguém conhece a senhora Jeanine Añez?” Assim Jair Bolsonaro iniciou seu discurso para senadores e deputados federais, no Palácio do Planalto, em evento de abril de 2022. O encontro, batizado de “ato cívico pela liberdade de expressão”, foi convocado depois que Bolsonaro assinou um indulto a Daniel Silveira, condenado a prisão por ameaças ao STF. Entre ataques ao Supremo e ao TSE e sugestões de participação das Forças Armadas nas eleições, sobretudo durante a apuração dos votos, o presidente brasileiro recordou, mais de uma vez, da ex-presidente golpista da Bolívia. Não especificou como Añez, “uma pessoa meiga, educada”, servia de exemplo para ele e seus apoiadores. Seu discurso, porém, leva a entender que a boliviana teria errado ao não prevenir o exílio de seu adversário, Evo Morales, que, segundo Bolsonaro, trabalhou, da Argentina, para que “a sua turma” voltasse ao poder através de novas eleições. “E a senhora Jeanine foi pra casa, ela perdeu a eleição. Alguém sabe onde está a senhora Jeanine Añez hoje em dia? Tá presa. Ela tentou o suicídio mais de uma vez. Alguém sabe qual a acusação? A acusação é: atos antidemocráticos!”. Aceitar a derrota, acatar as instituições, permanecer no país, e mesmo não ter escolhido o martírio, também parecem ser compreendidos pelo presidente como erros de Añez. “Nada temeis, nem mesmo a morte, a não ser a morte eterna. Tenham a certeza: eu jamais serei uma Jeanine. Jamais!”, prometeu Bolsonaro.
Mas Jeanine e aqueles que a colocaram no poder, optaram, sim, pelo martírio – de bolivianas e bolivianos que tentavam defender sua democracia. Como as insurreições ucraniana e estadunidense, o golpe na Bolívia foi letal. Dezenas de pessoas foram mortas e outras centenas ficaram feridas em protestos que sucederam a breve ascensão da extrema direita ao poder no país sul-americano em 2019. Democratas no Brasil não devem esperar tamanha letalidade política se instalar em nosso país. Há anos, o golpismo vem sendo discutido, trabalhado, implementado pela direita brasileira. Sua face mais infame, que celebra a morte e a violência, sempre esteve presente. Antes, dividia espaço com formas mais sutis de subjugar a democracia. Que não haja dúvida, contudo, do que se projeta sobre o futuro do Brasil, caso o movimento antifraude e outras possibilidades fascistas se perpetuem.
Iniciada depois que um dos integrantes e agora principal líder do movimento antifraude ocupou o governo federal, a quarta fase do movimento parece ter um objetivo central: convencer cidadãos a matar, a deixar que se mate, e, se preciso, a morrer, em nome de um “mito”. Ou, pelo menos, a se impor enquanto um grupo político que poderia fazê-lo. Por ora, não há apoio internacional suficiente para a instalação de uma ditadura no Brasil. A contenção institucional de alguns golpistas caminha, e acelerou depois da intentona civil-militar da praça dos três poderes. Mas ainda que um golpe reacionário tenha fracassado, sua ameaça não desaparecerá facilmente.
De Miami, Bolsonaro segue questionando sua derrota em 2022, e no Brasil, generais dizem ser legítimos os questionamentos dos resultados das eleições, e fazem pública sua insatisfação em relação ao novo governo. Operadores e facilitadores do golpismo ao longo de anos seguem em cena, e muitos novos chegarão. A tese da fraude eleitoral, e ainda mais grave, o fascismo que tal tese ajudou a edificar, tornaram-se parte da cultura política brasileira. Foram naturalizados durante quase uma década por oligarquias que acreditavam poder conter tais forças, domá-las, utilizá-las para atacar projetos minimamente voltados aos historicamente excluídos. Bolsonaro e o chamado Partido Militar que lhe deu sustentação não foram os únicos, em anos recentes, a fazer brasileiros reféns de caprichos autoritários e empurrar-nos em direção à tragédia. Opositores do fascismo devem estar atentos e mobilizados, para que a história não se repita, como “fraude”, no Brasil.
Os artigos que compõem essa série são excelentes, porém, quem ler essa quarta e última parte, vai ter uma ideia equivocada do que aconteceu na Ucrânia. Ficou parecendo que a violência partiu de manifestantes de extrema direita que estavam organizados para derrubar um governo eleito, quando as manifestações contra o governo eram muito maiores que a extrema direita, participando dela militantes e grupos de esquerda também. E a violência dos manifestantes (de fato protagonizada aí sim por grupos de extrema direita que estavam melhor organizados para isso) foi uma reação à violência estatal. Pelo que está escrito fica parecendo também que a invasão da Rússia na Ucrânia tem algum relação com grupos de extrema direita na Ucrânia.
Nem mesmo a narrativa putinista padrão corrobora com o que foi dito neste artigo, só se a OTAN for de extrema-direita fascista. Fica a impressão – lembrou o Leo V no comentário acima – de que a Ucrânia tenha invadido a Rússia, mas foi o contrário. Salvo esse lapso do autor na última parte, parabenizo o autor pela série.
Infelizmente em relação à Ucrânia o autor não teve o mesmo cuidado de consulta de materiais e fontes que teve em relação ao movimento brasileiro.
Um bom repertório sobre as organizações de direita na Ucrânia está presente nesta série: https://passapalavra.info/2022/04/142974/
Agradeço a leitura e os comentários de todos, e a oportunidade de publicar aqui.
De fato, não me aprofundei, no texto, sobre a Ucrânia – há somente um parágrafo sobre o país, que, na minha opinião, de modo algum permite conclusões como “a Ucrânia invadiu a Rússia”. É evidente que o governo russo é culpado pela guerra, o que não muda o fato de que grupos de extrema direita ucranianos se beneficiam desse contexto. Sobre seu papel ao longo do Maidan, indico o estudo de 2018 feito por Volodymyr Ishchenko, que consta no corpo do texto. Recomendo, também, uma entrevista de Ishchenko do ano passado, quando ele comentou, dentre outras coisas, sobre a instrumentalização do caos feita por esses grupos após a invasão russa:
“Em caso de guerra prolongada, haveria uma destruição progressiva do Estado e das instituições militares ucranianas, o que daria mais oportunidades para que grupos radicais tomassem as rédeas. Quanto mais mortos e feridos entre a população, e quanto mais destruição, causados pela invasão russa, maior será também o ódio. E os movimentos que centram sua retórica no ódio e capitalizam o ódio com mais facilidade, certamente crescerão nesse cenário. Aqueles que falam de fazer da Ucrânia um novo Afeganistão para as tropas russas [em referência à derrota soviética de 1989 e americana de 2021], aqueles que dizem que é preciso preparar-se para resistir a uma guerra de longa duração, estão abrindo a porta pela qual as forças de extrema-direita entrarão para assumir o controlo. Vai acontecer exatamente como aconteceu no Oriente Médio: o colapso das instituições estatais causado pela invasão estrangeira no Iraque, e o colapso institucional na Líbia e na Síria, criaram o espaço para que grupos extremistas tomassem o poder em vastas zonas desses países, com consequências funestas.” (Volodymyr Ishchenko: “Esta guerra não era inevitável”. https://esquerdaonline.com.br/2022/04/04/volodymyr-ishchenko-esta-guerra-nao-era-inevitavel/).
Meu ponto é: existe uma vertente política de atuação global cujo principal projeto é a normalização da violência extrema para fins reacionários. Esse projeto se constrói processualmente, e, nas últimas duas décadas, alegações de fraude eleitoral tornaram-se uma forma usual de colocá-lo ou mantê-lo em movimento. Trouxe o exemplo ucraniano pois, além de apontar algumas das referências e conexões transnacionais dos fascistas brasileiros, ele ilustra algo que argumentei ao longo da série para o caso do Brasil: as mais radicais agremiações e atores da direita estiveram no nascimento e no centro das crises políticas (com o tempo, transformadas em disrupções) que eclodiram recentemente em seus países. Isso não quer dizer que eles foram os únicos responsáveis por tais processos, mas julgo ser importante discutir seu papel, convenientemente ignorado por muitos. Como diz Ishchenko (na pesquisa que referenciei), em relação a membros do mais violento dentre os grupos que atuaram na Ucrânia em 2013 e 2014, “os líderes do Setor Direito nunca esconderam que exploraram conscientemente uma oportunidade política aberta pela mobilização de massas contra Yanukovych e a escalada da repressão, a fim de radicalizar o Maidan para que ele perseguisse sua agenda da “revolução nacional”.”
Enfatizo que, até onde sei, a mobilização da pauta antifraude tem uma ligação bastante marginal com o Maidan, muito diferente do que ocorreu durante a Revolução Laranja. Nos anos 2010, podemos considerá-la uma nota de rodapé da longa história da crise ucraniana. Ainda assim, acho interessante “recuperar” essa nota, já que ela nos permite enxergar o caráter processual do avanço da extrema direita e da oposição, cada vez mais violenta, ao antigo governo da Ucrânia.