Por Zuoyue

Nota do coletivo Chuang:

O artigo que traduzimos abaixo foi originalmente publicado pelo autor com o pseudônimo de Zuoyue (左玥), no Matters no início de janeiro, após uma versão resumida ter sido publicada no site de notícias taiwanês Reporter 報導者. O autor explica que é um jovem ativista de esquerda em defesa das causas dos trabalhadores na China continental que atualmente estuda no exterior após ter estado envolvido com esforços de organização local com trabalhadores migrantes por quase uma década. Optamos por traduzir este artigo porque é um dos primeiros esforços na China continental para analisar os acontecimentos do final de novembro de 2022.[1] Além disso, o mesmo constitui um bom complemento para os muitos relatos parciais já disponíveis em inglês.[2]

Até agora, o artigo causou diferentes respostas em camaradas na China. Amigos de Chuang observaram que o autor vivia há algum tempo fora do país no momento dos acontecimentos. A distância proporciona, de certa forma, um ponto de vista mais objetivo, mas também significa que as ideias refletem menos as discussões que estão acontecendo entre os participantes e observadores no local, e mais o quadro das redes liberais de esquerda online e das comunidades da diáspora chinesa que constituem um tópico tão importante no artigo. De qualquer forma, o artigo traz uma boa aproximação para a tão necessária discussão crítica dos acontecimentos.[3] Isso é particularmente importante numa altura em que as pessoas mais diretamente envolvidas continuam sob custódia policial ou evitando chamar atenção e, por conseguinte, não podem ou hesitam em oferecer qualquer reflexão sistemática.

O artigo também é útil para esclarecer a nossa própria perspectiva sobre os acontecimentos, a qual difere da do autor em vários aspectos. Por exemplo, o autor usa o termo “movimento do papel em branco” de forma intercambiável com “onda de protesto anti-lockdown” para descrever a configuração mais ampla de lutas que atingiu o pico em novembro de 2022. À primeira vista, tal escolha pode parecer estranha, dado que o artigo passa a distinguir os protestos simbólicos envolvendo pedaços de papel em branco (atribuídos ao “movimento doméstico de moradores das cidades e estudantes”) das outras duas grandes correntes (“protestos dos trabalhadores” e “protestos de solidariedade no exterior”), e até explica como essa formulação obscurece o papel desempenhado pelos trabalhadores: “quando o papel em branco é citado como o emblema de todo o movimento […] as discussões sobre o movimento em sua totalidade são orientadas apenas em torno dos protestos políticos de moradores das cidades e estudantes, ou sobre as campanhas de solidariedade realizadas em comunidades chinesas no exterior”. No final do artigo, no entanto, o uso persistente do “movimento do papel em branco” sugere uma ambiguidade mais profunda no quadro analítico do artigo em sua totalidade. Embora o argumento descreva de forma útil uma série de tensões-chave que surgiram dentro da onda de agitação e forneça tentativas de pensar sobre seus limites, também parece subestimar a profundidade dessas contradições – e, poderíamos argumentar, exagerar as influências mútuas entre os “três movimentos”. Assim, a ideia de um “movimento” singular aparece repetidamente ao lado de apelos à consciência das “pessoas comuns” como uma espécie de sujeito aspiracional a que o movimento não foi capaz de dar coesão. Da mesma forma, a importância dos “protestos dos trabalhadores” não está ligada a uma compreensão marxista do conflito de classes, mas sim a uma teoria rawlsiana da “distribuição social injusta.” Por fim, o objetivo proposto para todas essas lutas é que “superem o aparato repressivo e a consciência de hegemonia estatista” por meio de uma “politização”, sugerindo que uma política generalizada só é possível se for definida contra um Estado monstruoso e solitário — colocando um fantasma contra outro.

Em suma, o artigo parece firmemente enraizado num paradigma liberal de esquerda e, apesar de sentir os seus limites, tende a, desse modo, nivelar alguns dos antagonismos mais profundos evidentes em lutas díspares, reduzindo-os a uma falha de diferentes fracções em se ligarem adequadamente e, assim, entrarem em coesão com um movimento mais geral. A implicação parece ser que, se essas três correntes tivessem sido capazes de interagir e resolver as suas tensões, elas poderiam ter formado algum tipo de programa que representasse adequadamente a vontade coletiva do povo. A premissa do artigo exclui a possibilidade de que os interesses básicos dos manifestantes de elite em Xangai possam ter sido diametralmente opostos aos dos distúrbios proletários nas vilas urbanas. Portanto, o artigo é melhor entendido como uma análise especificamente de esquerda dos acontecimentos, vistos à distância e filtrados através de uma série de lentes específicas. Uma dessas lentes é a “nova geração de comunidades da diáspora chinesa no exterior”, que o artigo descreve como particularmente significativa, apesar do caráter de pequena escala e não disruptivo de tais protestos de solidariedade – em contraste com muitas das ações diretas e até mesmo alguns dos protestos simbólicos na China. Concordamos que os protestos no estrangeiro sinalizaram uma mudança de consciência entre uma certa fração de jovens chineses instruídos, mas parecem ter desempenhado um papel mais auxiliar em relação à confluência de conflitos sociais reais.[4]

Outra dessas lentes envolve a representação no artigo dos “protestos dos trabalhadores”, que agrega uma variedade de conflitos que não eram apenas díspares, mas às vezes até contraditórios em seus objetivos. Neste caso, não é apenas o emblema do “papel em branco” que obscurece tais lutas, mas também a caracterização de todo o descontentamento como parte de um movimento anti-lockdown mais amplo.[5] A luta na Foxconn de Zhengzhou, em particular, é destacada como “inspiradora para todo o movimento que se seguiu”. Embora os vídeos do conflito tenham certamente exercido alguma influência tanto nos protestos simbólicos quanto em algumas das ações diretas, nenhum dos relatos dos participantes que ouvimos ou lemos sequer mencionou a Foxconn quando questionados sobre sua motivação,[6] e quando perguntados sobre a Foxconn explicitamente, ninguém com quem conversamos considerou isso mais relevante do que qualquer uma das inúmeras outras lutas e desastres de alguma forma relacionados aos lockdowns no ano passado. Ao nível dos objetivos, os trabalhadores da Foxconn preocupavam-se principalmente com questões específicas de segurança no local de trabalho (em outubro) e com a questão dos pagamentos de bônus prometidos que não se concretizaram (a questão mais proeminente no motim de novembro). Em ambos os casos, a oposição dos trabalhadores às medidas pandêmicas não foi uma expressão de algum sentimento geral anti-lockdown, mas deve ser colocada no contexto de formas de gestão de fábricas de “circuito fechado”, que acarretavam riscos específicos não experimentados pela população em geral. Eli Friedman explicou o arco geral da luta: “À medida que as infecções se espalhavam dentro da fábrica, os trabalhadores temiam com razão que permanecer dentro do circuito aumentaria a sua exposição a infecção. A quarentena no local foi pessimamente gerida, e as pessoas que adoeceram relataram que lhes foram negados cuidados adequados ou mesmo alimentos suficientes para comer”.[7] O artigo também tende a invocar a imagem clássica na esquerda do trabalhador produtivo, excluindo uma compreensão comunista mais ampla das lutas proletárias. Na realidade, a maioria das ações proletárias em novembro e nos meses anteriores não envolveram de forma alguma o local de trabalho, mas sim várias formas de ação direta empreendidas por proletários (empregados, desempregados e trabalhadores autônomos) no âmbito da reprodução, assumindo o seu carácter mais conflituoso no interior das vilas urbanas. Como o autor corretamente assinala, esses protestos nas vilas urbanas vinham ocorrendo muito antes do início do movimento do “papel em branco” e persistiram depois da sua dissolução.

Ainda assim, o artigo oferece uma excelente introdução para a discussão desses acontecimentos, aos quais esperamos voltar mais pormenorizadamente nos próximos meses. Os pontos mais fortes do artigo são a narração informativa dos principais acontecimentos de novembro e os seus antecedentes, a importante distinção que faz entre as diferentes correntes dentro da onda mais ampla de agitação, a identificação das tensões que existiam entre elas e a expressão de uma mudança mais geral que começou a ocorrer dentro dos círculos específicos de moradores de cidades e estudantes na China e de jovens membros da diáspora chinesa. Portanto, serve tanto como uma análise dos acontecimentos quanto um objeto de análise por si só — uma janela para a agitação social do final de 2022 e para as discussões políticas que estão acontecendo entre uma certa corrente de participantes e apoiantes estrangeiros.

Por Que os Protestos do Papel em Branco Foram Constituídos por Três Movimentos? Compreendendo as Características e Limitações Revolucionárias da Onda de Protestos Anti-Lockdown [8]

Zuoyue

23 de dezembro de 2022

À medida que os governos locais em todos os lugares começaram, discretamente, a intimar e deter participantes, é inegável agora que a onda de Protestos do Papel em Branco instigados por três anos de severos lockdowns já alcançou um rápido fim. A onda de resistência — amplamente vista como a única onda de protestos em todo o país desde 1989 — viu a rápida formação de uma aliança espontânea entre trabalhadores, moradores das cidades e estudantes que abrangia várias regiões. Palavras de ordem politizadas atravessaram as linhas de classe para obter um certo grau de aceitação geral. Naquele momento, no seio da sociedade chinesa, essa maré crescente do movimento possuía, sem dúvida, um carácter revolucionário, ou poderíamos pelo menos dizer que expôs as questões que há muito se acumulavam no seio da sociedade e, assim, marcou uma mudança qualitativa, reformulando completamente a nossa imagem dos protestos em massa no país.

Mesmo com a suspensão dos lockdowns, de modo que as demandas das massas foram aparentemente atendidas (apesar da sociedade afundar em outra forma de “desordem” devido à decisão extrema do governo de ”deitar-se“), não há razão para acreditar que a energia política acumulada dessa onda simplesmente desapareça como nos movimentos de massas do passado. Mas como esse movimento se dissolveu num período tão curto de tempo? Para além das dificuldades habituais colocadas pela repressão governamental, como poderemos compreender e refletir sobre o carácter revolucionário e os limites da onda de protestos? Como um ativista de longa data dentro de ONGs nacionais e organizações de base [pelos direitos dos trabalhadores], tentarei aqui delimitar os três movimentos paralelos que existiram dentro da onda mais ampla de lutas, esclarecendo seus pontos de interação e tensão e oferecendo algumas reflexões práticas sobre o movimento.

Por Que a Onda de Protestos Anti-Lockdown Ocorreu?

Embora os Protestos do Papel em Branco tenham sido desencadeados pelo trágico incêndio em Urumqui, olhando para trás e para a natureza do movimento, não podemos ignorar nem a catástrofe humanitária sistemática, nem a crise político-econômica causada por três anos de “COVID zero.” Como muitos internautas comentaram, parece que a COVID zero se tornou a “Política Nacional Fundamental” da nova geração (基本国策).[9] Em todos os aspectos — desde o econômico ao quotidiano, incluindo os cuidados de saúde, a cultura e a saúde mental — as necessidades das pessoas foram constrangidas a cumprir essa missão política, sem margem para recuos ou consultas. Dado que a variante Ômicron era altamente transmissível e difícil de controlar, no primeiro semestre de 2022, mais de 400 milhões de pessoas em todo o país foram forçadas a permanecer em lockdowns permanentes, que foram especialmente proeminentes em Xangai e regiões fronteiriças como Xinjiang, Tibete e Yunnan.[10] Os vários desastres secundários e as crises econômicas, de subsistência e política causadas pelos lockdowns tornaram-se, em última análise, os elementos centrais que desencadearam os protestos.

Desastres Secundários

No dia 24 de novembro, as medidas de lockdown levaram à morte de pelo menos dez pessoas (todas uigures) em um incêndio em Urumqui, Xinjiang. Naquela noite, o noticiário transmitiu uma declaração das autoridades criticando as vítimas, dizendo que “alguns moradores mostraram pouca capacidade de proteção e resgate.” Em última análise, o evento provou ser a conflagração final que acendeu a ira das massas. Mas tais incêndios queimaram continuamente desde o lockdown de Wuhan em diante, já haviam sido vivenciados nos lockdowns em Nanquin e Yangzhou em 2021, e novamente visíveis no desrespeito pelos suicídios desesperados de residentes durante os lockdowns em Xangai no início de 2022, para não mencionar na tragédia das inúmeras pessoas que morreram por não terem acesso a cuidados médicos durante uma doença súbita. O ano de 2022 foi um ano do trauma coletivo em todo o país: Em 18 de setembro, 27 pessoas morreram quando um ônibus capotou em Guizhou; em 1º de novembro, uma criança de 3 anos em Lanzhou morreu de envenenamento por monóxido de carbono depois que os protocolos do lockdown impediram os socorristas; em 11 de novembro, depois que a Universidade de Shenzhen foi fechada por um mês, combinados pouco razoáveis levaram um zelador do campus a pular para a morte; em 18 de novembro, uma trabalhadora migrante em Guangzhou se enforcou após ter um resultado positivo em um teste de COVID-19 e ser enviada para um hospital improvisado de isolamento; e em 21 de novembro, um incêndio em uma fábrica em Anyang, Henan causou a morte de 38 pessoas (a maioria delas trabalhadoras)….[11] É quase impossível para nós registrar todas as tragédias humanitárias sofridas sob os lockdowns, pois a cada dia mais e mais emergiram em todas as partes do país – foram feridas coletivas sofridas por toda a população, das quais todos foram testemunhas. Como dizia o cartaz de um manifestante da Northwest University of Political Science and Law: “Eu estava no ônibus capotado, eu tive o serviço médico recusado, eu forcei a entrada e pulei do telhado, eu fiquei preso no fogo. E mesmo que não fosse eu, serei o próximo.”

Crises Econômicas e de Subsistência

Do ponto de vista do Estado, os últimos três anos de lockdowns parecem ter feito um bom trabalho ao reduzir a perturbação na vida econômica causada pelo coronavírus. Mas é óbvio que esse não é exatamente o caso, com 2022 sendo marcado pela proliferação de desemprego e demissões, com disputas financeiras se espalhando a tal ponto que o consumo permaneceu fraco em geral, tudo sinalizando para uma crise crescente nos meios de subsistência das pessoas. Por um lado, as principais formas de alívio financeiro oferecidas pelo governo durante a pandemia concentraram-se na concessão de cortes de impostos e subsídios do seguro social às empresas, com os trabalhadores dificilmente recebendo qualquer assistência econômica do governo, forçados a confiar apenas em si mesmos.[12] Por outro lado, a imprevisibilidade prolongada e a imprevisão dos lockdowns fizeram com que os rendimentos dos trabalhadores nos setores de serviço e indústria ficassem instáveis. Enquanto isso, o número de desempregados estava sujeito a aumentos repentinos e uma parte dos trabalhadores foi forçada a entrar na economia informal, assumindo empregos em setores como a entrega de alimentos.[13] Tanto os lockdowns compartimentalizados de longa duração como a exploração algorítmica em evolução pelo capital impediram os trabalhadores de obterem rendimentos estáveis. Embora, infelizmente, seja difícil encontrar dados precisos sobre o desemprego, duas fontes de dados públicas dão algumas pistas sobre a urgência da situação. Uma delas é o aumento súbito da taxa de desemprego entre os jovens, a outra é a taxa de recém-formados que não conseguem encontrar trabalho. Em julho de 2022, dados oficiais do governo mostraram que a taxa de desemprego entre os residentes de cidades de 16 a 24 anos era de 19,9%, enquanto a mídia relatava que, em março de 2022, apenas 23,61% dos recém-formados em todo o país haviam encontrado trabalho. Além disso, a meta inicial do governo para o crescimento do PIB, de 5,5%, não pôde ser cumprida. O crescimento nos três primeiros trimestres alcançou apenas 3% e novos surtos de coronavírus impossibilitam o crescimento [mais elevado] do PIB no quarto trimestre.[14] Para muitos trabalhadores, o desemprego ou a perda de rendimentos são o custo econômico inevitável das políticas de confinamento.

Assim, mesmo antes da eclosão dos Protestos do Papel em Branco em 26 e 27 de novembro, pelo menos durante o meio ano antes de novembro, os protestos contra o lockdown estavam continuamente eclodindo em vilas urbanas e em comunidades de trabalhadores migrantes em geral, com migrantes derrubando cercas de quarentena e colocando “demandas de subsistência” no centro de tais lutas. Isso ficou especialmente evidente em um protesto em 14 de novembro, que contou com mil trabalhadores migrantes na aldeia de Kangle, em Guangzhou, e nos protestos em larga escala na fábrica da Foxconn em Zhengzhou, nos dias 22 e 23 de novembro. A onda de protestos nas vilas urbanas também continuaria mesmo após os Protestos do Papel em Branco terem sido derrotados.

Fadiga Generalizada da Pandemia e Crescente Falta de Confiança no Governo

A crise de legitimidade da governabilidade social na China já se estava sendo gestada antes da pandemia. Nos últimos anos, a fragilidade do desenvolvimento econômico e a incerteza da mobilidade ascendente já tinham começado a confrontar os trabalhadores (tanto industriais [blue collar] como de escritórios [white collar]) com as pressões urgentes da sobrevivência. Discursos populares emergentes – que vão desde a “escravidão corporativa” (社畜) a “involução” (内卷), de “ficar deitado” (躺平) a “conhecimentos sobre fuga/fugologia” (润学), ou mesmo falar da “geração final” (最后一代) – todos representam a resistência passiva de uma nova geração de jovens confrontados com a extrema desigualdade de distribuição no capitalismo, com o mais novo vocabulário cultural de cada ano simplesmente representando o progresso constante do desespero. Nenhuma dessas crises sociais multifacetadas teve uma resposta oficial. Em vez disso, elas foram uniformemente rejeitadas ou estigmatizados como “influência de potências estrangeiras” e, assim, suprimidas pela recusa ao diálogo e pela demonização, tornando o caráter ditatorial da autoridade pública ainda mais claro para a população. Isso ficou evidente em várias ocorrências ao longo dos últimos anos: a morte na Escola Secundária Chengdu No. 49, o caso #Metoo envolvendo Xianzi, a mulher acorrentada do Condado de Feng e subsequente prisão do blogueiro [Wuyi] que estava investigando o caso, e o ataque ao restaurante em Tangshan .

Além disso, o despertar político das pessoas comuns que começou com a abolição dos limites de mandato da Constituição em 2018 foi verdadeiramente inflamado pelo Incidente da Ponte Sitong na véspera do XX Congresso do Partido. Embora a evidência do protesto corajoso e solitário tenha sido apagada do ciberespaço em um piscar de olhos e o indivíduo que desfraldou a bandeira tenha desaparecido logo depois, os gritos generalizados de sua palavra de ordem “Eu não quero um teste de ácido nucleico, eu quero liberdade” [15] nos Protestos do Papel em Branco deixaram claro que essa consciência política opositora, apesar de tudo, se enraizara discretamente na mente das pessoas. O novo quadro de revolta política popular já tinha sido desenhado antes da pandemia, com todos os danos secundários causados pela forma desumana do lockdown e pela consequente crise dos meios de subsistência econômicos apenas intensificando a falta de confiança do público em todo o sistema. Ainda mais, não só o afrouxamento esperado das restrições pandêmicas na sequência do XX Congresso do Partido não aconteceu, mas as restrições foram gradualmente reforçadas em todo o país, frustrando as esperanças do povo. As novas ”20 medidas“ lançadas pelo Conselho de Estado incorporaram a tensão entre o bloqueio e a abertura, dando origem a numerosos conflitos entre as políticas locais e centrais que prenunciaram a onda subsequente de protestos anti-lockdown.

Por Que “Três Movimentos”?

O incêndio ocorrido no dia 24 de novembro em Urumqui provocou protestos locais em grande escala contra o lockdown da cidade no dia seguinte. Logo, a tristeza e a indignação com o evento começaram a se espalhar amplamente online e, na tarde de 26 de novembro, as vigílias em que os manifestantes seguravam folhas de papel em branco espalharam-se para um campus universitário em Nanquim e, à noite, para a rua Urumqi, em Xangai, desencadeando a maré de Protestos do Papel em Branco que logo se espalharam por todo o país e até mesmo para o povo chinês em todo o mundo. Durante um breve período no fim de semana, estudantes de mais de 200 universidades localizadas em todo o país protestaram nos campi, cidadãos saíram às ruas em mais de uma dúzia de grandes cidades e, logo depois, as comunidades chinesas espalhadas por centenas de cidades em todo o mundo realizaram milhares de protestos em solidariedade, ecoando os apelos dos manifestantes no país.

A onda de protestos que tomou o papel em branco como seu emblema logo passou de meramente “resistindo aos lockdowns” para avançar demandas políticas ainda mais extremas. Ao fazê-lo, parecia ser um movimento político coerente e nacional que abrangia diferentes regiões e estratos sociais. No entanto, em essência, ela era, na verdade, uma mistura de três movimentos paralelos: primeiro, as lutas da classe trabalhadora; segundo, as lutas dos moradores de cidades, estudantes e profissionais urbanos; e terceiro, campanhas envolvendo a nova geração nas comunidades da diáspora chinesa no exterior. No entanto, ao desagregar esses três movimentos, a minha intenção não é sublinhar a sua independência, mas precisamente sublinhar as formas como se misturaram mutuamente. Do mesmo modo, a tensão da sua coexistência paralela pode ajudar-nos a compreender tanto a complexidade como os limites da recente onda de protestos.

Quando o Papel em Branco é citado como o emblema de todo o movimento (tanto na China como no estrangeiro), as discussões sobre o movimento na sua totalidade tornam-se exclusivamente orientadas em torno dos protestos políticos de moradores das cidades e estudantes, ou para as campanhas de solidariedade realizadas nas comunidades chinesas no exterior. No entanto, essa narrativa ignora inteiramente as lutas que acontecem entre os trabalhadores migrantes e nas vilas urbanas. Por que o papel da resistência da classe trabalhadora deve ser levado a sério? Não podemos ignorar que a experiência da luta dos trabalhadores na Foxconn inspirou todo o movimento que se seguiu. No final de outubro, a perda de controle sobre um surto de coronavírus nas instalações da Foxconn em Zhengzhou levou os trabalhadores a escalar as paredes da fábrica em uma “grande fuga”. Então, no final de novembro, o fracasso da empresa em pagar os bônus prometidos para novas contratações desencadeou confrontos violentos com a administração da fábrica e a polícia de choque envolvendo dezenas de milhares de trabalhadores. Em contraste com a falta de visibilidade de longa data sofrida pelas ações dos trabalhadores em defesa dos direitos,[16] inúmeros vídeos e imagens retratando esses dois conflitos foram espalhados por plataformas como Douyin e Kuaishou a uma velocidade fenomenal, com a imagem dos trabalhadores resistindo a bloqueios violentos e a exploração capitalista ressoando em quase todos — corrupção, confusão e tratamento desumano eram todos experiências coletivas.

Até certo ponto, a ação direta dos trabalhadores da Foxconn constituiu um recurso importante para a subsequente onda de Protestos do Papel em Branco—as palavras de ordem já não eram apenas ouvidas online, mas ganhavam voz nas ruas. Na verdade, os protestos dos trabalhadores contra os lockdowns eram algo como um fio conectivo que percorria todo o ano de 2022. De acordo com estatísticas incompletas recolhidas pelo “China Dissent Monitor,”[17] no período entre junho e o advento do Movimento do Papel em Branco, já haviam ocorrido cerca de 80 protestos anti-lockdown, a maioria dos quais ocorreu em vilas urbanas ou outros distritos da classe trabalhadora. Os trabalhadores têm sido o grupo mais suscetível sob a pandemia, com a ameaça imaterial do vírus e a crise material em seus meios de subsistência obrigando-os a protestar. É também por isso que muitos lugares viram a onda de manifestações de trabalhadores continuar, mesmo após o Movimento do Papel em Branco ter sido repelido.[18]

O incêndio em Xinjiang foi claramente a gota d’água, empurrando a raiva das pessoas para além do limite. A indignação torna-se então visível publicamente nas vigílias realizadas nas ruas das grandes cidades e nos campi universitários por moradores das cidades, profissionais urbanos e estudantes. Na verdade, a onda de resistência simultânea e espontânea oferece uma representação sistemática dos problemas políticos do lockdown na sua totalidade: o trauma coletivo da pandemia e os seus desastres secundários, o dilema político-econômico estrutural colocado pela crise nos meios de subsistência, a ruptura aberta pelos protestos anti-lockdown dos trabalhadores, as expectativas frustradas que se seguiram ao XX Congresso do Partido e a tensão que se seguiu, e o discurso politizado fornecido pelo Protesto da Ponte Sitong. Em conjunto, esses tornaram-se os recursos cruciais mobilizados pelos participantes na onda de protestos que depois varreu as cidades e os campi universitários. Foi precisamente o contexto no qual o movimento de solidariedade entre a nova geração da diáspora chinesa entrou numa outra fase. Os estudantes compõem a maioria dessas novas comunidades chinesas no exterior, e nos últimos anos elas passaram por um processo de rápida radicalização. A revogação dos limites de mandato em 2018 instigou uma campanha de cartazes de protesto ”#NotMyPresident“ em pequena escala nos campi universitários no exterior. Em seguida, o Protesto da Ponte Sitong na véspera do XX Congresso do Partido no início desse ano gerou outra onda de cartazes de protesto nos campi no exterior. A escala dessa onda era enorme, com as palavras de ordem vistas na Ponte Sitong aparentemente visíveis em todas as grandes universidades do mundo. A eclosão do Movimento do Papel em Branco nos principais centros urbanos da China desencadeou uma mobilização igualmente em larga escala dentro dessas comunidades chinesas no exterior, que espontaneamente organizaram ou participaram de protestos locais e presenciais. Esse tipo de campanha de solidariedade no exterior não havia sido visto nas três décadas posteriores a 1989, pelo menos não nessa escala.

No interior da onda de protestos, as campanhas de solidariedade no exterior e os Protestos do Papel em Branco no país fizeram eco um ao outro, mas as diferentes composições e agendas desses dois movimentos, e as suas tensões em relação às exigências políticas, determinaram inevitavelmente os diferentes papéis que cada um desempenharia no interior da onda de oposição mais ampla na China. É por isso que distinguimos a relação entre os dois aqui. Da mesma forma, poderíamos subdividir ainda mais os protestos internos anti-lockdown naqueles em que os trabalhadores compunham o corpo principal e aqueles em que os moradores das cidades ou estudantes compunham o corpo principal. Não se trata, de modo algum, de compartimentar a relação entre os dois, mas sim de recordar aos participantes os ativos essenciais e as fontes de inspiração que as mobilizações de longa data entre os trabalhadores proporcionaram às lutas populares na China – a desigualdade social enraizada no sistema econômico sempre foi a força motriz de qualquer movimento político – e, ao mesmo tempo, de sublinhar o caráter resiliente das lutas dos trabalhadores e a necessidade de solidariedade para com elas (como explorado a seguir). Além disso, dentro da onda de protestos, as duas correntes de luta não foram completamente separadas no tempo ou no espaço. Um exemplo importante deste fato foi como, ao longo da tarde e da noite de 27 de novembro, dezenas de milhares de indivíduos em Wuhan, incluindo trabalhadores migrantes e residentes das cidades, reuniram-se para derrubar as cercas instaladas ao longo das ruas.

O Caráter Revolucionário da Onda de Protestos Anti-Lockdown

Agora que a maior onda de protestos anti-lockdown morreu após o súbita reversão da política do governo “ao estilo tangping” , as autoridades seguiram o seu padrão habitual e iniciaram um acerto de contas pós-outono com os participantes das manifestações. Considerando que desapareceu num instante ao atingir o seu pico sem alterar de alguma forma a estrutura política, não penso que seja necessário elevar este movimento a um estatuto “revolucionário”, embora tais narrativas o tenham ajudado a difundir-se internacionalmente. Mas temos de discutir mais profundamente o seu caráter revolucionário ou talvez progressista.

Muita tinta foi gasta para descrever a tradição radical de resistência da classe trabalhadora da China, que vem de longa data. Da onda de defesa dos direitos coletivos [19] entre os milhões de trabalhadores do setor estatal demitidos na década de 1990, às greves selvagens entre os “camponeses-trabalhadores” migrantes que lutam pelo estabelecimento e aplicação de direitos legais no âmbito da economia de mercado desde o início dos anos 2000 (especialmente por volta do ano 2010), tornou-se comum que os trabalhadores fechassem os portões das fábricas, marchassem pelas ruas, bloqueassem estradas e assim por diante. O estatuto marginalizado dos trabalhadores, a percepção particularmente sensível do Estado e a sua repressão enérgica ao movimento operário [20] esconderam tal resistência da vista da população em geral por muitos anos. Desta vez, no entanto, a rebelião dos trabalhadores na Foxconn ressoou em toda a sociedade chinesa, fornecendo matéria-prima para os Protestos do Papel em Branco e demonstrando novamente que os futuros movimentos de oposição na China devem considerar o movimento operário como um componente central.

Não é que os movimentos formados principalmente por moradores das cidades e estudantes não existam desde 1989, mas a politização expressa coletivamente nos protestos anti-lockdown revelou um horizonte inteiramente novo. A maioria das lutas urbanas consistiu anteriormente em ações coletivas focadas em questões específicas, como as manifestações ambientais contra as fábricas de para-xileno em Xiamen e Maoming em 2007 e 2014, a defesa coletiva dos direitos dos pais, pedindo “educação justa” em Shenzhen e Kunshan em 2016, os protestos de preservação cultural para ”alvar o Cantonês“ em Guangzhou em 2010, ou as pequenas lutas sem maiores consequências de indivíduos dispersos do Movimento Democrático e dos meios de defesa dos direitos. Nos Protestos do Papel em Branco, as demandas diretas da maioria dos participantes ainda se concentravam em se opor às medidas estritas de lockdown, mas palavras de ordem políticas vindas das multidões — “abaixo Xi Jinping”, “liberdade de imprensa”, “liberdade de expressão” — ressoaram em outros participantes e provocaram vivas e aplausos.

Os protestos da Ponte de Sitong podem ter sido a centelha que deu origem a essas palavras de ordem políticas, mas não foi de modo algum a origem dessa mudança qualitativa. Há vários anos (antes da pandemia), já podíamos ver no discurso online que a classe média ou os grupos instruídos estavam cada vez mais desesperados em relação às perspectivas de mobilidade ascendente e acumulação de riqueza, visíveis em discursos que vão da “escravidão corporativa” à “ficar deitado” e ao “conhecimentos sobre fuga/fugologia”, revelando uma crescente perda de fé no sistema político-econômico – a tal ponto que o Estado considerou necessário empregar o seu aparato de propaganda na denúncia de tal “lixo anticapitalista”. No passado, porém, essas frustrações nunca tinham se transformado em atos de resistência. Os Protestos do Papel em Branco nas cidades confirmaram, assim, que, pelo menos até certo ponto, houve uma mudança qualitativa de natureza revolucionária. No momento, não podemos necessariamente prever como os futuros movimentos de massa na China se organizarão ou se desenvolverão, mas pelo menos esses movimentos deram início a uma imaginação recém-politizada, derrubando completamente os modelos de mobilização das lutas urbanas anteriores centradas na defesa de direitos e demandas isoladas e despolitizadas.

As ações de solidariedade em centenas de cidades e universidades em todo o mundo romperam o modelo tradicional de protesto do Movimento Democrático pós-89, de campanhas partidárias e de lobby centradas em líderes políticos, formando um novo tipo de política de oposição com estudantes do continente vivendo no exterior em seu núcleo. No passado, o tradicional Movimento Democrático da China no exterior foi alvo de severas denúncias. Esse tipo de ação política — dominada por líderes de movimentos democráticos no exterior e enfatizando posições diretamente em oposição, todas fortemente infundidas com tendências patriarcais e conservadoras — é completamente incapaz de unir e organizar a ampla massa da diáspora chinesa, para não falar de conexão com questões sociais domésticas e coletividades entre classes – chegando mesmo a levar a geração mais jovem a se afastar intencionalmente delas. Mas quando se tratava do apoio no exterior aos Protestos do Papel em Branco, os principais organizadores que definiam a agenda e mobilizavam os participantes consistiam principalmente em jovens membros da diáspora que procuravam apoiar o movimento na China e participar ativamente no diálogo com várias organizações da sociedade civil no estrangeiro, a fim de aumentar o impacto e o carácter progressivo dos protestos de solidariedade.

Além disso, em muitos lugares (como Nova York, Londres, Toronto e Vancouver), os protestos de solidariedade não só mobilizaram várias palavras de ordem e sinalizações que abordavam diversas questões relativas às mulheres, minorias sexuais, trabalhadores, Xinjiang, etc., mas a forma como os eventos foram organizados também reforçou o respeito por diversos grupos e questões— especialmente evidente na atenção dada aos campos de concentração em Xinjiang. Depois que o movimento eclodiu em várias cidades, estudantes chineses no estrangeiro apresentaram quatro demandas relativamente moderadas com base nos protestos domésticos, em uma tentativa de dar foco ao movimento:

  • Permitir demonstrações abertas de luto;
  • Fim da política COVID zero;
  • Liberdade para os defensores de direitos;
  • Proteção aos direitos civis.

Essas reivindicações moderadas procuraram alargar o espaço em que os manifestantes na China podiam participar com segurança na luta, para que não tivessem um caráter fortemente politizado, demonstrando o fato de os protestos de solidariedade no estrangeiro estarem fundamentalmente orientados para o movimento interno. Mas, à medida que as discussões entre os grupos chineses no exterior aumentavam o nível de conhecimento dos participantes a respeito da questão de Xinjiang, a situação e as vozes dos uigures — como os mais afetados pelo incêndio em Urumqui, o próprio ponto de partida do movimento — começaram a ser destacadas nos comícios, de modo que os grupos de manifestantes no exterior acrescentaram uma quinta exigência à lista: “acabar com a perseguição racial” ou “fechar os campos de concentração em Xinjiang.”

Embora, por enquanto, essa série de novas práticas progressistas seja possivelmente incapaz de representar a totalidade do movimento de solidariedade no exterior, a mobilização progressiva e as propostas ligadas a questões dentro da China estão claramente dando forma a uma nova política de oposição em meio a diáspora.

As Limitações da Onda de Protestos Anti-Lockdown

Voltando às nossas questões fundamentais: como devemos compreender e responder às limitações da onda de protestos anti-lockdown e como devemos considerar a sua rápida dissolução? É também por isso que precisamos entendê-la como dividida em três movimentos. Mesmo que tenha começado como um movimento inter-regional entre diferentes classes, com exigências comuns em oposição aos lockdowns, após a erupção, o seu desenvolvimento e mobilização subsequentes dividiram-se em três modalidades totalmente diferentes, e essa foi precisamente a fonte da sua situação.

No decurso do seu desenvolvimento subsequente, o movimento de moradores urbanos e estudantes sediado em praças e universidades basicamente parou de forjar laços com as revoltas nos bairros da classe trabalhadora. Não se trata de negar o valor da politização ou radicalização do primeiro, mas de realçar como essa separação demonstrou a total falta de uma infraestrutura eficaz para ultrapassar as fronteiras entre grupos e estratos sociais no seio dos movimentos populares da China contemporânea no seu conjunto.

A onda de protestos de fato mostrou uma faceta revolucionária das novas revoltas populares da China, mas não conseguiu fornecer uma solução substancial para a fragmentação e o isolamento de longa data da sociedade civil como um todo. Desde 2013, a sociedade civil e as ONGs têm sofrido perdas cada vez mais pesadas, com a maioria das suas redes de contatos agora desintegradas, enquanto todo o aparato repressivo tem sido continuamente melhorado e reforçado. Mesmo que a atual crise social continue e se agrave, não há infraestruturas para o diálogo interativo nem para a mobilização política entre grupos. Em lutas locais mutuamente independentes, os grupos ainda podem conseguir absorver recursos de outros movimentos, mas sem diálogo entre ou mesmo dentro dos grupos, e sem mecanismos interativos de coordenação—especialmente se não houver interação entre residentes instruídos das cidades e a classe trabalhadora — não há como cada um ecoar o outro ou se envolver no diálogo político como uma força organizacional sustentável. Assim, quando as autoridades empregam aparatos repressivos maduros e altamente direcionados, o movimento em sua totalidade não pode esperar sobreviver por muito tempo.

A falta de infraestruturas políticas e de redes de contatos não é um problema que surgiu apenas recentemente nessa onda de protestos. Mas, se esperamos, no futuro, continuar a avançar no novo cenário político aberto pelo movimento, é necessário que todos os participantes enfrentem e reflitam seriamente sobre a situação das infraestruturas da sociedade civil e tentem construir redes internas de coordenação e diálogo entre os estratos sociais, ao mesmo tempo que abrem novas práticas de solidariedade no exterior – caso contrário, embora nunca deixem de acontecer protestos na China, será difícil para a sociedade aderir a movimentos capazes de transformar uma época. Nos próximos movimentos politizados, então, a atenção deve ser focada no problema da construção de infraestruturas da sociedade civil: como as redes de contatos, juntamente com um sistema de diálogo/coordenação entre estratos sociais, podem ser construídas no interior da sociedade civil doméstica que não está mais centrada em ONGs (que foram seriamente reprimidas e limitadas).

A ênfase deste artigo na importância da mobilização da classe trabalhadora não decorre de considerações desejosas e unilaterais de moralismo ou táticas, mas da consideração da história de resistência radical dos trabalhadores migrantes chineses e do sistema capitalista, cuja subjacente distribuição social injusta ela ilumina. Sem atenção às questões de subsistência e à mobilização e alianças da classe trabalhadora, será difícil para qualquer revolta chinesa superar o aparato repressivo e a consciência de hegemonia estatista que se tornou cada vez mais consolidada e, assim, formar um movimento agregado eficaz.

Além disso, o trabalho organizacional de apoio e fortalecimento da nova geração da diáspora chinesa se tornará o núcleo das futuras mobilizações de solidariedade no exterior. Embora o movimento de solidariedade no exterior tenha se libertado do modelo tradicional de mobilização e lobby do Movimento Democrático, abrindo novas direções para a exploração progressiva, a situação permanece: as novas comunidades da diáspora centradas em estudantes internacionais chineses carecem de experiência vivendo na China e possuem poucos laços com grupos de movimento situados no país. Entretanto, há claras tensões políticas entre a situação na China, por um lado, e paradigmas mobilizadores e quadros discursivos no exterior, por outro. Permanecem questões espinhosas sobre como essas comunidades no exterior devem se definir em relação às lutas na China. Essa foi uma das principais razões pelas quais o Movimento Democrático da geração de 1989 no exterior se distanciou cada vez mais dos movimentos internos. Especialmente dentro do atual ambiente internacional de oposição entre a China e as poderosas nações ocidentais, uma situação fundamental enfrentada por essas novas comunidades no exterior é como diminuir sua dependência de partidos políticos estrangeiros e evitar modelos impostos de cima para baixo, ao mesmo tempo em que fornece empoderamento popular suficiente para grupos chineses tanto na China quanto no exterior.

No momento, é difícil determinar como um movimento de solidariedade no exterior verdadeiramente eficaz deve se desenvolver, mas pelo menos a onda de protestos levantou outra nova questão: como as comunidades no exterior devem construir movimentos de solidariedade formados pela nova geração de ativistas chineses progressistas, centrados em questões domésticas salientes dentro da China, e que enfatizam o desenvolvimento de relações com tanto os movimentos na China quanto grupos da sociedade civil no exterior?

Traduzido por Marco Túlio Vieira para o Passa Palavra

Notas

[1] Outra análise da esquerda continental sobre acontecimentos que merece ser destacada é “Novembro: antevisão de uma revolução” (11月,革命预演) por Wuyun (乌云), publicado pela primeira vez no canal do Telegram “Liberation News” (解放) no início de dezembro. Como Zuoyue, Wuyun classifica as lutas de novembro em três tipos, mas usa uma abordagem diferente que inclui protestos no exterior dentro dos protestos simbólicos do Papel em Branco e distingue a luta dos trabalhadores da Foxconn das ações diretas contra medidas específicas de lockdown feitas por vários estratos mais baixos de moradores urbanos. O artigo de Wuyun também difere do relato liberal de esquerda de Zuoyue ao apresentar uma perspectiva maoista, sendo o maoismo de longe a corrente mais difundida na esquerda continental (embora os maoistas continentais estejam internamente divididos em várias facções em guerra). A leitura dos dois artigos em paralelo pode dar uma noção do espectro de posições sobre os acontecimentos de novembro adotados pela esquerda continental. (Ainda não encontramos relatos substanciais de outras correntes de esquerda do continente, como anarquistas, trotskistas ou aqueles que muitas vezes se autodenominam simplesmente “internacionalistas”. Aqueles com quem conversamos dizem que isso acontece porque eles e seus companheiros ainda estão sob custódia policial, ocupados organizando funerais para avós mortos pela Covid após o grande desbloqueio, ou, como nós, eles ainda estão vasculhando os destroços e tentando esclarecer exatamente o que aconteceu). Abaixo está a nossa tradução de um parágrafo relevante do artigo de Wuyun: ‘os protestos e lutas nacionais que eclodiram em 23 de novembro podem ser divididos aproximadamente de acordo com suas situações nos três tipos seguintes: o primeiro foi a luta dos trabalhadores da Foxconn, um intenso conflito que os trabalhadores realizaram de forma independente contra os capitalistas e a polícia, exigindo que a Foxconn honrasse as promessas econômicas que havia feito quando os contratou e que proporcionasse compensação econômica aos novos contratados que não estavam dispostos a permanecer na fábrica. Ainda que os trabalhadores realmente lutassem contra os arranjos conjuntos dos capitalistas e do governo burocrático, a luta não foi dirigida contra o Estado em si. O segundo tipo consistia nas lutas por toda a parte que exigiam o fim dos lockdowns nos espaços de habitação urbanos. Seus participantes incluíam os estratos intermediários de moradores das cidades que viviam em complexos residenciais urbanos, mas eram dominados por trabalhadores nas vilas urbanas, lutando em aliança com os estratos mais baixos de patrões e proprietários de casas. Essas lutas visavam os governos locais, com intensos confrontos entre a polícia e os moradores da classe trabalhadora nas vilas urbanas de Guangzhou, por exemplo. O terceiro tipo consistia dos protestos de liberais e estudantes universitários com ideias democráticas, envolvendo as palavras de ordem políticas do liberalismo e do democratismo’.

[2] Entre esses relatos em inglês, recomendamos ”Uigures em Urumqui protestam“ por Darren Byler (China Project, 8 de dezembro);”Estrada Urumqui“ por Chris Connery (Made in China, 8 de dezembro); ”A Revolta na China“de Yun Dong (Spectre, 30 de novembro); ”Escapando do Circuito Fechado“ por Eli Friedman (Boston Review, 27 de novembro); e ”China em Protesto“por vários autores (China File, 29 de novembro). Entre as fontes chinesas, além dos artigos de Zuoyue e Wuyun, também recomendamos navegar nos canais relevantes em Initium (端媒體), NGOCN, CDT e Matters, ouvir as entrevistas nos episódios 27 & 29 do podcast 不明白, e assistir aos vídeos em 王局拍案. Se você puder recomendar outras fontes, poste nos comentários ou envie um e-mail para [email protected].

[3] Vários amigos e camaradas têm discutido esse artigo nos seus respectivos círculos, e uma resposta foi publicada ontem, elaborando as questões que foram levantadas: 纸运动对未来的社会抗争有何启发? por Zuowang 左望 (NGOCN, 18 de janeiro).

[4] Outra lente que alguns leitores notaram é o conjunto específico de fontes que o artigo usa, que relatam estimativas de maior número e alcance dos protestos (explicadas nas notas de rodapé abaixo), e tendem a superestimar a influência mútua exercida por uma série de eventos dispersos. Ocorrências concretas nos locais são confundidas com os escândalos mais proeminentes de 2022 que apareceram no noticiário da esquerda ativista (circulando principalmente fora do Grande Firewall e, portanto, desconhecidos para aqueles que decidiram se revoltar nas vilas urbanas da China, por exemplo). Isso explica algumas das equações oferecidas na análise, onde formas díspares de descontentamento são convocadas como evidência de uma resistência lentamente crescente do povo contra a política COVID zero e, eventualmente, todo o sistema político.

[5] Alguns observadores questionaram se o motim na Foxconn realmente fazia parte do movimento anti-lockdown. Poderíamos ir mais longe e perguntar se mesmo os protestos do papel em branco e as ações diretas contra medidas específicas de COVID zero constituíram, em conjunto ou separadamente, tal movimento. Os participantes em ambos os tipos de resistência parecem ter partilhado algum tipo de oposição à política de zero COVID (que envolveu muitas outras características além dos ”lockdowns“, como normalmente entendido em inglês: os idosos sendo forçados por “grandes brancos” a se mudarem para instalações de quarentena insalubres, ao mesmo tempo em que foram negados cuidados médicos, o bloqueio literal de pessoas em seus edifícios que levou às mortes que provocaram os protestos do papel em branco, etc.). Quando a política de COVID zero não foi apontada como inimiga, os participantes pressionaram pela implementação local das “20 medidas” do governo central para mitigar as consequências mais brutais da política. Raramente alguém expressou oposição aos lockdowns em geral, como uma questão de princípio, de uma forma comparável aos protestos ”anti-lockdown“ politizados que ocorrerem em outros países. Como mencionado no artigo de Zuoye, nas poucas ocasiões em que os manifestantes do papel em branco articulavam demandas e palavras de ordem mais amplos, eles visavam mudanças institucionais que permitissem aos “cidadãos” ter mais voz na formulação de políticas (potencialmente incluindo políticas de lockdown mais razoáveis — como pelo menos alguns manifestantes-apoiadores expressaram desde a desastrosa reversão da política em Pequim no dia 7 de dezembro). As ações diretas proletárias, por outro lado, visavam exigências específicas de subsistência (também apontadas no artigo), incluindo coisas como: nos forneça a comida e os produtos médicos prometidos; me deixem sair do meu apartamento para poder ir trabalhar e ver um médico; me deixem ir para casa ver a minha família, etc. O seu conteúdo e especialmente as suas formas de resistência – bem como o seu isolamento de outras camadas sociais, incluindo os manifestantes do papel em branco – ecoaram muitas outras lutas na esfera da reprodução que os proletários têm travado nas vilas urbanas e distritos industriais da China periodicamente desde pelo menos os anos 2000 (explorado nos nossos artigos ”No Way Forward, No Way Back“ e ”Picking Quarrels“, por exemplo). Tudo isso sugere que essas ações expressam problemas mais profundos relacionados à crise de reprodução social de longo prazo, que só foi exacerbada pela zero COVID. (Essa possibilidade é explorada no artigo de Eli Friedman ”Escapando do Circuito Fechado“).

[6] Ouça, por exemplo, as entrevistas com os manifestantes do papel em branco no podcast Bumingbai, e leia aquelas em vários dos Relatórios da Initium e em NGOCN.

[7] Para obter detalhes sobre os distúrbios na Foxconn e seus antecedentes, consulte 郑州富士康工人的阶级斗争 (“The class struggle of Foxconn workers in Zhengzhou”) da plataforma maoista 今朝 (“Hoje”), republicado na plataforma taiwanesa Events in Focus (焦點事件): parte 1, parte 2.

[8] TRADUTORES [para o inglês]: essa é uma tradução do título original 为什么白纸抗议是”三个运动“?理解封控抗议潮的革命性和局限性.

[9] TRADUTORES [para o inglês]: as “políticas nacionais fundamentais” (基本国策) são aquelas considerados centrais para a fundação e o governo do país. Não é, no entanto, uma categoria jurídica oficial, mas sim uma distinção feita tanto nos meios de comunicação oficiais como no discurso público. No passado, dizia-se que a categoria incluía políticas de planejamento familiar, igualdade dos sexos, reforma e abertura, proteção das terras aráveis, eficiência energética e proteção ao meio-ambiente.

[10] TRADUTORES [para o inglês]: o original não indica a fonte deste valor, mas o banco japonês Nomura estimou em abril de 2022, que quase um em cada três cidadãos chineses estava sob alguma forma de lockdown, o que elevaria o número para aproximadamente 400 milhões, ou um terço da população da China. O banco tem seu próprio modelo de quanto da economia está sob lockdown, e não está claro como seus cálculos são feitos. Sua estimativa para novembro foi que 30% da população da China estava sob alguma forma de lockdown. Planejamos explorar a dinâmica dos bloqueios, “áreas de alto risco” e a disseminação do Ômicron ao longo de 2022 em relação às várias formas de agitação e às respostas desastrosas do Estado a tudo isso em uma futura publicação.

[11] TRADUTORES [para o inglês]: os relatórios do incêndio de Anyang mostram que a grande maioria dos trabalhadores, incluindo os que morreram, eram idosos locais de Anyang. Foi uma tragédia para a comunidade, pois a maioria das pessoas se conhecia. Uma das trabalhadoras presa conseguiu ligar para o marido, que trouxe uma escada de casa para o local para ajudar no esforço de resgate. Para mais informações em inglês com links para vários relatos chineses, ver ”Garment factory fire in Anyang takes 38 lives, injures 2“(CLB, 29 de novembro).

[12] As cidades implementaram individualmente políticas de vales de consumo, mas essas muitas vezes não resultaram numa melhoria significativa na situação dos trabalhadores. Os vales eram poucos, orientados apenas para certos bens e distribuídos apenas em certos casos.

[13] Para tomar como exemplo a Meituan: no final de 2019, a Meituan tinha 3,98 milhões de entregadores registados. No final de 2020, o número de indivíduos que recebem rendimentos da Meituan aumentou para 9,5 milhões.

[14] TRADUTORES [para o inglês]: o crescimento do PIB do quarto trimestre da China foi 2.9%, (maior do que o valor de 0,4% no primeiro trimestre, mas abaixo do 3,8% no terceiro), então assumimos que o autor quis dizer “maior crescimento” aqui.

[15] As palavras exatas no cartaz original eram: “não queremos testes de ácido nucleico, queremos comida para comer / não queremos bloqueios, queremos liberdade / não queremos mentiras, queremos dignidade / não queremos Revolução Cultural, queremos reforma / não queremos líderes, queremos eleições / não queremos ser escravos, queremos ser cidadãos”. Essas palavras de ordem foram gritadas na íntegra em certos lugares durante os protestos, mas também foram convencionalmente abreviados para “não queremos testes de ácido nucleico, queremos liberdade.” Outros locais acrescentaram suas próprias inovações, como em uma palavra de ordem vista em Guangzhou: “não queremos ficar parados e assistir, queremos participar / não queremos ficar deitados, queremos ir trabalhar / não queremos ficar deitados, queremos ir para a escola.”

[16] Greves e outras ações em defesa dos direitos dos trabalhadores existem há muito tempo na China, mas devido à censura e à repressão — que também tornaram a discussão das questões dos trabalhadores em geral menos visível — esses protestos há muito sofrem de invisibilidade, apesar de sua frequência. Quase todas as cidades e zonas industriais do país assistiram a protestos espontâneos e dispersos por parte dos trabalhadores durante muitos anos.

[17] TRADUTORES [para o inglês]: o original se baseia aqui e em vários outros lugares no “China Dissent Monitor”, que é um produto da ONG norte-americana Freedom House. Em nossa opinião, o Dissent Monitor não é uma fonte empírica ou politicamente confiável, e a confiança do autor nessa e em várias outras fontes questionáveis parece ser o motivo de muitas das estimativas (de números de protestos, participantes, etc.) serem inflados em todo o artigo. Há dois grandes problemas com o Dissent Monitor. Em primeiro lugar, tanto a sua metodologia como as suas fontes são totalmente opacas, tornando extremamente difícil verificar os fatos. Em segundo lugar, e mais importante, a sua organização-mãe é uma ONG conservadora intimamente ligada aos interesses do governo dos EUA. A organização recebe a maior parte do seu financiamento de subvenções do governo dos EUA e, embora não receba financiamento direto do Departamento de Estado, recebe dinheiro da USAID e de outras fontes de subvenções ligadas aos interesses de segurança nacional dos EUA. Mais contundente é o fato de que a organização foi fundada como um think tank anticomunista durante a Guerra Fria, em cujo papel produziu críticas contundentes a figuras proeminentes como Martin Luther King Jr. e sua posição contra a guerra do Vietnã. Nos últimos anos, a Freedom House ajudou a estabelecer os padrões duplos usados em vários rankings de “democracia”, que têm pouco a ver com instituições democráticas e, em vez disso, são clara e sistematicamente tendenciosos em favor de países aliados aos interesses da política externa dos EUA.

[18] Depois que os Protestos do Papel em Branco desapareceram da praça pública no distrito de Haizhu, em Guangzhou (por volta de 28 de novembro), os protestos coletivos dos trabalhadores contra o bloqueio continuaram em várias vilas urbanas de Haizhu, como a vila de Lijiao e de Houjiao, onde os trabalhadores viraram carros da polícia que disparou bombas de gás lacrimogêneo e prendeu uma parte dos manifestantes como resposta.

[19] TRADUTORES [para o inglês]: ”Defesa Dos Direitos“ (维权) refere-se à prática de recorrer a autoridades (geralmente de nível superior) para garantir que a letra da lei seja seguida e que todos os direitos e proteções legalmente garantidos sejam implementados corretamente. Embora essa seja uma descrição precisa de muitos protestos na China, a representação de diferentes formas de agitação dos trabalhadores como “defesa dos direitos” também é muitas vezes uma escolha política, seja feita para evitar a censura ou como uma forma de obscurecer intencionalmente dimensões mais radicais de qualquer onda de agitação sob o jargão liberal e institucionalmente orientado popular entre os ativistas da sociedade civil. (Isso é explorado no livro Resistência Legítima na China Rural por Lianjiang Li e Kevin O’Brien.)

[20] TRADUTORES [para o inglês]: aqui e em outros lugares o autor refere-se a um “movimento operário” ou “movimento dos trabalhadores”. Nenhum movimento de massa dos trabalhadores existiu na China desde que o movimento sindical pré-revolucionário foi incorporado ao Partido-Estado na década de 1950 – com a possível exceção das greves defensivas e tumultos de trabalhadores do antigo cinturão industrial socialista confrontados com demissões em massa durante a reestruturação de empresas estatais no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Hoje, o uso frequente do termo ”movimento dos trabalhadores“ por ativistas geralmente se refere à combinação de pequenas redes de ativistas dos direitos dos trabalhadores (que foram essencialmente aniquiladas em 2019) e as greves e tumultos dispersos, esporádicos e na maioria desorganizados no setor manufatureiro que cresceram em vigor na década de 2000, atingiram o pico no início da década de 2010 e recuaram depois disso. Em textos como este, a “repressão ao movimento dos trabalhadores” refere-se principalmente à repressão específica dos ativistas, em vez da repressão mais ampla e complexa de várias formas de agitação proletária.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here