Por Isadora de Andrade Guerreiro
Escrevo este texto como reflexão acerca dos muitos debates, falas, lançamentos de livros e ato (no singular) que se deram no último junho, dedicados aos 10 anos das jornadas de 2013. Acredito que a própria avalanche de reflexões, opiniões ou diretrizes ideológicas acerca do episódio disruptivo tenham algo a dizer por si mesmas, no seu conjunto de embates e na sua relação com os eventos em si. Pretendo olhar para elas não como elementos externos a junho de 2013, mas como parte dele, lente através da qual se possa refletir sobre seu atual futuro, e não sobre seu significado passado.
Peço licença ao João Bernardo, pois farei uso aqui de seus últimos escritos sobre estética, publicados em 2021 no Passa Palavra no livro “Arte e espelho”. Como ele mesmo diz, “a estética é inelutável” (Arte e espelho 10) e foram, inelutavelmente, exatamente destes escritos que eu me lembrava enquanto assistia a estes debates, o que me levou à memória do meu lugar nas próprias jornadas de 2013: uma dúvida, ou um incômodo de entender se, ao participar dos atos, eu seria espectadora ou material dos mesmos. De qualquer maneira, o que eu teria a dizer sobre os eventos seria, inevitavelmente, algo atravessado pelo meu próprio olhar – o que não me parecia relevante frente ao tamanho dos acontecimentos. No entanto, fui percebendo que todas as falas passavam exatamente por isso: junho não era uma única verdade, nem mesmo a de seus protagonistas, mas sua força advinha da possibilidade, justamente, de trazer para dentro de si todos os seus espectadores.
Ser espectadora, aqui, é relevante, como coloca João Bernardo no quinto ensaio do referido livro: “A obra de arte é um espelho do espectador, em que ele se reflecte a si, às suas memórias e aos seus desejos, e o reflexo devolve-lhe uma imagem transformada. Afinal, será a imagem que reflecte o espectador ou será ele que acabará identificando-se com a imagem?”. Nesse aspecto, os muitos olhares para junho me parecem esse caleidoscópio de reflexões de múltiplos espectadores que, ao olhar para o evento, refletem a si mesmos, identificados com a imagem que fazem do mesmo. E junho, um grande e poderoso espelho – mais do que a tão evocada imagem da esfinge, como um mistério a se resolver.
Assim, a tarefa de analisar 2013 aparece como um prisma que reflete as posições implicadas ali, revelando uma miríade social e política que vinha até então apagada no “fim da história” lulista. Mas se o evento em si traz esta possibilidade, é porque tem força social e histórica para tanto, além de uma forma específica que permite tal refletividade, como confluência, ou coagulação histórica. Olhá-lo desta maneira é o contrário de fetichizá-lo, congelando-o em imagem autônoma positivada – como uma “verdade histórica”, mas justamente no sentido que João Bernardo propõe, ao analisar a obra de arte:
Um só objecto — e um caleidoscópio de emoções. Daí, a ambiguidade da arte.
E se o objecto artístico é um espelho, cada pessoa escolhe um espelho à sua medida, para nele projectar o muito, ou o pouco, que tem. Mas há também aquelas obras — e essas estão acima de todas — com tantos graus de profundidade que podem ser vistas ou ouvidas em qualquer dimensão, servindo de espelho às mediocridades e aos génios. São essas as obras que marcam uma época e se definem como clássicas. (Arte e espelho 5)
Deste ponto de vista, promotores e espectadores são ambos os autores de 2013, pois ele não se encerra num positivismo único, mas “exige sempre um confronto” (Idem) entre as visões que suscita. Segundo João Bernardo, “Apreciando os espectadores, percebemos que a arte, resultado da relação do artista com a obra, não existe sem o outro lado da relação, e morre se os espectadores lhe recusarem o impacto” (Ibidem).
Considerada desta maneira, a tese do “ovo da serpente” não precisa ser deixada de lado: trazê-la para o debate é fortalecer a potência de junho, pois ela também faz parte do que é junho. Ela é o espelho deste espectador – e da sua mediocridade. É junho que cria este importante espelho, diante do qual tal espectador não quer se ver[1]. No décimo e último ensaio do livro, João Bernardo diz:
Se o objecto de arte é um espelho em que o espectador ou ouvinte se reflecte, quem afirma que não precisa de objectos de arte está a confessar que tem medo de se encontrar perante um espelho que lhe lance o reflexo… o reflexo de quê? Diante da forma artística, a forma considerada como o principal conteúdo, quem desvia a cara, fecha os olhos, tapa os ouvidos com barulho ensurdecedor, ou não tem nada dentro de si para reflectir ou tem medo do que possa ver dentro de si. Ou o vazio ou o horror. Por isso ignora a arte. (Arte e espelho 10)
Se do lado da tese do “ovo da serpente” pretende-se ser criador de um junho próprio, denotando ambições totalitárias ao negar sua existência como forma de manifestação política, dando-lhe significado único[2]; do lado dos promotores do acontecimento a postura é outra: seu planejamento e suas ações são no sentido de conformar, na articulação dos conteúdos desta forma organizativa, um misto de determinação (são só 20 centavos, e nada mais nos deterá) e indeterminação (“não são só 20 centavos”). Muita coisa não é 20 centavos – mas 20 centavos são muita coisa. Planeja-se inclusive perder o controle do ato – o que é de uma ambiguidade única. Retornando a João Bernardo:
A arte que não for susceptível de ser tornada independente do criador não é arte, porque não serve de espelho ao espectador ou ao ouvinte. «Uma obra é sólida», explicou Paul Valéry, «quando resiste às substituições a que o espírito de um leitor activo e rebelde sempre tenta submeter as suas partes». Por isso não existe arte — se for arte — que não seja ambígua, e o programa estético dos totalitarismos é a extinção da arte. (Arte e espelho 5)
A pauta da redução de tarifa é conteúdo de uma forma organizativa que se coloca em movimento, dando, por sua vez, ambiguidade ao conteúdo explícito, reivindicado como pauta, dando-lhe os contornos abertos a tudo o que poderia não ser 20 centavos. “Por isso a arte, além de ser forma, é também ambiguidade”, diz João Bernardo (Idem). O PT como governo (não no governo), por exemplo, era um conteúdo ao não ser a pauta dos 20 centavos. Era um conteúdo pressuposto, que aparecia pela delicada composição de forças em confronto, aberto a todo tipo de análise ou posição. Tal lugar ambíguo tem potência reveladora da face real do petismo, que se desdobra seja na forma como Haddad e Dilma se colocam frente aos atos, seja na própria criação da tese do “ovo da serpente”.
Outro conteúdo que existia ao não ser pauta era a própria forma organizativa dos atos, que refletia a do MPL. De acordo com João Bernardo, “Nas artes narrativas não existe só o conteúdo, mas também a forma como conteúdo” (Arte e espelho 4). Há muito a ser dito aqui, e muitos estão se colocando sobre o tema. Não é minha intenção desenvolve-lo, mas apenas indicar que a potência reveladora dos eventos de junho também se desdobra neste ponto, ao escancarar a verdade oculta sobre a “a maneira de” (Arte e espelho 4) fazer e de ser da própria esquerda no Brasil – pois tal revelação não seria alcançada apenas com o conteúdo redistributivista dos 20 centavos, se estivesse conformado de outra maneira. A crítica dos setores institucionais de toda a esquerda à forma organizativa de junho de 2013 revela algo, aliás, da aproximação do fim da história lulista com o realismo socialista: “A crítica ao formalismo, banindo a forma, reduzia a arte a ser o que não era — um ensaio. E numa sociedade regida por um pensamento único, o ensaio reduzia-se a uma proclamação da linha oficial” (Arte e espelho 10).
Foi capaz também de revelar o papel da polícia dentro da concertação de governo desta esquerda, o que jamais aconteceu na conformação de palavra de ordem “queremos o fim da polícia militar”. O conteúdo de tudo isso já existia antes[3], mas só se tornou revelador, capaz de mover estruturas políticas, no momento em que encontra uma forma própria na qual se exprime, mantendo a tensão da ambiguidade. Os atos não teriam escalado sem a atuação da própria polícia – ela também se olhou no espelho ali.
Tal ambiguidade do primeiro momento de junho de 2013, que mantinha sua força social e histórica, vai se perdendo na medida em que, com a vitória sobre a redução da tarifa, ocorre uma espécie de desambiguação. A forma organizativa da revolta se mantém, mas com conteúdos que vão se tornando figuras simplórias, pautas que criam narrativas[4] que esvaziam o conteúdo político da forma anterior, que se autonomiza, numa dinâmica típica do fascismo:
Depois de observar que o fascismo, ao mesmo tempo que mantinha o sistema de propriedade, permitia às massas exprimirem o seu desejo de transformação, Walter Benjamin, no ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, concluiu que o fascismo «tende naturalmente a uma estetização da vida política». Esta observação, de lucidez ímpar, contém todo um programa de análise do fascismo. É certo que, se a estética é inelutável, ela não está ausente de nenhuma política. Mas no caso do fascismo é a política que se ausenta, para afinal se reduzir à estética. O fascismo é um enorme cenário, que cobre uma prática oposta. (Arte e espelho 10)
Janeiro de 2023 deixa este movimento claro: sem pauta e sem ambiguidade, a política se reduziu à estética de um show espetacular imagético, com “genealogia religiosa, reencenando os iconoclastas” (idem), destruindo os objetos de arte e edifícios modernistas que representavam o Estado, em fúria contra a “estatolatria” e tudo o que ela enseja. Não cabe aqui, portanto, um julgamento sobre o conteúdo desse ato – a violência contra o Estado, de maneira autonomizada –, mas uma reflexão sobre o que a sua forma revela: a estetização da política retira qualquer possibilidade de ação autônoma que construa significados ou práticas transformadoras para além deste cenário positivado.
A Tarifa Zero como pauta hoje
Foi feito um ato, em São Paulo, em meio às discussões sobre os 10 anos de junho, pautando a Tarifa Zero. Embora seja assunto quente, houve pouca adesão, em meio ao restaurado lulismo 3.0, nova tentativa de frear a história: os espectadores recusam qualquer possibilidade de impacto. Claramente, a pauta como conteúdo não é suficiente para explicar os acontecimentos. Novamente me lembrei do texto do João Bernardo.
Refiro-me aos que desejariam possuir os olhos e os ouvidos de uma época extinta. Uma pessoa pode apreciar muito um artista de outro século, mas uma obra actual que lhe imite a maneira surge como uma insofrível banalidade. (Arte e espelho 6)
Neste capítulo 6, João Bernardo fala sobre como as relações sociais emergem como formas estéticas e, portanto, estão presas a sua época – que, por sua vez, faz proliferarem, em distintos lugares e situações, formas semelhantes. Ele lembra o historiador Hugh Trevor-Roper, que disse “A História não é apenas o que aconteceu. É o que aconteceu no contexto do que poderia ter acontecido”. Uma mesma faísca que pega fogo num paiol seco, não pega em chão molhado. Os conteúdos precisam se con-formar, ganhar a forma histórica necessária para se fazerem reveladores de seu tempo. A pauta da tarifa, em 2013, tinha significado antecipatório e indicava outros mundos possíveis.
Ao afirmar que o possível tem uma «pretensão à existência» e que, mesmo sem existir, a possibilidade é já uma «realidade», Leibniz queria dizer que ela é real pelo facto de ser possível. É certo que as possibilidades se definem dentro de dados contextos, e nem tudo é possível. Mas basta a possibilidade para se afirmar como realidade. Por isso a arte é a multiplicação das possibilidades, e esta multiplicação ocorre nos limites de um contexto, pois até nos desejos nós somos circunscritos por aquilo que conhecemos e em que vivemos. A arte, esclarecendo o mundo em que vive, não se reduz a ele, precisamente porque a arte é a multiplicidade de mundos possíveis em que todos eles são reais, e não só a realidade definitiva e última. (…) Tudo o que se passa foi já anunciado pela arte. É que a arte não é a reprodução do existente. É um desejo do que não existe, ou a antecipação do que ainda não existe. (Arte e espelho 6)
Para além do seu conteúdo objetivo – de fato emancipador para a população urbana atual e que dialoga com a necessidade de negação da “normalidade da exploração” que permanece imperando – seria possível a tarifa ter o mesmo significado político hoje? No caso de 2013, tínhamos a “primavera dos povos” e, em 2023, uma ascensão neofascista no mundo todo. A financeirização dos direitos sociais avançou desde então, e estamos na beira de uma situação na qual poderá haver dinheiro para a realização de coisas antes impensáveis, como a Tarifa Zero. Ainda João Bernardo: “Assim, para uma parte crescente da população mundial a pobreza está a ser solucionada com dinheiro, enquanto a miséria não só fica sem solução, mas agrava-se. Defino a miséria como a incapacidade de [se] beneficiar do fim da pobreza” (Arte e espelho 10).
Como não deixar a pauta da Tarifa Zero cair na miséria de uma solução distributivista que resolverá os problemas também de empresários do transporte? É necessário fugir da sua defesa tal qual a institucionalidade faz à esquerda e à direita, que a encerram na estética do realismo social, que “é a submissão à trivialidade do presente” (Idem).
Como dar ambiguidade a esta pauta tão fechada? Como fazer com que ela, como espelho, possa revelar, por meio de uma forma específica, “a maneira de” funcionamento da cidade atual, que governa a vida da maior parte da população mundial? Será que isso seria suficiente para suscitar novas formas organizativas para a cidade? Poderia com isso servir como prisma para outras pautas – como a transformação do mundo do trabalho –, aglutinando-as num mesmo sentido histórico? Eu não saberia responder, mas junho de 2013 deve estar presente não (apenas) na pauta, mas na sua potência reveladora das formas sociais que vivemos neste momento histórico. É necessário criatividade para criar novas formas, pois “A imaginação é a negação da miséria” (Arte e espelho 10).
Notas
[1] Pablo Polese parece estar alinhado com essa minha maneira de ver, ao dizer que “Para a esquerda histórica a incompreensão de junho de 2013 é, portanto, uma necessidade”, em texto recente aqui no site.
[2] “Da incompreensão da distância entre o criador e a obra resultam todos os mal-entendidos políticos em arte. E resulta também o programa único do totalitarismo na arte, a ambição de criar objectos artísticos que nunca obtenham uma existência independente do criador. Mas esta é a receita da mediocridade, ou seja, da criação de objectos não-artísticos” (Arte e espelho 5).
[3] “O objecto artístico reduzido a uma narrativa deixa de ser artístico, converte-se numa ilustração” (Arte e espelho 4).
[4] “Nas artes narrativas, além da forma assumida pela narrativa, há um conteúdo, a história narrada, que é distinto da forma. Nas artes não narrativas a forma é o único conteúdo relevante, e o aparente conteúdo, se a arte for figurativa, não é mais do que um pretexto para a forma. As figuras podem evocar uma história, mas são inoperantes sem a forma e, se a forma fracassar, a narração não funciona” (Arte e espelho 4).
Isadora,
Que surpresa, a sua coluna! Aplicar a reflexão estética à análise política, e isto na esquerda, que vive de costas para essa problemática. Vejo que o que escrevi não foi inútil. Em 1965-1966 escrevi na prisão política o meu primeiro texto, que muito depois o Passa Palavra publicou. Chamava-se Uma Pintura na Construção dum Mundo. Nele, eu defendia que a luta pelo comunismo é indissociável da pintura abstracta e do construtivismo. Continuo a pensar o mesmo. A forma da reflexão estética, a forma, é isso o importante, e foi com isso que você construiu a sua análise. Muito obrigado.
Caro João Bernardo,
Eu é que agradeço pelo diálogo, fico muito contente que tenha feito sentido. Tive receio em fazer esta escolha de abordagem por já ter sido muito criticada por falar de política para os arquitetos, e por falar de arquitetura no meio político. Embora a reflexão estética tenha sido uma das conexões destes dois mundos para mim, permaneço com dificuldade de encontrar interlocutores, principalmente aqueles que consigam descer do alto nível de abstração desses campos para as urgentes tarefas concretas que precisamos fazer, e para as quais a visão de totalidade da reflexão estética muito poderia colaborar. Mas, se senti alguma segurança de me arriscar neste espaço, é porque estes seus textos deram abertura. Não deixa de ser uma boa notícia.
Isadora,
Continuando. Desde criança eu sou apaixonado por pintura, e desde cedo entendi que o modelo da pintura é a pintura abstracta, porque na arte a forma é o verdadeiro conteúdo da forma. A narrativa é só um pretexto, a arte é a forma. Em 1972-1973 rompi com o leninismo e comecei a pensar que o mais importante nas lutas sociais é a forma da luta, não o seu conteúdo programático. A revolução portuguesa de 1974-1975 confirmou-me a validade desta ideia. Procurei desenvolver esta noção no Economia dos Conflitos Sociais. A partir de então eu entendi que a análise estética e a análise política obedecem a um mesmo modelo. A estética não é uma coisa, não é um bibelot. A estética é uma maneira de ver. Daí a validade de uma análise estética da política, que é o que você fez. A forma das cores e dos volumes, ou das linhas. Ou as formas sociais.
-> “É certo que, se a estética é inelutável, ela não está ausente de nenhuma política. Mas no caso do fascismo é a política que se ausenta, para afinal se reduzir à estética. O fascismo é um enorme cenário, que cobre uma prática oposta .》”
Qual a Estética da Revolução? A Revolução é uma questão de Estética?
A Arte é uma forma de viver? O modo de vida é uma forma?
O que fazer é o como fazer? Cada resposta traz em si novas perguntas?
Para encontrar a saída do labirinto de labirintos do Fascismo é preciso passar pela Economia Política dos conflitos sociais?
• O anti-Capitalismo precisa se materializar em lutas concretas, cujas formas dessas lutas são determinantes do conteúdo delas.
• A comunicação é o tecido conjuntivo das lutas. Qual a função da comunicação? Identificar, conhecer, registrar, divulgar e fortalecer as lutas concretas. Assim a comunicação se une à ação.
• As formas de comunicação já trazem em si formas específicas de organização, enquanto estas por sua vez devem antecipar outro tipo de relações sociais, tornando se embrião de um mundo pós-capitalista.
• Formas autônomas de comunicação dão origem a formas de organização também autônomas, fundamentais para criar relações sociais tendo a autonomia como meio e fim.
• Compreendida como meio e fim, a autonomia é a forma pela qual se materializa como processo a Revolução no séc. XXI.
No que a teoria bernardiana das formas se separa da eidética platônica?
EPISTEME&DOXA (em pressuposição recíproca)
Filósofo Inquieto mirou num pseudoproblema.
A questão seria, talvez, melhor formulada assim: em quê a dialética de JB se distingue da maiêutica de Sócrates, numa (espécie de bricolagem conceitual denominada) síntese disjuntiva?
Numa perspectiva as formas são a posteriori; na outra, a priori. A diferença entre as duas perspectivas reside no empírico.
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Quando escrevi esta resposta ainda não tinha visto o comentário de Ulisses, só o comentário anterior. Mas penso que pode servir aos dois.
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O que entretanto apareceu de novo e mudou tudo (depois do século XVII, a partir de Galileo) foi a conversão da mera sensação em experimentação. Foi então que a noção de empírico mudou. Deixou de ser passivo, passou a ser um empírico activo. É esta ruptura que torna arcaicas as noções anteriores. E que remete as fantasias decoloniais ao que elas são, um carnaval.
O que essas “fantasias decoloniais” tem a ver com o assunto? Não entendi.
Qual as formas de manifestação presentes em Junho de 2013 ? Como analisar esteticamente estas formas?
Qualquer abordagem deste tipo precisa descer ao pé do chão dos exemplos concretos, caso contrário se dilui em abstração teórica sem vínculo direto com os fatos e a experiência de vida.
No Rio, Junho de 2013 se alongou até a Copa de 2014, com diversos desdobramentos: Ocupa Câmara, Ocupa Leblon Cadê o Amarildo?, greve dos professores, greve dos garis, Não vai ter Copa.
Além do mais, em todos estes movimentos estiveram presentes integrantes da Aldeia Maracanã, numa prova de como as lutas específicas (no caso, a dos indígenas) podem se vincular as lutas gerais.
Da perspectiva estética das formas destes movimentos, tem-se casos indispensáveis de serem resgatados, registrados, analisados e replicados.
Exemplos:
• manifestações descentralizadas, com vários conjuntos atuando de modo independente.
• os próprios “Ocupas”, como forma de continuidade entre as manifestações tornando-as de eventos isolados num processo.
• as passeatas de longo percurso, cruzando desde o Centro do Rio (“Ocupa Câmara”) passando por toda a Zona Sul até o “Ocupa Leblon”.
• articulação dos movimentos com o protesto dos moradores do Complexo da Maré contra as chacinas policiais.
• 25/06/2013: moradores da Rocinha atravessam o túnel e marcham até o prédio onde então morava o governador Sérgio Cabral.
• 17/07/2013: a noite do terror no Leblon, com lojas saqueadas, agências bancárias atacadas e barricadas nas ruas. Moradores da Rocinha e do Vidigal participam do ato, no contexto do movimento “Cadê o Amarildo” (assassinado pelo BOPE na Rocinha).
Quando os moradores das enormes favelas da Zona Sul carioca começam a participar das manifestações, o sinal de alarme soou para a classe dominante.
Estavam perdendo o controle e aquilo deveria ser reprimido a todo custo.
Quem se encarregou da repressão? O Lulismo.
Teriam sido estes eventos do longo Junho de 2013 no Rio verdadeiras obras de arte? Qual o aprendizado estético que deles devemos assimilar?
Filósofo inquieto,
Porque os decoloniais fazem a apologia de um pensamento mítico, enquanto a noção de experimentação foi uma ruptura universal, que os decoloniais usam na prática quotidiana, mas sem reconhecerem teoricamente. Daí a farsa, o carnaval.
Primeiramente gostaria de parabenizar a Isadora pelo artigo, acho que é o texto que apresenta uma das discussões mais originais sobre junho nestas efemérides de 10 anos.
Interessante notar nos comentários a retomada feita pelo João Bernardo sobre a forma como o verdadeiro conteúdo seja em estética, seja em lutas sociais. Me parece que foi essa também a força motriz do texto publicado por ele em 2013 , quando discute que estava na forma do MPL a sua proposta de transformação radical e também dos riscos da esquerda para a qual era “cada vez mais sedutora a montagem de cenários”.
Foi da reflexão presente naquele artigo, sobre a forma do movimento como determinante de seu potencial de transformação, que escrevi, dois anos depois, o texto O Movimento Passe Livre acabou?e afirmei “Entendo que a potencialidade transformadora de um movimento não é medida pela radicalidade de sua pauta, mas sim pela maneira como a mobilização em torno dela é capaz de produzir novas dinâmicas e experiências de luta.”
Retomando o assunto fica claro que a falta de reflexão sobre a necessidade de imaginar novas formas de compreender o mundo e assim reorganizá-lo, agravou-se de 2015 para cá.
Legume Lucas,
Agradeço pela referência ao texto do JB, que eu não conhecia.
Sobre seu comentário: sim, a forma organizativa e de mobilização do MPL é central no debate. No entanto, acho que isso não é suficiente. Ao usar os textos sobre estética do JB, tentei mostrar que tal forma ganha potência apenas na medida em que se relaciona com seu contexto histórico, podendo virar espelho para determinadas forças estratégicas (os espectadores) que, ao se enxergarem ali, se revelaram e colocaram em andamento um processo social latente. Determinada forma organizativa não tem força por si só, e isso é central quando JB usa a noção de espelho, que é um aparato dentro de um sistema de correlações. A questão é como transformar formas organizativas em espelhos, e quais podem ter esta potência em cada momento histórico. E, mais do que isso, quais espelhos fazem convergir as forças sociais na direção das transformações que queremos.