Por Marcelo Tavares de Santana [1]

Não, o título não é uma aceitação de algo considerado inevitável, nem uma tentativa de chamar a atenção; simplesmente pareceu uma boa questão escrita numa ordem interessante. Apesar de talvez ser um daqueles textos que põe mais questões sem nenhuma resposta, até porque cada um de nós precisa tomar suas decisões, no final colocarei minha escolha de “big brother”. Antes disso, algumas histórias serão apresentadas e algumas outras questões também.

Ainda na primeira década deste século, estava fazendo uma cobertura de um protesto que ocorreu na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, e enquanto uma colega filmava as ações policiais, fiquei fazendo a segurança da cinegrafista observando o ambiente. Ela começou a filmar uma revista policial e observei que distante um outro policial estava recebendo alguma ordem onde seu superior apontava para nós. O policial se aproximou e ficou na frente da câmera, impedindo a filmagem, esticou o braço e disse “fiquem afastados para sua segurança”. A cinegrafista ia para a esquerda e para a direita tentando fazer a filmagem da revista e o policial acompanhava impedindo sua visão, quando de repente um dos policiais que estava fazendo a revista disse em voz alta “deixa eles filmarem”, demonstrando indignação com a cena. De fato, não havia motivo para obstruírem a filmagem pois a revista foi muito respeitosa, não encostaram nas pessoas nem em seus pertences, os policiais apontavam para os compartimentos das bolsas e mochilas pedindo para os próprios manifestantes abrirem e mostrarem o que tinha para avaliarem se tinha algo perigoso. Sempre que lembro do policial que ficou indignado com a obstrução da filmagem, torço para que esteja bem e que tenha conseguido manter esse espírito de transparência das ações dos agentes públicos para com a sociedade, mesmo porque as políticas de transparência ajudam os funcionários públicos que agem de acordo com a Lei.

Segunda história, um professor natural da China me contou em 2018 ou 2019 um caso onde a polícia chinesa usou seu sofisticado sistema de segurança pública para recuperar as economias de um idoso; esse caso estava relatado num jornal em chinês que ele recebe em São Paulo. Conforme me explicou, há muitos idosos na China que têm o hábito de andar com dinheiro em espécie por ainda não estarem acostumados com novas tecnologias e um deles teve furtado um volume grande de dinheiro numa estação de trem, era praticamente tudo que ele tinha de economias. Em duas horas, devido às tecnologias de reconhecimento facial, o ladrão foi detido numa outra estação de trem distante do local do furto e o dinheiro foi devolvido ao idoso. Ou seja, o furto tinha sido captado pelo sistema de segurança com qualidade suficiente para identificar o contraventor.

Mais algumas histórias curtas de vivências reais. Em Berlim, 2011, passeando tarde da noite com um casal e amigos, eles disseram que lá poderíamos andar sozinhos às três da madrugada que nada de ruim aconteceria. Em Santiago, 2018, conheci alguns chilenos que já tinham morado no Brasil, inclusive em São Paulo, e conversando sobre segurança um deles disse que o Brasil tinha problemas de país grande indicando que não era um demérito ter uma segurança pública mais problemática que lá; em Buenos Aires ouvi opiniões parecidas. Não sou habilitado para fazer discussões sociológicas sobre quaisquer das três nações, mas arrisco destacar que as ditaduras severas por que passaram (não que a nossa tenha sido branda) ajudou a contribuir para que tivessem um grau de escolarização suficiente para contribuir direta ou indiretamente na segurança pública, é como se a dor da ditadura fosse diretamente proporcional ao tanto que estudaram para não passarem por tal situação novamente. Para finalizar, exemplos de usos vigilantistas e ilegais podem ser encontrados ao pesquisarmos o caso denunciado por Edward Snowden, envolvendo as agências estadunidenses CIA e NSA (2013), a violação do painel eletrônico do Senado brasileiro pelos então senadores Antonio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda (2001), entre outros.

Outro elemento para discussão é o conceito de juiz de garantias que recentemente foi considerado obrigatório pelo Supremo Tribunal Federal e deve ser implementado no Brasil até agosto de 2024. Atualmente no processo penal brasileiro, um Juiz A, que participa da fase de investigação e coleta de provas, também é responsável pelo julgamento, ou seja, portanto o Juiz A avalia as provas em dois momentos, investigação e julgamento, assim como o Juiz B e demais. Na implementação do juiz de garantias, num processo o Juiz A participa da investigação e o Juiz B do julgamento, e num outro processo inverte, com o Juiz B na investigação e o Juiz A no julgamento, de modo que não se faz necessário aumentar a força de trabalho, todo processo vai ter dois juízes participando num método que promova mais qualidade ao processo e mais garantias ao réu, demandando apenas organização para isso; particularmente, não entendo como alguém pôde resistir a uma ideia simples que é utilizada em países mais desenvolvidos.

Para completarmos a lista de elementos para reflexão, temos diversos equipamentos e técnicas que podem nos aproximar cada vez mais do “big brother” criado por George Orwell no livro 1984. A primeira técnica é o reforço publicitário de ideias ao estilo nazista, onde foi defendido que uma mentira repetida mil vezes viraria uma verdade, assim podemos receber reforços de que câmeras e drones são “fundamentais” para a segurança pública enquanto as condições de trabalho e treinamentos de agentes públicos de segurança são deixados em segundo e terceiro plano. Os equipamentos tratados no livro 1984 hoje podem ser os mais diversos possíveis: câmeras, drones, registros de GPS, registros telefônicos, registros de Internet, grampos, etc. E como lidar com o reforço publicitário e esses equipamentos que podem registrar massivamente nosso cotidiano? Eles podem ter usos legítimos e ser bem usados por agentes públicos e até os protegerem; uma câmera no corpo do agente pode inclusive protegê-lo de receber uma ordem abusiva. Assim como o juiz de garantias, a possibilidade de outro funcionário público poder ver uma gravação de trabalho só vai ajudar na execução do mesmo, na transparência e até na proteção do agente público; até o momento desconheço desvantagem da tecnologia em si, a grande questão é sempre como fazem uso dela.

A ideia de “big brother” hoje se afasta um pouco das ideias do livro 1984 e pode ser o nome dado a qualquer conjunto de tecnologias que permita um registro massivo da vida cotidiana de uma ou mais pessoas. Mas e se esse grande irmão estivesse voltado para registro do trabalho dos agentes públicos teria outro nome? Talvez. E se fosse usado somente dentro da Lei, ajudando a resolução de crimes, poderia ser um “big brother” do bem? Definitivamente, não. Não cabe aqui discutir o quanto o “do bem” é um conceito subjetivo, a grande questão é que as tecnologias atuais não são criadas com a diretriz que chamamos de Privacy by Design (privacidade por projeto), com exceção da urna eletrônica brasileira, sendo ela a prova material de que tecnologias projetadas para privacidade são plenamente possíveis. Mais importante que tecnologias para privacidade e segurança é o Direito à Informação sobre o que são essas tecnologias, qual o protocolo de uso delas, e que essa informação seja inteligível por qualquer um que completou o ensino obrigatório. Como costumo dizer sobre a transparência de contas públicas, qualquer estudante que termine o Ensino Médio tem que conseguir interpretar como nosso dinheiro é gasto. Se isso não acontece, ou não há transparência, ou a escolarização está ruim. Não há forma de termos um “big brother”, seja voltado para sociedade, seja voltado para o Governo, que seja usado de forma moral e ética sem que a própria sociedade entenda o que essas tecnologias fazem e como são usadas; não adianta ser só legal, dado que as leis podem ser mal escritas ou feita com interesses de grupos particulares.

Não há muito o que fazer se a maior parte da sociedade for induzida ao erro, e para evitar isso escolarização e informação honestas são imprescindíveis. Nessa coluna temos textos que tratam de técnicas que podem reduzir as chances de sermos vítimas de crimes ou de governos autoritários, mas às vezes precisamos sair da discussão de técnicas individualizadas e pensarmos de forma coletiva. Para se proteger de abusos com as tecnologias de “big brother”, é preciso que a maioria da nação se envolva na fiscalização de governos, em todas as esferas, vendo contas, acompanhando os três poderes, para com isso melhorar a cada cobrança o uso das tecnologias pelos governos em prol do bem-estar social. Em outras palavras, os assuntos aqui não visaram discutir sobre táticas, mas dar elementos para uma visão estratégica de que sociedade será preciso no futuro.

O “big brother” que eu escolheria não existe hoje, mas pode existir facilmente e seria um onde todos os processos e equipamentos tivessem Privacy By Design, fossem feitos com tecnologias livres, tivessem dados sempre criptografados que poderiam ser acessados somente com as chaves criptográficas de ao menos dois agentes públicos, sendo um deles um juiz, e que todo dinheiro público investido nele também fosse investido em transparência e dados abertos, na proporção de um para um; para cada milhão em equipamentos de segurança pública gastos, um milhão para transparência e dados abertos investidos como forma de educação cidadã. Particularmente, creio que esse é um bom esquema para que processos e tecnologias cada vez mais sejam uma escolha verdadeiramente pública (do povo) e menos uma escolha de alguns eleitos e seus fornecedores.

Apesar de ainda ser muito novo e ainda incerto, é preciso começar a estudar o Privacy By Design para aprimorarmos essa questão. Assim dessa vez abaixo estão sugeridos estudos mais estratégicos para nossas discussões futuras. Segue sugestões de estudo:

  • Semana 1: leia o texto Privacidade desde a concepção [2];
  • Semana 2: procure iniciativas de educação fiscal de teu interesse [3], recomendável que sejam de órgão como Ministérios Públicos, que sejam projetos de Estado e não de Governo;
  • Semana 3: tente adotar alguma campanha ou gasto para acompanhar por redes sociais de forma regular e equilibrada com outras tarefas da vida;
  • Semana 4: divulgue a amigos e familiares o que tem acompanhado.

Seja qualquer for o melhor caminho para um uso responsável das tecnologias de segurança (ou vigilância), parece ser imprescindível que ele passe por uma especialização do conhecimento coletivo sobre o assunto, melhor escolarização da sociedade e melhor auditabilidade dos agentes públicos em geral, até que um dia se possa escolher inclusive não ter equipamentos desse gênero registrando a sociedade.

Qual seria o teu “big brother”?

Bons estudos a todos!

Notas

[1] Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo.

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Privacidade_desde_a_concep%C3%A7%C3%A3o

[3] https://www.educacaofiscal.sp.gov.br/Paginas/Links-Uteis-BCK.aspx

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