Por M. Ricardo de Sousa
1 – Como libertário sou radicalmente crítico do uso do terrorismo seja por Estados seja por grupos e fracções armadas, definindo-se o terrorismo como o uso de violência indiscriminada contra pessoas comuns visando obter a intimidação ou submissão dessas pessoas num dado conflito político. O uso da violência revolucionária e da acção directa é um problema distinto que deve, no entanto, levar em conta os objectivos e alvos, na luta social, que devem ser necessariamente membros das classes dominantes e estruturas armadas que as servem.
2 – No conflito Israel / Palestina deve ser levado em conta a existência de duas comunidades, divididas elas também em classes e grupos com interesses conflitivos, não se podendo negar o direito das comunidades palestinianas às suas terras e organizar livremente as suas instituições mesmo defendendo, como libertários, que as instituições Israelistas e Palestinianas não devem ser submetidas às determinações religiosas e devem consagrar todos os direitos e liberdades conquistadas pelos povos. A coexistência desses dois povos e culturas semitas não é compatível com a ocupação e expansionismo terrorista sionista, nem com uma política de expulsão de cada uma dessas comunidades desses territórios como defendem sectores muçulmanos em relação aos judeus e sectores fundamentalistas judaicos em relação aos palestinianos. Só podendo ser levado em conta, neste momento e a curto prazo, as decisões históricas da ONU, dos dois Estados, mesmo sendo nós contra a existência de Estados como solução definitiva para o auto-governo dos povos.
3 – Não é compatível com qualquer posição libertária a defesa de grupos religiosos fundamentalistas em nome de qualquer nacionalismo ou anti-imperialismo, temos de considerar esses grupos armados fundamentalistas como inimigos de todos os povos, mesmo daqueles em nome do que dizem combater. Grupos como o Hamas, Daesh e Al-Qaida, e similares, são assumidamente fundamentalistas religiosos, reacionários e fanáticos milenaristas que não podem merecer qualquer solidariedade das correntes libertárias que se situam nas antípodas do seu pensamento e prática e partilham uma tradição da luta social e operária anti-clerical, anti-capitalista e anti-estatista.
Caro M. Ricardo de Sousa,
Lendo o seu texto, fico perplexo ao constatar que afirmações como as suas, que me parecem óbvias, sejam agora tão raras naquilo a que ainda se chama extrema-esquerda. O nacionalismo foi sempre muito difundido no nosso meio, isto não é novidade. Mas já não se trata hoje de difusão, trata-se de hegemonia absoluta. A perspectiva dos conflitos entre classes foi posta de lado e substituída pela geopolítica. Como, e porquê, foi possível que naufragasse no nacionalismo e na geopolítica tudo o que era específico da extrema-esquerda? Como se pode falar de Israel sem analisar a composição social daquele país e daquela economia e a diversidade dos interesses de classe? Como se pode mencionar o Hamas sem analisar o seu carácter ditatorial, a sua estrutura fascista, o profundo reaccionarismo da sua visão social e, agora, neste momento, a forma ignóbil como usa a população civil de Gaza enquanto escudo protector? Como pode a extrema-esquerda não ver que a mesma lógica que a leva aplaudir o Hamas com o argumento de que luta contra o apartheid sionista pode levar a aplaudir o governo de Israel com o argumento de que combate o fascismo do Hamas? Como pode a extrema-esquerda não ver que a indignação perante a sistemática violência racista do Estado de Israel a deveria levar a indignar-se perante o racismo múltiplas vezes afirmado e demonstrado pelo Hamas? O que caracterizou a extrema-esquerda, em especial os libertários, foi a noção de que não existiam apenas dois campos em luta, mas ainda um outro campo, de carácter diferente, com formas de organização diferentes e, por isso, com outro tipo de objectivos. Como pôde essa outra perspectiva desaparecer do horizonte? Uma extrema-esquerda que quase unanimemente aplaude o Hamas representa a hegemonia do fascismo sobre essa extrema-esquerda.
Ricardo & JB: concisos e preci(o)sos – comme il faut.
Antes fosse só a extrema-esquerda que se comportasse desse jeito. Quase todo o espectro que genericamente se chama de esquerda se comporta assim. Funciona assim: o que vai contra os interesses americanos eu apoio, caso contrário eu condeno. É assim com uiuguris, por exemplo, com a Ucrânica, com a Palestina etc. Tudo de acordo com a conveniência geopolítica da vez. Uma busca da tal multipolaridade. E as classes sociais? Essas nem existem na análise desse pessoal. QUando muito a invocam para que elas realizem os designios da nação. Aqui jaz uma esquerda.
Caros, aqui onde estou (Santa Catarina, Brasil) não vejo essa esquerda “que quase unanimemente aplaude o Hamas”. Vi um vídeo, lamentável, de um ato em Brasília em que alguém grita “Viva o Hamas”. Vi algo do PCO, que há anos é uma piada de mau gosto. Além disso, alguns textos não diferenciam a Resistência Palestina e o Hamas, algo discutível e discutido. O que mais aparece diante de mim é um silêncio ensurdecedor.
A pergunta é sincera: onde ocorrem esse aplausos ao Hamas?
O lamentável comportamento da esquerda anti-capitalista, e até de libertários, não está só na apologia directa, e aberta, do Hamas e do fundamentalismo religioso islâmico, poucos tem coragem de o fazer. Mas basta ler os textos publicados, e os execráveis comentários, no Brasil, Portugal e em outros países, onde predomina a omissão sobre o terrorismo do Hamas e sobra o discurso a admitir que todos os civis, e pessoas comuns, israelitas e judeus se tornaram alvos militares aceitáveis, até os jovens da Rave que não deviam estar no deserto a divertir-se com a sua música ao lado da Faixa de Gaza. Está tudo dito! Saúde e liberdade.
MRS
Prolongando o pertinente comentário de M. Ricardo de Sousa, recordo que nas enormes manifestações que têm ocorrido na generalidade dos países islâmicos o aplauso ao Hamas parece unânime. No entanto, dada a evolução política que ocorreu nesses países nas últimas quatro ou cinco décadas, desapareceu ali qualquer esquerda significativa. Todavia, na Europa e também no Reino Unido os partidos situados mais à esquerda têm expressado a sua simpatia pelo Hamas. Com frequência esse aplauso é explícito, mas sucede também que ele se cubra com o véu da hipocrisia, quando são implicitamente associados o Hamas e a resistência do povo palestiniano contra o apartheid sionista. Podia evocar o caso do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda, para além de uma variedade de grupúsculos menores, mas o exemplo da França é especialmente revelador, porque nesse país a esquerda é significativa e porque a população muçulmana ronda ali os cinco milhões. Ora, a figura mais importante da actual esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, tem-se recusado a classificar o Hamas como uma organização terrorista, ao mesmo tempo que essa esquerda, que reage tão vivamente logo que mal se tocam os direitos dos LGBTIs, em nada se incomoda com a frequência com que as mulheres muçulmanas em França usam a burka nem se preocupa com a opressão de que as mulheres são vítimas entre os tradicionalistas islâmicos. Seria bom que todos aqueles que agora vitoriam o Hamas e o assimilam ao conjunto do povo palestiniano, esquecendo-se da ideologia que anima essa organização e da prática que ela prossegue, se lembrassem do nome de Samuel Paty, para já não falar do Charlie Hebdo. Mas a memória desta defunta esquerda é selectiva e é curta.
A extrema-esquerda em França, neste momento, é atingida por uma espécie de hiper-racionalismo: quero com isto dizer que, perante um acontecimento de horror indescritível, mostra uma total falta de empatia quando confrontada com os massacres perpetrados pelo Hamas em Israel, as crianças decapitadas (se a informação for verdadeira), etc. O seu “hiper-racionalismo” consiste em contrastar os recentes acontecimentos trágicos com os factos rigorosos, ou seja, 75 anos de opressão israelita sobre a população palestiniana, que causaram muito mais mortes do que o ataque do Hamas de 7 de outubro.
O facto de, entre 2008 e 2020, terem sido mortos 5.590 palestinianos e 251 israelitas não é tido em conta pelos media e pelas autoridades, porque estes números representam uma “estatística”, enquanto as mortes de 7 de outubro foram reais. Estas “mortes reais” são amplamente utilizadas pelos media e pelas autoridades para justificar o apoio ao Estado de Israel, e qualquer pessoa que faça referência a estas estatísticas é acusada de ser antissemita e de justificar o ataque do Hamas.
Há um partido político de esquerda chamado “La France insoumise” que se recusa a descrever os recentes ataques do Hamas como “terrorismo”. As razões desta recusa são, na minha opinião, completamente idiotas, mas este partido mantém-se firme, apresentando argumentos totalmente inconsistentes. A única razão para a sua recusa em utilizar a palavra “terrorista” resulta, em minha opinião, do desejo dos dirigentes deste partido de não incomodar o seu eleitorado norte-africano, uma grande parte do qual, há que dizê-lo, se regozija com o atentado do Hamas.
De facto, os media e os detentores do poder querem evitar a todo o custo que a definição de terrorismo possa também ser aplicada aos Estados.
La “France insoumise” faz parte deste conglomerado de organizações de esquerda cuja razão de ser é opor-se à islamofobia: o Islão não deve ser criticado porque é a “religião dos oprimidos”: Assim, em 2019, houve uma manifestação contra a islamofobia organizada por iniciativa de uma organização anarquista francesa, a UCL, e de um partido “pós-trotskista” (o “Novo Partido Anti-Capitalista”) para a qual foram convidadas todas as organizações fundamentalistas islâmicas. A lista das organizações ou personalidades islamistas que tinham assinado este apelo foi publicada numa lista interna da Fédération Anarchiste, com um curriculum vitae de cada signatário, e o resultado foi consternante: a UCL tinha-se comprometido claramente com os inimigos de classe. Isto mostra a ambiguidade da relação da extrema-esquerda com o Islão, não sendo a islamofobia mais do que uma folha de figueira para o racismo anti-árabe, uma forma de “confessionalizar” o racismo anti-árabe.
As pessoas que hoje continuam a afirmar o direito dos palestinianos à sua terra chegam com trinta anos de atraso. A política de colonização sistemática da Cisjordânia está agora tão avançada que não resta praticamente nenhuma terra aos palestinianos, apenas algumas parcelas dispersas e sem continuidade. Quanto à Faixa de Gaza, foi cedida aos palestinianos no dia em que os israelitas se aperceberam de que era incontrolável. Leïla Shahid, antiga delegada-geral da Palestina em França e ex-embaixadora da Palestina na UE (2005-2015), escreve: “Há um sentimento de profunda tristeza. Estava destacada em Paris quando os Acordos de Oslo foram assinados. Acreditei neles. Havia um pequeno raio de esperança em ambas as sociedades que não se manteve. É uma confusão terrível. A guerra dura há 56 anos para os palestinianos, em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nos campos de refugiados. Sou pessimista. Penso que o que vai acontecer é a anexação dos territórios que ainda não foram anexados. Já não há mais territórios para criar um Estado palestiniano”.
Em 1998, escrevi um livro, “Israël-Palestine, ordre mondial et micronationalismes”, no qual antecipava as observações de Leila Chahid: dizia, em substância, que o frenesim da apropriação israelita dos territórios palestinianos levaria a que os palestinianos não tivessem mais nada a fazer senão exigir a cidadania israelita. Nesse dia, o sonho sionista estará morto e serão os próprios israelitas que o terão destruído. Muitos palestinianos estão conscientes deste facto, que é também constatado pelos militares que, devo dizer, são geralmente mais lúcidos do que os políticos.
Existe uma forma de fusão entre israelitas e palestinianos no domínio económico em muitas áreas. Por exemplo, os palestinianos que são empreiteiros de construção ganham muito dinheiro ao contribuírem para a construção de edifícios para os colonos israelitas na Cisjordânia, o que é um verdadeiro paradoxo.
Devo acrescentar que é difícil raciocinar sobre a questão israelo-palestiniana em termos de luta de classes. Não tenho a certeza de que os trabalhadores israelitas pensem em termos de solidariedade operária com os seus camaradas palestinianos. Em 1993, o secretário do sindicato dos trabalhadores da construção civil, Shlomo Dahan, pediu ao Ministro das Finanças que não cedesse ao pedido de aumentar o número de palestinianos a trabalhar em Israel e que não autorizasse o regresso de milhares de palestinianos aos canteiros de construção . Este valente sindicalista explicou que se tratava de uma oportunidade única para o país ‘israelizar’ o sector da construção e que seria uma loucura não a aproveitar devido às dificuldades iniciais encontradas”. (Jerusalem Post, “Le bouclage des territoires et les prix de l’immobiier” Seleção semanal, 14-20 de abril de 1993). É certo que esta informação está um pouco desactualizada, mas não creio que as coisas tenham mudado muito. De facto, não existe um proletariado israelita. Os israelitas são o pequeno pessoal de enquadramento de um proletariado constituído essencialmente por palestinianos e por cidadãos do Terceiro Mundo.
Relativamente à questão ucraniana, estou um pouco confuso. Os anarquistas tendem a pensar na guerra como se fosse uma abstração: são contra A guerra. A este respeito, o caso de Kropotkin é exemplar. Ele causou uma espécie de trauma ao tomar uma posição a favor da Entente contra a Alemanha, mas essa posição raramente foi realmente analisada. Foi o que tentei fazer em “Kropotkin e a Grande Guerra” publicado em 2014. Distingo entre aquilo a que chamo internacionalistas pragmáticos e internacionalistas proclamatórios.
Os proclamadores são aqueles que, como Malatesta, têm uma posição de princípio intangível e não se afastam dela. Os proclamadores têm necessariamente sempre razão, uma vez que se mantêm ao nível dos princípios. Por exemplo, Malatesta considerava que a ocupação de uma parte de França pelas tropas alemãs era preferível à guerra, porque permitiria a continuação da propaganda revolucionária. O raciocínio de Malatesta ia ao ponto de dizer que a eventual derrota da Alemanha levaria os patriotas alemães a procurar vingança, o que implicitamente sugeria que devemos contentar-nos com uma derrota francesa! (Malatesta, Réponse au manifeste des Seize, “Anarchistes de Gouvernement”).
Era incrivelmente ingénuo. Aplicada à Ucrânia, significaria que os anarquistas ucranianos teriam de proclamar a sua oposição à guerra e aceitar a ocupação russa, imaginando que poderiam envolver-se na luta de classes.
A questão da oposição à guerra tinha surgido originalmente em França, após a guerra de 1870-1871, que a França perdeu. Todos sabiam que os termos dessa derrota colocavam o problema de uma nova guerra e os trinta anos que se seguiram foram uma sucessão de escaramuças preparatórias. A CGT francesa, no seu período sindicalista revolucionário, tentou várias vezes chegar a um acordo com os socialistas alemães para convocar simultaneamente uma greve geral em caso de declaração de guerra. Os dirigentes da CGT depararam-se com uma recusa sistemática e desdenhosa dos socialistas alemães em discutir o assunto. Trato deste assunto no meu livro sobre Kropotkin, cujo subtítulo é: “Os anarquistas, a CGT e a social-democracia face à guerra”. Se a direção da CGT acabou por ceder, na medida em que a convocação de uma greve unilateral não fazia sentido. Além disso, em 1912 tinha organizado uma greve geral contra a guerra, apesar da oposição de uma componente reformista muito forte no seu seio, e tinha sofrido uma terrível repressão estatal. Esta iniciativa não teve qualquer contrapartida na Alemanha. A partir daí, um quarto da França, no nordeste, mais industrializado e que inclui também minas de carvão e de ferro, foi ocupado pela Alemanha e as tropas alemãs cometeram actos de violência incríveis contra a população.
Existe aqui uma equivalência com o Donbas ucraniano. Do ponto de vista de Kropotkin, o problema era o da libertação nacional. É significativo que tenha escrito o “Manifesto dos Dezasseis” em 1916, não em 1914, no início da guerra. Nessa altura, a França estava em vias de perder a guerra e, do seu ponto de vista, isso era inaceitável, porque ele pensava que, do ponto de vista da civilização, apesar de todos os defeitos da sociedade francesa, uma vitória alemã traria um manto de trevas sobre a Europa durante gerações. Também neste caso, podemos imaginar as consequências de uma vitória russa na Ucrânia.
Na Ucrânia, os anarquistas estão a participar na guerra contra a Rússia, mas, na minha opinião, isso não deve ser exagerado. Vemos fotografias de anarquistas armados até aos dentes e em posturas guerreiras, mas não parece haver mais de uma centena deles, e a maioria não está em unidades de combate. Mas isso é uma questão de princípio.
Em princípio, não creio que faça sentido colocar as duas partes em conflito lado a lado. Do mesmo modo, proclamar que os proletários russos e ucranianos devem unir-se contra o seu Estado é certamente correto em princípio, mas totalmente irrealista. Penso que a atitude que devemos ter é reconhecer que a Rússia é o agressor, denunciar o contexto imperialista da guerra em que a responsabilidade é múltipla e largamente partilhada, e deixar aos anarquistas ucranianos a escolha da sua própria estratégia: recordemos que o congresso de Saint-Imier de 1872 concluiu que cada federação membro era livre de escolher o seu próprio caminho para a emancipação. Vamos dar aos anarquistas ucranianos a mesma liberdade, e faremos um balanço dessa escolha quando chegar a altura.
Por fim, vi um comentário do João Bernardo no site “passapalavra”, onde ele diz que “A perspetiva dos conflitos entre classes foi posta de lado e substituída pela geopolítica”, lamentando que a extrema-esquerda se tenha “afundado no nacionalismo e na geopolítica”, como se pensar em termos de geopolítica fosse antagónico à luta de classes (salvo erro).
Penso que é absolutamente necessário analisar os acontecimentos a partir de uma perspetiva geopolítica, porque de outra forma não podemos compreender a situação em que nos encontramos, que é o resultado de uma série de determinações a nível internacional. Na minha opinião, um dos maiores geopolíticos do século XIX foi Bakunin: o seu livro Estatismo e Anarquia não é outra coisa senão uma reflexão geopolítica sobre o mundo do seu tempo, sobre o equilíbrio de poder entre os Estados e as perspectivas da luta de classes.
Infelizmente, o movimento anarquista tem demasiada tendência para se refugiar em perspectivas estreitas.
Resposta a René Berthier
Podemos realmente comparar o estado do movimento operário nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e as suas pretensões com o que se passa atualmente ? O nível das análises e das posições é equivalente à sua inexistência. Estaremos nós realmente mais interessados na geopolítica? Ela está sempre ligada às nações. O nosso terreno não tem mais a ver com classes em luta do que com entidades que formam um corpo por exclusão?
Um antigo membro da federação anarquista francesa.
Muitos dessa esquerda atual se vivessem antes da formação do Estado de Israel aplaudiriam quando a IRGUN popularizava o uso de carros bomba no Oriente Médio talvez por estarem enfrentando o imperialismo britânico na região, e os arabe-palestinos eram apenas danos colaterais.
De fato haviam socialistas não só que apoiavam a IRGUN como em suas fileiras, onde esses estariam quando a IRGUN se dissolvia na LIKUD e na própria IDF.
O Livro de Mike Davis, Buda’s Wagon, sobre o uso do carro bomba na história, de como o atentado de vítmas aleatórias é evidentemente fascista e só prejudicou qualquer objetivo a esquerda quando essa decidiu usá-lo (ou apoia-lo), me parece fundamental, a trájetoria do iniciador da tradição de explodir carros ou carroças, Mario Buda, de anarquista a colaborador da policia de Mussolini, deveria também dar pistas.
Caro René Berthier,
Temos que saber distinguir a capacidade de analisar a geopolítica – sem a qual não temos instrumentos para criticar os movimentos daqueles que guiam a sua ação pela geopolítica, à esquerda e à direita -, do estabelecimento de estratégias, táticas e objetivos políticos orientados pela geopolítica, não pela luta de classes. Não me parece que alguém aqui tenha defendido a ignorância geopolítica como método. É sintomático que Bakunin tenha sido citado, pois trata-se de alguém que, diante dos Estados-Nação, queria destruir os Estados e manter as nações e as nacionalidades. E não se tratava de mera defesa da “autodeterminação dos povos”. Bakunin naturalizou as nacionalidades, como se a sociedade futura, socialista, pudesse se construir sobre tais bases “nacionais”. Mas, e as classes?
Irado, não sei se percebo o que está a dizer. Aprova o facto de Bakunin querer “destruir os Estados”, mas não aprova o facto de ele querer “manter as nações e as nacionalidades”? Também não percebo o que quer dizer quando afirma que ele queria “naturalizar as nacionalidades”: quer dizer “legitimar” as nacionalidades?
Bakunin distingue entre “união social” e “unidade política”. A união social, diz ele, é “o resultado real da combinação de tradições, hábitos, costumes, ideias, interesses actuais e aspirações comuns, é a unidade viva, frutuosa e real. A unidade política, o Estado, é a ficção, a abstração da unidade; e não só esconde a discórdia, mas também a produz artificialmente onde, sem esta intervenção do Estado, a unidade viva não deixaria de existir.” (Bakunin, Circular aos meus amigos em Itália,ed. Chamlp libre, II, 297.)
O direito dos povos de disporem de si mesmos é muitas vezes o direito de uma minoria dispor dos povos por meio de um Estado. Resta que, estabelecidos os princípios gerais de uma posição anarquista sobre a questão nacional, será necessário determinar nossa prática diante dos problemas colocados por situações reais de opressão nacional, situações que não podemos descartar e negligenciar sob o pretexto de que “eles querem criar um Estado”.
Bakunin foi o primeiro a dizer que a questão nacional e a questão social estavam ligadas e, acima de tudo, foi o primeiro a dizer que a questão nacional só poderia encontrar uma solução no quadro de uma resolução global da questão social. Ele nunca disse que as nações e os povos eram conceitos desprovidos de significado ou justificação.
Todo pueblo, todo individuo es involuntariamente lo que es, y tiene derecho indudablemente a ser él mismo:
“É nisto que reside todo o chamado direito nacional. Mas daí não decorre que um povo, um indivíduo, tenha o direito ou o interesse de fazer da sua nacionalidade, da sua individualidade, uma questão de princípio e que deva arrastar esta cadeia toda a sua vida”:
“Pelo contrário, quanto menos pensarem em si próprios, quanto mais se impregnarem da substância comum à humanidade no seu conjunto, tanto mais a nacionalidade de um e a individualidade do outro adquirem relevo e sentido.” (Etatisme et anarchie, Champ libre, IV, 238.)
Tenho a impressão de que o seu medo é que, na medida em que Bakunin reconhece o facto nacional como uma realidade sociológica (“uma combinação de tradições, hábitos, costumes, ideias, interesses actuais e aspirações comuns”, etc.), está a evacuar o critério de classe. Não é de todo o caso, e há muitos exemplos que o provam. Por exemplo, dirigindo-se aos operários eslavos do Império Austríaco, disse-lhes que, se não tivessem outra escolha, deveriam aderir às organizações operárias alemãs, nas quais “partilham o destino comum dos seus irmãos de trabalho, de convicções e de existência, alemães ou não, não faz diferença”, e não às organizações nacionais eslavas, à frente das quais “estão os seus exploradores e opressores quotidianos, burgueses, industriais, comerciantes, especuladores, jesuítas de batina e proprietários de imensos latifúndios…”.
O reconhecimento do “facto nacional” (desde que não seja arrastado como uma cadeia) é apenas o reconhecimento da diversidade das culturas, o que é uma riqueza, não é um obstáculo à visão da luta de classes.
Caro René,
Em meu comentário, Bakunin era uma questão secundária, mas sendo você um bakuninista com profundo domínio do tema, entendo que tenha considerado importante aprofundar a questão. De fato, não tenho medo que Bakunin deixe de lado as classes em favor da questão nacional, a minha questão foi dirigida a uma aparente ênfase de sua parte em relação à geopolítica, não ao pensamento de Bakunin. Sobre isso sintetizei o que penso no próprio comentário anterior. Embora eu considere um tanto confusa a concepção de classe desse revolucionário russo.
Mas, como você enveredou por essa discussão, tentarei esclarecer melhor o que eu quis dizer. Sobre Bakunin “naturalizar” a nação, sim, usamos esse termo aqui como sinônimo de “legitimar”, embora tenha um sentido ainda mais profundo. Em sua intervenção no Congresso da Paz, em 1867, Bakunin afirmou o seguinte: “A Liga reconhecerá a nacionalidade como um fato natural; tendo incontestavelmente direito a uma existência e a um desenvolvimento livres, mas não como um princípio, todo princípio deve apresentar o caráter da universalidade, e a nacionalidade é, ao contrário, um fato exclusivo, separado” (Federalismo, socialismo e antiteologismo, São Paulo: Intermezzo, 2015, p.25). Aqui fica bem claro o sentido de “naturalizar”, nas palavras do próprio Bakunin. E ele segue: “O direito de nacionalidade nunca poderá ser considerado pela Liga a não ser como consequência natural do princípio supremo da liberdade (…)” (idem p.26).
Bakunin ainda defende que existe um “patriotismo ruim”, aquele que “tende para fora da liberdade”, o que nos faz acreditar que exista, para Bakunin, um “patriotismo bom”, provavelmente aquele coerente com o “princípio da liberdade”. Outro ponto interessante é o fato de Bakunin separar, ou acreditar ser possível realizar tal separação, entre “nação” (país) e Estado. Pois, “do fato de um país ter feito parte de um Estado, ainda que se tivesse unido livremente, não implica para ele obrigação de permanecer sempre ligado a este Estado” (idem p.24). Além disso, Bakunin jamais admitiria (eu também não o faria) que ainda foi um precursor da União Europeia, ao iniciar sua intervenção em 1867 defendendo a constituição dos “Estados Unidos da Europa”, lógico desde que isso ocorresse “em nome dos nossos princípios”.
Estranhamente, Bakunin parece desconhecer a gênese histórica dos Estados-Nação modernos, embora a tardia unificação alemã e italiana só tenha ocorrido 4 anos após esse seu pronunciamento. Justamente onde as noções de “cultura” e “nação” tiveram consequências catastróficas, meio século depois. Não há nada de “natural” no surgimento das diferentes línguas, costumes, enfim, culturas, tampouco na organização desses elementos na formação de nações, mesmo que ainda sem Estados. Assim como na manipulação desses elementos na criação de um Estado-Nação. Tenho lido críticas “decoloniais” aos Estados-Nação modernos – justamente por serem “modernos”, “ocidentais”, “racionais”, “etnocêntricos”, etc. -, cujas consequências políticas são, nos casos mais extremos, um quase retorno ao tribalismo. Se eu fosse um “decolonialista” com simpatias anarquistas, teria nas concepções acima citadas um grande arsenal teórico, a despeito das interpretações anarquistas clássicas, que animaram importantes episódios da luta de classes, pelas quais nutro profundo respeito. Infelizmente, há cada vez mais anarquistas com simpatias “decoloniais”.
Temos uma afirmação ainda mais problemática, em que Bakunin defende que a Liga devesse “(…) proclamar de viva voz suas simpatias por toda insurreição nacional contra qualquer opressão, seja estrangeira, seja interna (…)”. Lógico, desde que “em nome das massas populares” e nunca com “a intenção ambiciosa de fundar um Estado poderoso” (idem p.25). Nessa passagem, o Hamas estaria legitimado?
Enfim, espero ter sido mais claro, dentro dos limites deste espaço.
Saudações,
Ou seja, “como libertário”, não és libertário de todo, além desse apelo a uma qualquer abstracta tradição comum, em nome da nuance e da transparência erguendo muros opacos sobre a experiência directa, em termos abundantes da geopolítica analítica redutora, para outra polémica libertária do mês.
LIVRE ARBÍTRIO
taxação categórica teria perdido menos se, futurível opcional, optara por um estímulo sucedâneo
ulisses: de acordo