Inspirados no “Kapital!” da Boitempo, e procurando consolidar seu nicho de mercado entre a esquerda, é a vez do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra lançar um jogo de tabuleiro com uma “mensagem de luta”. O item em promoção está custando R$ 210,00. Haverá buraco mais embaixo para se estar? Passa Palavra
Sim! Às vezes, dois buracos: o do jogador desses jogos e o do cliente que compra esses jogos e presenteia um terceiro. Às vezes, um buraco: o do cliente jogador.
Eu já tô de olho no meu, adoro joguinhos e buracos.
Os zapatistas também tem jogo de tabuleiro. Também não é de graça. Imagino que seja uma forma de arrecadar. https://viajezapatista.eu/pt-pt/jogo-de-mesa-autonomia-zapatista/
Não achei nada moralmente errado com isso, por princípio. Já participei de movimento que vendia camisa para se financiar.
Não se trata de vender bonés para arrecadar fundos. Trata-se de vender um jogo para brincar às revoluções. A publicidade que eu recebi anunciava o seguinte:
Olha só essa novidade!
Para celebrar os 40 anos de fundação, o MST em parceria com a Mundukide e a Expressão Popular lançam o jogo de tabuleiro: Rumo à Reforma Agrária Popular
O objetivo é fazer com que os participantes lutem e conquistem juntos a Reforma Agrária Popular
Ao longo da partida, diversos obstáculos que devem ser superados coletivamente e de forma cooperativa para concluir o objetivo final
Legal demais, né?
Com efeito, se o MST se converteu numa empresa, é natural que apresente a reforma agrária como uma brincadeira.
E ainda há quem faça distinções entre esquerda e direita, essas duas alas (complementares e nada antagônicas) do kkkapital.
Mano, acompanho o Passa Palavra há muito tempo.
Ao ler as últimas sessões do “Flagrantes Delitos”, parece que o Passa Palavra, tornou-se um vigário moral de todas as lutas.
Toda essa nossa discussão está atravessada por um problema de formação e má compreensão do método dialético. Muitas vezes, tentamos fazer análise materialista, mas cedemos à tentação jurídica, moralista e positivista, de, ora argumentar ad hominem contra os autores, ora de fazer juízo de valor sobre os fatos. Sucumbimos e compactuamos assim com a tradição judaico-cristã de imaginamos os portadores da razão e da verdade, o que, por sua vez, só nos isola da realidade e aumenta a nossa impotência práxistica. É sobre isso. Nossa impotência diante do mundo.!
Ou seja, estamos em um enorme buraco. Uma esquerda hegemônica e seus consortes pró-mercado e uma esquerda radical que não consegue dar uma resposta consequente prático-organizativa, se vê na posição de guru e vigia da moral e bons costumes.
Ascensão da direita do mundo deve-se muito a esses erros crassos.
Pedro, como seria “uma resposta consequente prático-organizativa” de uma “esquerda radical” que, ao ser formulada, se furte de uma reflexão sobre ética/moral?
Não acho moralista essa sessão do Passa Palavra.
Acho até mesmo que falta pensarmos um pouco mais sobre. Falta uma reflexão séria, consequente sim, a respeito de uma ética/moral que organize a prática diária da militância.
E mais, acho que quem acusa de moralista conteúdos como o desta postagem comete um erro grave. Um grave erro que agrada em muito político oportunistas com seus assessores igualmente oportunistas que, com a desculpa do tempo histórico desfavorável (que pela vontade e ação desses individuais permanecerá eternamente desfavorável aos mais exploravel e favorável a eles), vivem se engalfinhando por cargos eleitos e vagas em gabinetes. Para essas pessoas, o limite prático do debate moral é se o eleito deve repassar tanto ou nada de seu salário ao partido. E o limite semântico é o falso (e ultil) antagonismo moral entre eles e uma dita extrema direta. Na prática, o segundo janta com o patrão e o primeiro se prostitui por ele. É por isso que uma reflexão desse tipo é tema tão espinhoso. É por isso que a melhor forma de escapar é acusar de moralista quem tenta iniciar de alguma forma uma reflexão do tipo.
Financiamento, formas de organização, relação com o mercado, brincar de revolução, etc., tornaram-se questões morais para a esquerda anticapitalista, deixaram de ser materiais. Tudo isso em nome da dialética…
Camarada Liv,
Uma resposta: organizar a classe trabalhadora em seus locais e espaços de trabalho. Infelizmente a esquerda não faz isso.
E um dos motivos (de vários), a esquerda está mais presa e/ou preocupada em fazer um tratado de correção do intelecto do que pensar formas organizativas. Uma forma organizativa que possibilite uma quebra na organização já imposta pelo capital e seus gestores.
Não estou afirmando que não se faça debate sobre questões morais. Mas lembre-se, moralismo por moralismo a direita vai ganhar sempre de nós. Questões morais deve ser precedido por análises materialista rigorosas (por. Ex. As excelentes reflexões do prof João Bernardo sobre o MST e a ecologia), para não parecer desespero (desculpa o clichê), pequeno burguês. Essa nota é isso. Parece que está querendo conversar só para convertido.
Abraços
Camarada Pedro, vários pontos da tua resposta me chamaram atenção:
– Em “organizar a classe trabalhadora em seus locais e espaços de trabalho” vejo um pensamento anacrônico. Considerando que as mudanças do mundo do trabalho dispersaram os trabalhadores não há mais um local de trabalho, um lugar de encontro bem definido. E tampouco o virtual pode servir de espaço organizativo. Isso porque existe uma diferença qualitativa irremediável entre os vínculos virtuais e os presenciais (estes muito mais reais, fortes, firmes, potenciais). Por algum tempo tentar organizar os explorados a partir de um território (moradia) foi a forma encontrada para nós desviarmos do problema. Mas hoje é uma alternativa cada vez mais insuficiente. Vale a pena buscar o que a Isadora Guerreiro (que inclusive colabora com o Passa Palavra) anda dizendo sobre “aluguel como gestão da insegurança habitacional”.
Gostaria de propor aqui um cenário para refletirmos: Vamos acrescentar ao mundo do trabalho precarizado uma camada que tornará o cenário ainda mais apocalíptico. Sabemos que o sonho da casa própria, mesmo aquela baratinha do MCMV-E, é para poucos. Para casos de exceção que servem para desmentir a regra. E a regra é: explorado não é proprietário, e jamais será porque mesmo o MCMV-E é um contrato de financiamento com alienação fiduciária, ou seja, para o futuro o apartamentinho será por um bom tempo do banco, e da parte do precarizado o futuro é cronicamente incerto (taí os índices de inadimplência para provar). E se não é proprietário e não está morando na rua, é então um locatário. Frequentemente um locatário de algum puxadinho periférico. Agora vamos imaginar o seguinte: O explorado, que não tem um chão de fábrica para chamar de seu, que vive pingando de bico em bico, empreendendo a exploração de si mesmo em troca de quase nada, foi despejado de sua comunidade por uma política higienista de incentivo a parques ecológicos. Despejado e jogado onde, na rua? Na próxima comunidade? Não. Despejado e entregue ao patrão. Imagine que o capital arrumou uma forma de organizar os ativos até então dispersos em locações informais. Imagine que não exista mais o dono do puxadinho. O dono do puxadinho foi engolido por um landlord multifamily. Imagine contratos de locação atípicas (que não são resguardados pela lei do inquilinato pq a pasta-mãe será de grande para grande). Imagine agora todo um contingente populacional de explorados morando dois meses aqui, três meses lá, um mês acula. Pinga pinga de bico em bico. Pinga pinga de endereço em endereço. Eu sei, está confuso porque não é impossível trabalhar a exatidão científica que muitos aqui prezam na sessão de comentários. Mas fica pergunta: se a gente fizer conchinha com as mãos, vamos conseguir reter e organizar um contingente tão fluido e posto em movimento de forma tão dispersa?
– Em “Infelizmente a esquerda não faz isso” vejo uma confusão, de que esquerda estamos falando? Porque conheço uma esquerda (não vendida) que ainda não desistiu da tarefa.
– Em “a esquerda está mais presa e/ou preocupada em fazer um tratado de correção do intelecto do que pensar formas organizativas” eu retomo a pergunta que fiz no último comentário e que ainda não foi respondida: como seria “uma resposta consequente prático-organizativa” de uma “esquerda radical” que, ao ser formulada, se furte de uma reflexão sobre ética/moral?
– Em “Não estou afirmando que não se faça debate sobre questões morais. Mas lembre-se, moralismo por moralismo a direita vai ganhar sempre de nós” não vejo muito sentido. Você diz que até podemos debater questões morais para em seguida desqualificar qualquer qualquer reflexao moral que desse debate possa vir a surgir. Você faz isso quando não diferencia qualitativamente o “moralismo por moralismo”. Moralismo por moralismo, o meu é não tem a mesma qualidade que o moralismo de quem janta com o patrão. E mais, me parece que você subestima a força organizariva de um indivíduo anticapitalista rígido consigo mesmo, virtuoso e coerente em conduta diária (e eles existem, ainda vivos). Para fortalecer teu espírito, recomendo a leitura do livro A Mae do Gorki (se já não leu).
Bom, é isso. Me esforçarei escrever de forma mais sucinta na próxima vez.
Camarada Liv, tudo bem?
Serei breve nesse comentário.
Acredito que muitos dos seus pontos confirmam o que escrevi acima.
1) “Considerando que as mudanças do mundo do trabalho dispersaram os trabalhadores não há mais um local de trabalho, um lugar de encontro bem definido. E tampouco o virtual pode servir de espaço organizativo”. Concordo com você nesse ponto. Afinal, esse espaço (chamado de modelo fordista), se esgotou. Todavia, o que ocorreu que esse espaço passou por uma reestruturação produtiva que fragmentou esse espaço, essa classe e a destruição antiga das formas de luta e solidariedade. Isso ocorreu sim. Todavia, insisto: é nesse espaço com essas novas características que deverá ser o terreno sob novas bases de lutas e formas organizativas.
O cenário que você pediu para refletir é sob essas novas formas de luta e organização que deverá surgir. E a dificuldade está justamente, pois essa classe ainda não deu seu próprio salto organizativo. A reflexão teórica é anterior a prática histórica. Temos essa dificuldade, pois somos uma geração que ainda não presenciamos uma nova forma de organização surgida da própria classe. Claro que temos lutas aqui e ali sendo feitas e saudamos ela. Mas essas mesmas lutas não se tornaram forma hegemônica para essa mesma classe.
2) Também conheço muita gente de esquerda que está no corre para avançar a luta. Mas essa esquerda radical direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente está a reboque da atual esquerda hegemônica. Ou seja, a pauta, o debate e as lutas não é sob hegemonia da esquerda radical.
3) Sob o moralismo, camarada, olha o preço desse jogo de tabuleiro! É visível que o MST fez jogo, para os setores esclarecidos, intelectualizados, etc. Tenho certeza que para uma população de 90%, com uma renda de até dois salários mínimos, está muito longe de suas preocupações em adquirir um jogo do MST. No máximo sua futura dívida será algum jogo eletrônico para seus filhos. Logo, camarada, essa nota é sim um moralismo pequeno-burguês, pois é um diálogo diante do espelho. Uma conversa para convertidos.
3) Sobre “E mais, me parece que você subestima a força organizativa de um indivíduo anticapitalista rígido consigo mesmo, virtuoso e coerente em conduta diária (e eles existem, ainda vivos)”. Camarada, subestimo sim. Principalmente em uma época de sujeitos neoliberais e ausência de forças coletivas anticapitalistas. Estou velho camarada, já cheguei na idade que não quero me iludir e o mais importante: iludir os demais camaradas. (A leitura da Mãe é excelente, mas são outros tempos e outras conjunturas. Nossa época é marcado pelo “realismo capitalista”. Será que temos algum romance dessa época à altura do Gorki?)
Abraços.
Concordo com a crítica do Pedro Irio, pelo menos em relação a este Flagrante delito, e possivelmente válida para alguns outros que não me recordo.
Deixo uma indicação de leitura, o livro de Jamie Woodcock “Marx no Fliperama: videogames e luta de classes”.
A luta de classes vira brincadeira em um jogo da mesma forma que a luta de classes vira entretenimento em um filme. Faz sentido afirmar isso? Os produtos da indústria cultural são campo em disputa? Essa é a questão.
Camarada Leo, você perguntou se faz sentido a seguinte frase: “A luta de classes vira brincadeira em um jogo da mesma forma que a luta de classes vira entretenimento em um filme.” Não, não acho faça sentido afirmar isso. Você já assistiu o filme Vá e Veja (1985) do diretor Elem Klimov? Não há nada lúdico nessa produção cinematográfico.
Camarada Pedro, se os antigos não são suficientes para animar teu espírito tão vivido, sugiro ler Mayombe, do Pepetela. Mas confesso que acho um erro desconsiderar o livro A Mãe em função da data de publicação. Assim como acharia um erro desconsiderar o que nos ensina autores como Victor Hugo, Emile Zola, Dostoiévski, entre outros. Todos estes autores (e outros um pouco recentes, como Günter Grass, já leu A Ratazana?) tem algo em comum: o homem e sua humanidade (e a perda dela).
Sobre o livro do Gorki, apesar de ser um livro publicado em 1906, conta a história de um cenário (e não me refiro a Rússia pre-revolucionaria, me refiro aos personagens) plausível de acontecer ainda hoje. O filho da Mãe é um rapaz que cresceu vendo a mãe apanhar de um pai que transferia para a figura dela todo o ódio que sentia de sua condição de explorado. Por sua vez, a mãe, analfabeta, filha de explorados, permanecia calada e ferida em sua condição porque jamais tinha sido capaz de imaginar uma forma de vida diferente daquela. A Mãe foi filha de uma mãe que casou pelos mesmos motivos e o sofreu a mesma sorte de violências. O filho da Mãe, esse não. O filho da Mãe rompeu com o ciclo. Mas para romper com o ciclo ele precisou ser esse sujeito rígido consigo mesmo, coerente e virtuoso em sua conduta diária. E foi vendo o potencial do filho de se auto-organizar e de se colocar a serviço de uma organização de mundo maior do que seus interesses pessoais, que a mãe foi expandindo o seu horizonte imaginativo e aos poucos superando as falhas de sua formação e se tornando ela mesma um agente da causa. Já pensou se um militante (ou melhor, um formador, um marco de estrada) velho de guerra (guerra, luta de classes, também deve ser uma palavra pregada com consequências, o que você faria se levasse a sério essas palavras? Como viveria? Pularia carnaval?) conseguisse pescar um filho como o filho dessa Mãe? Mas para pescar é necessário antes seguir a risca o exemplo de disciplina dado por personagens (e por pessoas reais, já existiram tantas) imaginados por Gorki.
Camarada Pedro, existem aspectos humanos que atravessam o tempo. Outra leitura que pode lhe agradar e fortalecer: Análise do Homem (Erich Fromm).
Liv,
Algo ser entretenimento não significa que é lúdico. De todo modo o problema é ser divertido? Aí caímos mais que no moralismo, no ascetismo.
As produções culturais estão em disputa? Se estão, as que são produzidas e viram mercadorias também? Esse é o ponto de discussão.
Camarada Leo, sim, um dos problemas é ser lúdico. Pergunto novamente, você já assistiu o filme Vá e Veja? Está disponível streaming Belas Artes à Lá Carte por R$12,90 (mais barato do que Netflix, e o valor é outro problema). Esse filme conta a história de um menino que achava a guerra uma grande brincadeira. Até que um dia ele Foi e Viu (e viveu) seu erro.
como na arte, o que mais importa é a forma e não o conteúdo. Pegar “Banco Imobiliário” e substituir os textos por temas da luta de classes é apenas decadente.
Para quem se interessar por outras experimentações…
https://www.weareplanc.org/blog/the-social-strike-game/
Ainda sobre entretenimento e luta de classes: https://colestia.itch.io/a-workers-guide-to-espionage
Joguinho virtual com o intuito de apresentar alguns conceitos, e ferramentas pra organização no local de trabalho. Bem interessante, divertido e útil.
Ainda na brisa das disputas das produções culturais, não posso deixar de pensar no caso desse jogo (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/09/09/o-jogo-de-celular-que-atrai-dinheiro-e-apoio-para-a-resistencia-ao-re,gime-militar-de-mianmar.ghtml) criado por um desenvolvedor com o intuito de arrecadar dinheiro para financiar a resistência em Mianmar.
Videogames e joguinhos de tabuleiro, ao que parece, estão em disputa – mas não como um fim em si. Entretenimento, em ambos os casos, parece um meio pra atingir um fim – seja se munir de ferramentas pra se organizar em seu local de trabalho, seja pra arrecadar grana pro financiamento de resistência armada.
ENUNCIADO OBSERVACIONAL PROVISÓRIO
Tem gente cavando, no fundo do poço.
Se o ‘camarada picareteiro’ é de esquerda ou de direita, não faz a mínima diferença.
O exsumo IDEOLÓGICO&PRÁTICO – seja neobolche, neofacho ou redbrown – é intrinsecamente contrarrevolucionário.
Quando eu recebo uma publicidade de uma editora autodenominada anticapitalista, mostrando uma imagem de Karl Marx vestido de Pai Natal, ou Papai Noël, com o saco de presentes pendurado do ombro…
ERA UM MUNDO
Basculando meta-ilogicamente entre abdução e inferência, nestes pré[?]-apocalípticos tempos natálicos & revelhônicos, um veterano da guerra de classes deixou escapar nostálgicas reminiscências de ex-combatente.
Alguns (nem tão velhos, embora não muito jovens) calibrados à base de álcool forte emocionaram-se.
Enfim: este luar, este conhaque botam a gente comovida como o diabo…