Foto de Guillermo Correa, anos 1980.

Por Carlos Acevedo G.

Nesse ano de 2023 se comemoraram os 50 anos do fatídico 11 de setembro de 1973, que não só significou uma profunda quebra de uma democracia chilena que se viu interrompida abruptamente, o que não acontecia desde a constituição de 1925, mas também foi um ponto de inflexão para os partidos políticos de esquerda que foram marcados por sofrerem perseguição política, exílio, desaparição forçada de seus quadros políticos, tortura e assassinatos ao longo dos 17 anos nos quais governou Augusto Pinochet, acompanhado pelo poder civil dos antecessores da direita que hoje está representada pela UDI (Unión Demócrata Independiente) e pela RN (Renovación Nacional), junto a uma extrema direta fanática que parece renascer dos quarteis secretos da DINA – CNI, a polícia política da ditadura.

Existe um longo trabalho histórico sobre os acontecimentos ocorridos durante estes 50 anos: memórias como a do General Carlos Prats, as reportagens jornalísticas e os livros de testemunhos que têm dado conta dos feitos desse período. Talvez a mais completa investigação jornalística publicada recentemente foi a do jornalista americano John Dinges, “Os Anos do Condor”, publicada no Brasil no ano de 2019 e que atualiza sobre a brutalidade destes 50 anos e suas tramas judiciais.

Enquanto a ditadura e seu apoio civil dilaceravam o país com morte e tortura, as organizações populares se reorganizaram primeiro para sobreviver e também para buscar seus mortos e desaparecidos nos bairros populares, chamados aqui no Chile de poblaciones, das principais cidades – como Santiago, Valparaíso e Concepción – assim como em tantos outros lugares da louca geografia chilena. Na sombra da noite mais longa e escura da ditadura começaram a nascer práticas de autoeducação popular: nascem as práticas autogestionadas por pobladoras e pobladores, como as ollas comunes (“panelas comuns”, práticas solidárias, organizadas e comunitárias de providenciar alimentação) e os comprando juntos (ações comunitárias com a finalidade de baratear os custos das compras), além dos comitês de autodefesa, os coletivos de saúde popular e com eles as práticas pedagógicas da Educação Popular. A longa noite ditatorial também foi o refúgio de um novo mundo comunitário e social que começava a nascer.

Distintas organizações e coletivos surgem na defesa dos Direitos Humanos e nas práticas da Educação Popular: o Comité Pro-Paz nos primeiros anos da ditadura e, posteriormente, a Vicaria de la Solidariedade, a Comisión de Derechos Humanos, o Comité de Defensa de los Derechos del Pueblo (CODEPU), Sevicio de Paz y Justicia (SERPAJ), Servicio para el Desarrollo Evangélico (SEPADE), Fundación de Ayuda Social de Iglesias Cristianas (FASIC), talvez o mais importante sendo o programa de Educação Popular do Centro De Investigacion y Desarrollo de la Educacion (CIDE), entre tantas outras. Todas, sem distinção, fundaram suas práticas desde a Educação Popular.

Um exemplo gráfico é o registro que nosso companheiro Guillermo Correa Camiroaga, integrante do CODEPU da Região de Valparaíso, recompilou com sua câmera fotográfica durante os anos 80:

Uma das linhas de trabalho desenvolvidas pelo CODEPU V REGIÓN foi a implementação da Educação Popular como um instrumento destinado à criação, fortalecimento e capacitação das organizações populares. Essa linha de ação foi levada a cabo pelas diferentes Equipes Técnicas que, nos setores e territórios da V Região, principalmente em estreita coordenação com a ODEPO (Organización de Defensa de los Derechos Poblacionales), levaram adiante este que-fazer.

Foto de Guillermo Correa, anos 1980. Integrantes do Comitê de Saúde “Sol y Esperanza”, de Rinconada de Los Andes, interior da Região de Valparaíso (V Región).

As distintas Equipes Técnicas que formavam parte do CODEPU V Región desenvolviam, em maior ou menor medida, o trabalho de Educação Popular, se ajustando criativamente às distintas situações, contextos, territórios e locais onde se implementou, dentro do conceito geral de defesa e conquista dos direitos do povo, incluindo ali, claro, a defesa, denúncia e a luta contra a impunidade em matéria de direitos humanos, como além disso a resistência e a luta contra a ditadura“.

Outra instância muito importante, durante a longa noite da ditadura, e onde se fez verbo a Educação Popular foram as Comunidades Eclesiais de Base, sob as beiras da Igreja Católica.

Um primeiro ponto que nos convoca a revisar o papel da Educação Popular durante a ditadura civil-militar e os 50 anos do golpe tem relação com as práticas e teorias sobre Paulo Freire e a Educação Popular: nessa linha, a teoria e prática propostas por Freire vem sendo estudadas e executadas desde a década de 1960, em particular com o processo de Alfabetização que acompanhou a reforma agrária chilena e o emblemático livro “A Pedagogia do Oprimido”.

Foto de Guillermo Correa, anos 1980. Integrantes do Comitê de Saúde “Sol y Esperanza”, de Rinconada de Los Andes, interior da Região de Valparaíso.

Posteriormente, as práticas de Educação Popular se aprofundaram como parte da resistência à ditadura civil-militar, em um trabalho com pobladores e pobladoras dos bairros populares da grande Santiago e outras grandes cidades. O trabalho comunitário convidava ao desenvolvimento das práticas da Educação Popular como uma forma de resistência e enfrentamento educativo cultural contra a maquinaria comunicacional da ditadura, isso sob as beiradas das paróquias populares e com os padres operários no movimento das comunidades eclesiais de base. Foi aí onde se reuniram os educadores populares, sob a pressão da fome generalizada fortemente presente nos anos 1970 e 1980, junto aos pobladores de La Victoria, La Legua, La Castrina, Huamachuco e outras tantas poblaciones de Santiago, assim como nos morros de Valparaíso. Nesses locais vão surgindo os comitês de ”comprando juntas“, ”ollas comunes“, “comitês de autodefesa” e outras organizações populares que em sua grande maioria eram dirigidas por mulheres e jovens populares. Apenas para nomear e não esquecer cabe mencionar a educadora popular Aida Moreno em Huamachuco, fundadora da Casa da Mulher.

Foto de Guillermo Correa, anos 1980.

As práticas da Educação Popular implicavam no trabalho participativo e no uso das metodologias participativas, assim como também no desenho de material educativo.

Nos anos 1980, o trabalho da Educação Popular e suas práticas estiveram centradas na preparação dos setores populares para enfrentar e lutar contra a ditadura civil-militar. Beber da fonte da Educação Popular, da Teologia da Libertação e do Marxismo permitiu pouco a pouco ir conhecendo os postulados de Paulo Freire – sua experiência nos anos 60 no Chile no contexto da reforma agrária e as suas andanças na luta de libertação na África – e foram se constituindo em uma motivação intelectual profunda que os jovens desses anos se nutriam das fontes teóricas e práticas.

Um marco de referência no aprofundamento das práticas da Educação Popular foi o triunfo da Revolução Sandinista no ano de 1979, cheia de cristianismo, alegria e esperança para toda a América Latina. A derrota de Anastasio Somoza levou ao triunfo da revolução e o início de programas de alfabetização de uma Nicarágua livre, que foi sem dúvida uma grande esperança para os povos da América Latina submersos às ditaduras mais selvagens, em particular no Chile e na Argentina. A tarefa alfabetizadora na Nicarágua implicava em conhecer a palavra para libertar-se da opressão que cada um carregava. Foram tempos cheios de esperança em meio às atrocidades das ditaduras.

Foto de Guillermo Correa, anos 1980. Integrantes do Comitê de Saúde “Sol y Esperanza”, de Rinconada de Los Andes, interior da Região de Valparaíso.

Se considerarmos a Igreja Católica como um grande guarda-chuva para o desenvolvimento das práticas da Educação Popular, nele houve personagens muito importantes, que hoje, na noite mais escura da Igreja Católica, é preciso recordar. No Chile, me refiro a alguns bispos e sacerdotes (padres operários) como Monsenhor Enrique Alvear, o Bispo Carlos Camus, o Bispo Carlos Gonzalez, Don Jorge Houston, sacerdotes como Cristian Llona, José Aldunate, Mariano Puga, Ignacio Gutiérrez, Ronaldo Muñoz, o padre Guido Lebret em Talca, entre tantos outros.

Na América Latina estão sempre presentes Ernesto Cardenal e seu irmão Fernando Cardenal, Frei Betto, os bispos Helder Câmara e Pedro Casaldáliga, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Gustavo Gutiérrez e muitos outros mais.

A leitura da “Pedagogia do Oprimido” foi um ponto de partida para a formação teórica da Educação Popular, as experiências de Paulo Freire na África se converteram em um grande nutriente para as práticas de Educação Popular, mas o mais importante da Educação Popular chilena durante esses anos foi o trabalho comunitário e de autodefesa contra a ditadura.

Paulo Freire era conhecido no Chile pelo seu aporte à reforma agrária que havia começado com Monsenhor Manuel Larraín no início dos anos 1960 em Talca e que, posteriormente, ficou em cargo de Jacques Chonchol durante os governos de Eduardo Frei e de Salvador Allende. A chegada de Freire ao Chile durante o governo de Eduardo Frei Montalva e sua incorporação ao ICIRA (Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria) para o trabalho de Alfabetização foi um ponto de partida para ser conhecido, o aporte aos camponeses da região do Maule e de Choapa, com a alfabetização e seu método psicossocial. Como não lembrar também da jovem educadora popular e alfabetizadora Olga Cruzat.

Do parágrafo anterior eu gostaria de destacar o grande conhecimento dessa época que têm os professores Rolando Pinto, Jorge Osorio, Francisco Vio Grossi e Juan José Silva: recomendo seus conhecimentos e análises sobre Paulo Freire e esse período.

Nos anos 1980 o trabalho da Educação Popular focou principalmente no programa de Educação Popular do CIDE. Educadores como Luis Bustos Titus, Juan José Silva, Jorge Zuleta e Carmen Colomer marcaram história, em particular com as jornadas de Educação Popular na Casa de Exercícios do arcebispado em Punta de Tralca.

Por sua parte, a equipe de Educação Popular do SEPADE promoveu os Centros de Recreação Infantil (CRI) na población de La Legua e na zona norte de Santiago. Na población La Victoria a casa do SEPADE, que estava na esquina de Galo Gonzalez com 30 de Outubro, nutriu os pobladores e pobladoras para fortalecer os comitês e organizações que se multiplicavam às centenas em La Victoria, que os próprios pobladores denominavam como o “primeiro território livre do Chile”. Eram os tempos do padres Pierre Dubois e Andrés Jarlan, sacerdote assassinado enquanto lia a bíblia e os pobladores se defendiam da repressão.

Nas oficinas de Educação Popular participavam pobladores, mulheres e jovens, durante dois ou três dias de jornadas. Se realizavam nas capelas, colégios religiosos, sindicatos, clubes esportivos e em associações de moradores.

Foto de Guillermo Correa, anos 1980.

A grande esperança da Educação Popular era um caminho de libertação, alegria e irmandade entre os participantes: a solidariedade, o sonho da liberdade frente à ditadura e a construção de um país melhor, quase ansiando os anos do governo do presidente Allende, ao mesmo tempo que se vivia a repressão, tortura e morte de muitos companheiros e companheiras.

Paulo Freire e a Educação Popular se mantêm vigentes até os dias de hoje, apesar das tentativas de fazê-la desaparecer, como aconteceu nos anos 1990 quando o CIDE fecha o programa de Educação Popular e demite os principais expoentes do campo no Chile.

A Educação Popular se faz verbo em sua metodologia. As metodologias participativas eram e são a forma de trabalhar com as comunidades, mas também é a forma de construir democracia desde as bases populares.

A teoria e a filosofia da Educação Popular, da Educação Libertadora são substanciais no momento de sua prática, estas vão se recriando acompanhando os novos tempos.

Finalmente, a Educação Popular e Paulo Freire seguem estando vigentes, pois as abordagens de Freire nascem desde a América Latina. Desde cada canto onde exista um empobrecido, aí deverá estar a Educação Popular.

Tradução de Ian Gabriel Couto Schlindwein

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