Por João Bernardo
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O uso do dinheiro como instrumento requer a elucidação de um aspecto crucial da linguagem matemática, que Heinrich Hertz expôs no final do século XIX. «A partir do momento em que tenhamos conseguido derivar imagens da nossa experiência passada com as características necessárias, podemos usá-las como modelos para desenvolver rapidamente as consequências que muito mais tarde se hão-de manifestar no mundo exterior ou em resultado da nossa própria intervenção» (apud Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, vol. I, pág. 75). Ou seja, a linguagem consiste num sistema de inter-relações que se sobrepõe à realidade material e social, mas sem a decalcar. A linguagem enquanto sintaxe, incluindo a matemática com as suas regras específicas, não se sobrepõem ponto a ponto à realidade sensível enquanto estrutura, mas têm a sua génese num ponto inicial e, através de percursos próprios, atingem um ponto final. Tal como Cassirer sublinhou, «Heinrich Hertz é o primeiro cientista moderno a efectuar uma mudança decisiva da teoria imitativa do conhecimento físico para uma teoria puramente simbólica» (vol. III, pág. 20). E noutra obra Cassirer retomou a interpretação de Herz. «Aqui não é possível comparar um dado símbolo com uma dada coisa para verificar a sua semelhança com ela; tudo o que é necessário é que a ordenação dos símbolos seja de uma natureza tal que sirva para exprimir a ordenação dos fenómenos» (El Problema del Conocimiento, 4 vols., México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1948, 1953, 1956, 1957, vol. IV, pág. 141). Não se trata de reproduzir linguisticamente a natureza, mas de construir uma linguagem inteiramente simbólica, cujas consequências lógicas estejam de acordo com resultados observáveis experimentalmente.
Aliás, as implicações são mais amplas, porque equações concebidas para solucionar de uma dada maneira um dado problema têm sido usadas para solucionar outros problemas ou dar uma solução diferente ao mesmo problema, o que confirma que o encadeamento da linguagem matemática não decalca a realidade sensível. E não faltam exemplos de uma dada linguagem matemática ter sido criada e desenvolvida antes, por vezes muito antes, de estarem disponíveis quaisquer possibilidades reais de aplicação, revelando de modo ainda mais flagrante a falta de coincidência nos passos do percurso.
Ora, aquela observação de Hertz, aplicável à matemática que se sobrepõe à realidade material sem a decalcar, aplica-se igualmente às operações do dinheiro no capitalismo, que partem de uma dada situação económica para, mediante percursos próprios, estritamente pecuniários, alcançarem outra situação económica e, graças aos feedbacks, além de surgirem como previsão, servirem também de quadro organizativo para a execução das previsões. Aliás, se uma das funções da linguagem é, desde a sua génese, a antecipação do futuro e a preparação desse futuro, então o dinheiro, enquanto linguagem, serve para articular a constatação do passado com a avaliação do presente e a sua projecção posterior. Como Georg Simmel observou em The Philosophy of Money, «não há um símbolo mais flagrante do carácter inteiramente dinâmico do mundo do que o dinheiro» (pág. 510). No capitalismo a linguagem pecuniária é inseparável do decurso do tempo e, por isso, representa sempre uma economia em movimento.
Especificamente, a linguagem pecuniária funciona no capitalismo como programação de consumo e de investimentos, e o crédito é um corolário desta capacidade de previsão, ou melhor, da capacidade de construir ou facilitar aquilo que se prevê. Graças ao crédito, a previsão é, ou tende a ser, self-fulfilling. No capitalismo o crédito não é um artifício nem uma aposta de casino nem uma especulação, e a função de crédito exercida pelo dinheiro não é algo que lhe seja acrescentado e muito menos uma anomalia, mas é uma componente estrutural, inerente à confiança depositada em qualquer símbolo pecuniário. Referindo-se às crises de 1847, 1857 e 1866, Michiel Hendrik de Kock observou que o Banco de Inglaterra «foi forçado a prestar atenção às relações estreitas entre moeda e crédito» (A Banca Central, Lisboa: Banco de Portugal, 1982, pág. 17), mas infelizmente não são poucos os críticos do capitalismo que, mais de um século e meio depois, ainda não aprenderam o que aprendeu o Banco de Inglaterra. Ora, sem elasticidade nenhuma linguagem conseguiria cobrir o permanente aparecimento de novos elementos e processos resultantes tanto das transformações naturais como da acção da sociedade. E se basta o desenrolar da História para que o mundo se amplie no presente e mais ainda na memória acumulada, não se trata apenas de criar novos termos, mas também de transformar a sintaxe de modo a conceber novas estruturas. O mesmo sucede com a linguagem pecuniária, que tem de ser suficientemente plástica para cobrir as taxas de crescimento da vida económica e os seus saltos bruscos, e também para acompanhar as contracções da economia, tantas vezes repentinas. Através da emissão de dinheiro e do crédito, os bancos são o órgão que, apesar de alguns insucessos, tem geralmente garantido essa plasticidade.
A função originária do crédito foi a mobilização de poupanças para, com o dinheiro depositado pelos clientes, estimular iniciativas que necessitassem de empréstimos. Assim, os bancos substituíram o entesouramento pré-capitalista pelos investimentos capitalistas e foram o agente promotor e acelerador do novo sistema económico. Além disso, ao adiantar como crédito um volume monetário que, no máximo, é equivalente aos depósitos totais multiplicados pelo inverso da fracção de depósitos que cada banco tem de manter em reserva, o conjunto do sistema bancário procede a uma expansão múltipla dos depósitos e torna-se, portanto, criador de dinheiro, ampliando muito a circulação pecuniária. Por outro lado, já nos alvores do capitalismo os bancos estendiam as suas operações a distâncias capazes de cobrir o mercado mundial dessa época e impossíveis de atingir pelos outros tipos de empresas, e assim, sendo os primeiros a internacionalizar-se, abriram o caminho à evolução económica posterior. E como têm sempre existido vários centros emissores com denominações monetárias próprias, os diferentes sistemas pecuniários equivalem a línguas diferentes e são os bancos, ao executarem funções de câmbio, quem serve de dicionário. Na medida em que os bancos são os intervenientes indispensáveis a todas estas operações eles têm lucros, e sem esses lucros não poderiam assegurar a estabilidade pecuniária.
Neste quadro torna-se fácil compreender por que motivo é imprescindível que os grandes bancos não caiam em falência ou, se um cair, não arraste os outros, quando o mesmo não se passa com as grandes empresas dos demais ramos. Conta-se a história de um famoso banqueiro americano do início do século XX a quem alguém pediu um empréstimo. O banqueiro disse que não lho concedia, mas prometeu que atravessaria com ele a sala principal da Bolsa, na hora de maior movimento, colocando-lhe afectuosamente a mão por cima do ombro. O banqueiro substituiu a linguagem pecuniária do crédito pela linguagem alegórica dos gestos — ambas linguagens, e com os mesmos efeitos. O sistema bancário é um dos emissores e o principal articulador da linguagem pecuniária e, se ficar disfuncional, as informações económicas ficam pervertidas ou deixam até de ser emitidas. Uma economia sem um sistema bancário eficaz é como uma sociedade que perdesse a linguagem.
Convém definir as áreas políticas de instituições que cumprem um papel tão decisivo. Desde pelo menos um artigo de 1985 («Gestores, Estado e Capitalismo de Estado», Ensaio, 14, 1985) (aqui) que eu classifico como Estado Amplo o conjunto das empresas, devido à capacidade de exercerem soberania quer sobre os seus próprios trabalhadores quer sobre a sociedade em redor, e denomino Estado Restrito os três órgãos clássicos do poder estatal. É no contexto desta dualidade que tenho analisado a organização política moderna e contemporânea. Ora, as operações de crédito não surgiram de um único centro, mas foram geradas dispersamente; e não se desenvolveram pólos de acumulação capitalista que não fossem também pólos de emanação de crédito e da respectiva emissão pecuniária. Do mesmo modo, a formação de bancos centrais deveu-se à iniciativa conjunta do Estado Restrito e do Estado Amplo, embora predominassem umas ou outras instituições consoante os países e as épocas. Em traços muitíssimo resumidos, vou apresentar aqui dois exemplos extremos — o Banco de Inglaterra e o Banco de França.
O Banco de Inglaterra foi o primeiro banco emissor a assumir a posição de banco central. Criado em 1694 graças a uma subscrição pública que reuniu vários capitalistas, o Banco de Inglaterra tinha como objectivo adiantar dinheiro ao governo em troca do privilégio da emissão de notas. De então em diante oscilaram no Banco os poderes relativos do Estado Amplo e do Estado Restrito, porque se em 1826 outras sociedades anónimas bancárias adquiriram o direito de emitir notas, desde que estivessem estabelecidas a mais de uma certa distância de Londres, a legislação promulgada em 1833 conferiu às emissões do Banco de Inglaterra o exclusivo do curso legal. E como entretanto o Banco de Inglaterra foi gradualmente ampliando as funções de banqueiro e agente do governo, ele passou a beneficiar de uma posição de supremacia relativamente às restantes instituições bancárias, que desde o século XVIII consideraram vantajoso depositar naquele Banco parte das suas reservas monetárias. Em contraste com o sucedido no Banco de Inglaterra, o Banco de França, fundado em 1800 com a ajuda de fundos públicos, mas sobretudo com capital privado, esteve desde início estreitamente dependente do governo, servindo-lhe de banqueiro e recebendo em troca o exclusivo da emissão de notas em Paris. Além disso, era o governo que nomeava o governador do Banco e dois vice-governadores, embora os accionistas se encontrassem representados por quinze regentes. Em 1848, nove bancos provinciais com poderes de emissão de notas foram convertidos em filiais do Banco de França, o que lhe ampliou o capital e o âmbito de emissão, e posteriormente criaram-se mais filiais e o Banco obteve o monopólio da emissão de notas em todo o país.
Como vimos, a diferença entre aqueles dois bancos centrais não residiu nas forças que os compuseram, mas apenas no seu peso relativo, e talvez possamos discernir melhor o que estava em jogo se recordarmos as ideias de Saint-Simon, o primeiro grande teórico do prevalecimento do Estado Amplo perante o Estado Restrito. Saint-Simon atribuiu aos banqueiros e ao sistema bancário o lugar cimeiro na organização social, e facilmente se deduz que a administração da sociedade devesse caber ao banco central. Foi a esta doutrina que os seus seguidores se devotaram na acção política e económica. Numa obra colectiva publicada em 1830, Bazard, um dos mais notáveis discípulos de Saint-Simon, evocou uma «instituição social do futuro», que se encarregaria de dirigir todas as indústrias no interesse da globalidade da sociedade e especialmente dos trabalhadores. «Designaremos provisoriamente esta instituição pelo nome de sistema geral de bancos, fazendo todas as reservas sobre a estreita interpretação que hoje poderia dar-se a esta expressão. O sistema compreenderia, em primeiro lugar, um banco central representando o governo, na ordem material; este banco seria depositário de todas as riquezas, de todo o fundo de produção, de todos os instrumentos de trabalho, numa palavra, do que hoje compõe toda a massa das propriedades individuais» (apud Charles Gide e Charles Rist, História das Doutrinas Económicas, Lisboa: Inquérito, 1938, pág. 262 n. 3). Mas Gide e Rist acrescentaram que esta concepção talvez se devesse a Enfantin, outro dos notáveis discípulos de Saint-Simon. De qualquer modo, o banco central consubstanciava a sociedade ideal ambicionada pelos saint-simonianos, em que se espelhavam os anseios do capital financeiro. Quando sabemos que Napoleão juntara à sua hostilidade à Grã-Bretanha um desprezo mercantilista pelas formas modernas de dinheiro e crédito, entendemos melhor tanto o antijacobinismo de Saint-Simon como a razão profunda que levara o imperador a ser finalmente derrotado em Waterloo. Era mais do que um Império que estava então em jogo, era toda uma concepção antiquada do dinheiro e do crédito.
Tal como sucedeu na Inglaterra e em França, também na generalidade dos outros países capitalistas os bancos centrais foram adquirindo progressivamente o privilégio exclusivo da emissão de notas e assumiram a posição dominante no clearing interbancário, assim como passaram a receber em depósito as reservas de caixa dos restantes bancos e, enquanto foi uma prática obrigatória, as reservas de ouro e prata, o que multiplicou a capacidade de emissão pecuniária dos bancos centrais e a sua capacidade de facultar crédito aos outros bancos. Mas de quem dependiam os bancos centrais, das instituições políticas oficiais ou de grupos de capitalistas, do Estado Restrito ou do Estado Amplo? Ao longo do século XIX reproduziu-se aquele mesmo jogo incerto das forças económicas, com a participação exclusiva ou dominante de capitais privados na fundação dos bancos que viriam a assumir o papel central e se destinavam a adiantar empréstimos ao governo, em troca do privilégio da emissão de notas, e cujos conselhos de administração juntavam representantes do governo e dos accionistas particulares, em proporções variáveis e com diferentes níveis de autoridade. Gradualmente, este processo levou à preponderância dos governos sobre os bancos centrais, que por seu turno aumentaram a supremacia exercida sobre os bancos particulares, nomeadamente pela função de prestamista de última instância, ampliada na segunda metade do século XIX. Apenas os Estados Unidos se mantêm como a grande excepção, porque não se fundou ali um banco central nacional e só tardiamente, já na segunda década do século XX, se criou o Sistema de Reserva Federal, que se limita a harmonizar a actuação de bancos dispersos, tanto Bancos de Reserva Federal regionais como bancos privados.
Em qualquer caso, na emissão pecuniária e no crédito, já que ambos são inseparáveis, tem sempre ocorrido uma articulação variável do Estado Amplo com o Estado Restrito, e os estatutos que continuam hoje a regular os bancos centrais, atribuindo-lhes uma maior ou menor independência relativamente aos governos, reflectem as oscilações e ambiguidades do processo em que se geraram. Ora, a conjugação daqueles dois tipos de Estado traça o perímetro das classes dominantes, e salvo em circunstâncias extremas, em que a população comum recorre a substitutos monetários de diversos tipos, é naquele âmbito que se mantém o monopólio da emissão de dinheiro e do lançamento de operações de crédito. Em suma, no capitalismo o crédito foi sempre um pressuposto da emissão pecuniária, sem o qual a economia e a sociedade não podem funcionar, vincando-se assim a clivagem de classes no contexto do dinheiro.
Mas no capitalismo desenvolvido o crédito vai muito mais longe do que a sua função originária de mobilização das poupanças e canalização dos investimentos, e a mais importante função do crédito passou a ser a antecipação de lucros futuros. Assim, a taxa de juro não é o preço do dinheiro, porque o dinheiro, não sendo uma mercadoria, não tem preço. Existe uma relação muito estreita entre as taxas de juro e as expectativas ou os desejos, porque a taxa de juro prevê a situação económica a que se pensa chegar ou indica a situação económica a que se quer chegar. A taxa de juro representa a projecção da linguagem pecuniária no tempo. Sem o crédito, os lucros futuros seriam impossíveis. Este tipo de crédito, não como equilíbrio de contas no presente, mas enquanto adiantamento do futuro, converteu-se num dos mais espectaculares engenhos do capitalismo. Rebatendo a ilusão de que os mercados possam antecipar directamente situações futuras, George Soros, um especialista prático do dinheiro — e poucos tem havido tão sabedores — disse que «na verdade, não são as expectativas actuais que correspondem aos acontecimentos futuros, mas os acontecimentos futuros que são moldados pelas expectativas actuais». Ora, este vai-e-vem, se serve para construir realidades, serve também para constatar fracassos. «Existe uma conexão em reflexo bidireccional entre a percepção e a realidade, que pode gerar processos de expansão e recessão [boom-bust processes] que inicialmente se auto-reforçam, mas que por fim se autodestroem, ou seja, bolhas», escreveu Soros. «Cada bolha consiste numa tendência e num erro de avaliação, que interagem em reflexo» (apud Niall Ferguson, The Ascent of Money, Londres: Penguin, 2009, pág. 317).
Através do crédito, o dinheiro, enquanto modalidade de linguagem, tornou-se inseparável do decurso do tempo. E o tempo para nós, decorrente da segunda lei da termodinâmica, é irreversível. Todavia, no capitalismo a linguagem pecuniária implica uma notável excepção, porque o tempo pode ser reversível no decurso das operações de crédito. E então ocorrem as crises ou, no âmbito particular, as bruscas oscilações na reputação económica ou social de que alguém ou alguma instituição possa beneficiar. Neste contexto, as crises — de uma pessoa, uma empresa ou toda uma economia — consistem em colapsos no processo temporal. Quando, graças ao crédito, se dá um salto no futuro e se vive já nesse mundo previsto, a crise financeira alerta cruelmente para o facto de a linguagem ser só linguagem e representa um brusco regresso ao passado. Em suma, no capitalismo o dinheiro pressupõe a reversibilidade do tempo.
Aliás, talvez já noutros sistemas económicos e sociais pudesse pensar-se essa reversibilidade. Se interpretarmos o potlatch como uma modalidade invertida de crédito, então também ele tornava o tempo reversível, porque o esbanjamento público restabelecia a situação anterior à perda de prestígio.
A plasticidade e a reversibilidade do dinheiro, somadas à sua difusão e ao seu estatuto de principal ou exclusivo articulador das relações inter-individuais, propiciam uma incessante mobilidade nas hierarquias sociais, em flagrante contraste com os regimes baseados na propriedade fundiária. Para além das várias revoluções e guilhotinas, o dinheiro foi o mais eficaz mecanismo de dissolução da velha nobreza e é irónico observar algumas boas almas dos nossos dias a imaginarem que as críticas ao dinheiro constantes em poemas ou prosas do ancien régime antecipariam as palavras de ordem da esquerda quando, na realidade, defendiam a sociedade senhorial. Se a democracia se define pela mobilidade social e pela circulação das elites — e não vejo de que outro modo poderíamos defini-la — então o dinheiro é o grande promotor da democracia.
Na verdade, a concentração da luta contra o capitalismo numa luta contra os bancos nasceu nas ideologias mais reaccionárias surgidas no final do ancien régime em oposição à Revolução Francesa. Rivarol, por exemplo, considerava que um governo devia proteger os súbditos «na razão inversa da mobilidade da sua riqueza» e relegava para o último lugar o financeiro que, «tal como o mágico, pode com um traço de pluma transportar a fortuna para o fim do mundo e, nunca acumulando nada senão símbolos, evade tanto a natureza como a sociedade» (apud Herbert Lüthy, From Calvin to Rousseau, Nova Iorque e Londres: Basic Books, 1970, págs. 94-95). Desde então ideias como esta têm servido, na direita, de câmara de eco às aspirações anticapitalistas nascidas na esquerda, e não espanta que um duradouro semanário fascista francês tivesse tomado o nome de Rivarol. Esse tipo de cruzamentos, ou convergências, é sempre gerador de fascismos e, neste caso, assinalar os bancos como o principal alvo da luta social, além de ser uma manifestação de fascismo, pode pressupor, in extremis, o anti-semitismo. Como tratei esta questão com algum detalhe no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022, vol. II, págs. 139-147), passo adiante.
A propósito de anti-semitismo, no entanto, vale a pena notar que as operações monetárias representavam a única via de ascensão social para minorias étnicas ou religiosas marginalizadas do poder político e, portanto, excluídas da propriedade fundiária. O interesse manifestado por muitos judeus pela actividade bancária não os diferenciava do que ocorria com os arménios na Turquia, os pársis na Índia ou os huguenotes em França. Assim, as formas modernas de anti-semitismo, que já não invocavam justificações religiosas, quando não se baseavam em pressupostos raciais decorriam unicamente da hostilidade ao crédito, acentuada pelo facto de ele caber à iniciativa de pessoas marginalizadas socialmente.
Foi no contexto dessa concentração das hostilidades na actividade bancária que se difundiu o mito do capital fictício, e se aplicarmos ao crédito o modelo da linguagem abre-se a compreensão dos problemas obscurecidos pela falsa noção de capital especulativo. Considerar que esse capital, que é dinheiro, possa ser fictício, é classificar como fictícia a linguagem, opondo-a à presumida realidade das coisas. Mas sem a linguagem a restante realidade seria para nós um caos, e só distinguimos coisas através dos nomes que as designam, assim como só pela sintaxe ordenamos as coisas. Se existe algum capital que seja fictício, então ele é tão fictício como qualquer componente da linguagem. Afinal, esse capital desacreditado como fictício é indispensável para a compreensão e a manipulação dos processos económicos. O crédito é tão fictício como é fictício o futuro para o qual esse crédito se propõe servir de instrumento. Quando — e se — aquele futuro estiver realizado, então ele será real, e sem o crédito não teria passado a ser real.
Do mesmo modo, a diversidade dos mecanismos financeiros actuais — derivatives, futurities, leveraged buyouts e vários outros — é exigida pela complexidade e pela interdependência das operações económicas contemporâneas, pela impossibilidade de as conceber num dado momento sem as projectar no futuro e pela rapidez com que os problemas sentidos numa dessas operações se repercutem nas restantes. Não se trata de construções artificiais sobre uma realidade que não mudou, mas de uma adequação da linguagem pecuniária a uma realidade em veloz mutação. Por outro lado, se considerarmos como especulativas todas estas formas de capital pelo facto de se projectarem no futuro, então elas são tão especulativas como a restante linguagem, que pela sua função instrumental se destina a existir no tempo.
Em The Philosophy of Symbolic Forms, Cassirer esforçou-se por deixar claro que não existe uma correspondência directa e caso a caso entre uma dada sensação ou observação empírica e uma dada formulação de uma lei física ou química. «Em princípio, nunca podemos comparar a sensação particular com o seu substrato físico-objectivo determinado. O que pode ser comparado é, por um lado, a totalidade dos fenómenos observáveis e, por outro lado, o sistema total de conceitos e juízos no qual a física exprime a ordenação e as regras da natureza, e aqui podemos medir um pelo outro». Não existem coincidências, ou ausências de coincidência, parciais. «Pelo contrário, essa correspondência só pode ser procurada entre a totalidade dos dados da observação empírica e a totalidade dos conceitos teóricos e das hipóteses e leis físicas» (vol. III, pág. 412). A correspondência verifica-se entre duas globalidades, a teórica e a empírica, e só a partir daí se pode traçar a relação entre a lei particular e o fenómeno empírico particular. O mesmo ocorre com o capital dito fictício, que não tem nenhuma correspondência, ou ausência de correspondência, com qualquer processo económico específico. Esse capital erradamente considerado fictício é um elemento indispensável à compreensão da totalidade dos processos económicos e da intervenção social nestes processos.
Assim como a linguagem matemática da ciência permitiu visualizar novas realidades e expandi-las, também a linguagem matemática do crédito abriu outras perspectivas ao desenvolvimento económico, criando realidades que nada têm de fictício. Basta recordar que as primeiras instituições seguradoras se distinguiram dos casinos fundamentalmente por aplicarem princípios matemáticos inovadores, respeitantes ao cálculo de probabilidades e à distribuição de médias. Pascal, Bernoulli e outros nomes talvez menos familiares, assim como tiveram para a matemática uma importância decisiva, também a tiveram para os seguros. E como as companhias de seguros, para aumentarem a sua defesa perante a imprevisibilidade de diversos riscos, passaram a aplicar os prémios em fundos de investimento, depressa atingiram uma posição financeira de primeiro plano e se contaram entre os maiores investidores mundiais. Foi esta uma das principais vias, se não a principal, que levou ao crescente relacionamento da matemática com o crédito, e será fictícia essa matemática?
O carácter paradoxal da noção de fictício, aplicada a um capital, torna-se ainda mais evidente em confronto com a física desenvolvida a partir do século XIX, desde o estabelecimento da noção de campo e depois a liquidação da noção de éter, até atingir o auge na física quântica. A matemática responsável pela criação da física moderna e aquela matemática gerada já no âmbito desta física não têm nenhumas correspondências empíricas directas. Escrevi no capítulo anterior que a ciência começou quando deixou de se perguntar porquê? e se passou ao como e ao quanto, mas os físicos foram mais longe e abandonaram o desejo de saber o que algo é, para procurarem definir em que circunstâncias algo se comporta de acordo com um ou outro modelo matemático. O como transformou-se em como se. Recorreu-se a um cálculo em termos de ondas sem que houvesse qualquer meio físico a ondular, passou-se a um cálculo que afirma a necessária existência de algo que nunca se supusera ou se admitira, até se chegar a algo que não conseguimos visualizar nem sequer inserir nos sistemas lógicos disponíveis, mesmo em esquemas que parecem tão óbvios como o da identidade. É uma realidade matematicamente manipulável, embora logicamente impensável.
No entanto, trata-se de uma razão instrumental e de uma linguagem matemática operacional que nada têm de fictício, porque delas decorre a tecnologia em que vivemos e a base firme que para nós construímos. Só a razão instrumental nos permite sair do solipsismo da linguagem. Então — pergunta mortal para um materialista, mesmo dialéctico — será que descrever a massa em termos de energia a torna fictícia? Se m=E/c2, será que os materialistas-dialécticos se converterão em energéticos-dialécticos? Não pode haver melhor prova de que o fictício não é fictício. A nossa noção de realidade deve ser expandida, como foi ao longo das épocas anteriores. A oposição entre fictício e real implícita na noção de capital fictício é uma bafienta relíquia setecentista.
O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o segundo capítulo, o terceiro capítulo, o quarto capítulo, o quinto capítulo, o sexto capítulo, o sétimo capítulo e o nono capítulo.
Quanto a questões mais técnicas da linguagem, remeto a comentário meu na sexta parte deste ensaio, especialmente no que diz respeito à alegoria.
Uma curiosidade: como se falou em Bernoulli e Pascal, lembrei que Isaac Newton foi mestre da Royal Mint britânica entre 1699 e 1727, posto em que aliás foi muito bem reputado pela firme perseguição a falsificadores de moeda, 28 dos quais foram condenados à morte pelas sólidas provas que conseguiu.
Outra curiosidade: o Banking Act britânico de 2009 manteve para certos bancos privados da Escócia (Bank of Scotland, Royal Bank of Scotland, Clydesdale Bank) e da Irlanda do Norte (Bank of Ireland, Ulster Bank, Danske Bank) o privilégio, assegurado pelo Bank Charter Act de 1844, de imprimir notas de libras esterlinas. São bancos privados, totalmente privados, que emitem libras esterlinas num sistema coordenado pelo Bank of England.
Manolo, malungo, chegando junto – firme e sereno. Como JB e nós, por supuesto, tentamos merecer.
Saúde & Alegria
Esse João Bernardo, me enchendo de orgulho! Acaba de se tornar o maior de todos os revisionistas! O renegado dos renegados! Fez como os austríacos, foi a Kant e não voltou mais! Reabilitou Simmel, que façanha! Abraçou a linguistic turn e fez o marxismo avançar para trás!. Esse é o meu menino, o meu garoto! Aguardando o desfecho desse clássico da aquiescência!
Curioso que o assunto é tão complexo e impera um deserto tão grande na esquerda sobre isso que o único comentário são essas ironias vazias, insossas.
Um deserto absurdo de ideias. A esquerda dogmatica nao tem porcaria nenhuma a dizer. Que definhe ainda mais, então.
JB : o linchado da vez.
MERDRE! chacun sa chance d’être mangé… UBU Jarry
Em particular, me chama a atenção como essa perspectiva está próxima à teoria de Schumpeter do papel dos “empresários”, que por meio dessa linguagem projetada no futuro reordenam a economia, promovendo desequilibrios na direção do crescimento econômico. E os efeitos desse desequilibrio podem incorrer em que diversos preços são atualizados, para cima e para baixo, levando à destruição de alguns capitais e à fartura de outros, sem que ninguém possa antecipar-se de ciência certa sobre o resultado. O capitalismo se depura e atinge novos patamares de capilaridade social, é o que temos vivido nas últimas décadas. Se existe crise, será de algum outro processo social e histórico, mas não dos termos das relações sociais de exploração.