Por João Bernardo
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Uma porta fecha
Originariamente, desde a Revolução Francesa e ao longo da maior parte do século dezanove, o termo conservador denotava aqueles políticos que se opunham a todas as mudanças ou pretendiam até regressar a situações sociais ultrapassadas. E, no entanto, Balzac…
Mas a economia evoluiu, a composição das classes dominantes modificou-se e o nome deixou de corresponder à palavra, porque hoje os conservadores procuram acima de tudo detectar e corrigir qualquer inadequação dos mecanismos económicos e sociais. Se outrora eles representavam uma aristocracia incapaz de se reconhecer no meio da sociedade burguesa e desejosa de restaurar a sua situação passada, assumiram-se depois como uma das vertentes da tecnocracia, sempre atenta às necessidades de mudança, mas avessa a tudo o que possa perturbar a racionalidade característica dos gestores. Os conservadores abandonaram o desejo de conservar e substituíram-no por um permanente afã de corrigir, não são movidos pela nostalgia do passado nem pelo sonho de um futuro e, quando julgam necessárias as mudanças, partem sempre daquilo que já existe.
Em suma, o que os distingue é, por um lado, uma atitude céptica, ou mesmo pessimista, perante as utopias e, por outro lado, a recusa das formas populistas de manipulação de massas. Os conservadores não projectam remodelações gerais, operadas mediante grandes convulsões, e restringem-se a soluções localizadas e caso a caso, tanto quanto possível pensadas apenas nos gabinetes, à medida que se apercebem da inadequação ou do mau funcionamento das instituições. Mesmo quando acabam por implementar transformações económicas e sociais muito amplas, elas resultam da adição de medidas que inicialmente haviam sido pensadas como circunscritas a problemas particulares.
Ora, enquanto os conservadores passaram a ter uma visão crítica do presente e se mantêm atentos às mais pequenas transformações, o que hoje resta da esquerda comunista, pelo contrário, esmera-se em ignorar os factos novos, assumindo que são ilusórias mudanças de forma, destinadas a manter inalterada a economia subjacente. Os conservadores, alheios a dogmas e descrentes de utopias, concentram-se na realidade dos factos, enquanto os outros têm como horizonte último, por vezes único, os textos de Karl Marx, como se em quase dois séculos a economia e a sociedade não se tivessem modificado profundamente. Por isso a esquerda comunista foi ultrapassada. Ou, numa formulação talvez mais correcta, foi marginalizada pelos acontecimentos, nada mais lhe restando do que a esperança apocalíptica, e os textos que iluminaram criticamente a realidade do capitalismo do século dezanove são agora lidos em círculo vicioso e usados para encobrir toda a evolução económica posterior.
O problema é que os textos duram mais do que a realidade que os inspirou. Na sequência do 22º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, reunido em 1961, Nikita Khruchtchev estipulou como meta a ultrapassagem económica do capitalismo no início da década de 1980. Nada mais lógico. Marx não definira o comunismo como um idílio, mas como a superação das contradições do capitalismo, incluindo aquelas que o impediam de desenvolver plenamente a produtividade. A miséria e a escassez dariam lugar à plena abundância, e seria inimaginável que uma vitória política dos comunistas não tivesse como fundamento a sua vitória económica mundial. Nem faltaram as estatísticas para garantir aquele objectivo. Apesar disso…
A derrota do comunismo não data da constatação da incapacidade política e geopolítica da União Soviética, mas da sua incapacidade económica. Em vez de cumprir a meta do 22º Congresso, a evolução da economia soviética ao longo da década de 1980 mostrou que subjacente à planificação central e camuflada pelas estatísticas oficiais estava outra realidade, uma economia capitalista paralela fundada no clientelismo e na delinquência, que supria tanto quanto possível as deficiências dos planos governamentais e permitia às empresas obter meios de produção de que necessitavam e que a planificação não previra e escoar sub-repticiamente produtos que o mercado oficial não estava habilitado a adquirir. Foi nesta economia paralela que se acumularam os capitais capazes de sustentar mais tarde o vasto programa de privatizações. Antes de o Muro de Berlim ter sido demolido e leiloado aos pedaços, já os alicerces do sistema estavam destruídos. Ficaram em silêncio «les lendemains qui chantent», «os amanhãs que cantam».
A música mudou, e a tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos em 20 de Janeiro deste ano desencadeou a maior convulsão política e económica depois do colapso do comunismo soviético.
No que diz respeito à política interna, ainda hesito em afirmar que se trata já dos primeiros passos de um fascismo americano ou que está apenas a caminhar-se nesse rumo, entre outros possíveis. O certo é que, além de conduzir uma repressão contra os estudantes de esquerda sem precedentes desde o mccarthismo e que promete agravar-se, Trump tem aumentado a autoridade presidencial todos os dias — na acepção literal de todos os dias — enquanto lhe testa os limites em várias direcções, e sempre com êxito, começando mesmo a apresentar como verosímil um ilegal terceiro mandato. Num ápice, desapareceu o equilíbrio entre os três poderes, porque a inacção e as divisões internas do Partido Democrata consolidaram a maioria republicana nas duas câmaras do Congresso, e a hegemonia detida pelos juízes favoráveis a Trump no Supremo Tribunal Federal tem condenado à ineficácia a prática totalidade das tentativas dispersas de alguns juízes com estatuto inferior de se oporem às decisões presidenciais mais escandalosas.
Embora não baste o autoritarismo político para revelar o fascismo, este segundo mandato de Trump insere-se num campo que eu tenho considerado como definidor de todas as variantes de regimes fascistas, marcado pelo cruzamento de dois eixos.
Um eixo endógeno, que dá ao movimento o seu carácter socialmente radical, reúne partido, sindicatos e milícias. Ora, no hiato de quatro anos entre o seu primeiro e este segundo mandato, Trump conseguiu um domínio completo sobre o Partido Republicano, eliminando-lhe o carácter conservador que o caracterizara. Quanto aos sindicatos, convém saber que nos Estados Unidos a percentagem de trabalhadores sindicalizados tem diminuído continuamente desde os meados do século passado e é agora já um pouco inferior a 10%. Foi num quadro laboral assim definido que um número considerável de trabalhadores menos qualificados se mobilizou a favor de Trump e contribuiu decisivamente para lhe assegurar a vitória nas eleições. Esta componente operária afirmou-se independentemente das posições adoptadas pelas direcções sindicais. Por seu lado, as milícias de um fascismo radical, que já haviam ocupado o primeiro plano nos momentos finais da primeira administração de Trump, continuam agora a apoiá-lo e, sobretudo, articulam-se nas redes sociais as novas modalidades do que devemos designar como milícias virtuais. Mais importante ainda parece-me ser a actuação do Departamento de Eficiência Governamental (Department of Government Efficiency, DOGE), constituído fora do governo sob a chefia directa de Elon Musk, exclusivamente dependente de Trump, e que usa o pretexto da redução das despesas federais para encerrar organismos considerados de esquerda, expulsar pelo mesmo motivo muitos milhares de funcionários e recolher informações sobre outros milhares ou milhões de pessoas politicamente suspeitas. O que é este Departamento senão uma milícia privada do presidente?
Por outro lado, o eixo exógeno dos regimes fascistas, que lhes assegura a componente da ordem, reúne duas grandes instituições tradicionalistas — o exército e as Igrejas. É conhecido o papel das Igrejas no apoio a Trump, mobilizadas pela hostilidade ao aborto e pelo moralismo sexual. Quanto às forças armadas, é notável a destreza com que Trump conseguiu decepar-lhes algumas chefias e impor-lhes rapidamente um Secretário da Defesa da sua confiança e de perfil imprevisto. Mais subterraneamente, a nomeação como supervisora dos vários serviços secretos (Director of National Intelligence) de uma mulher que ainda há menos de dez anos era activa na ala esquerda do Partido Democrata revela a capacidade do eixo radical do fascismo para subverter internamente uma das principais bases do eixo conservador.
Se esta interacção serve para definir um regime fascista, a sua continuidade para além de Trump parece assegurada pela escolha de J. D. Vance para a vice-presidência, alguém em cujo percurso se fundem traços biográficos típicos do fascismo — os ecos da contestação social das camadas desfavorecidas e a ascensão nas elites na ordem.
Como se não bastassem estes factores para reforçar a convicção de que a actual administração Trump está realmente a consolidar um regime fascista, a convulsão política é maior ainda porque a sua acção ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos e expandiu-se velozmente a todo o mundo com repercussões económicas sem precedentes.
Trump aumentara selectivamente as tarifas aduaneiras aplicadas às importações provenientes de alguns países, mas o aumento generalizado que ele decretou em 2 de Abril deste ano e agravou nos dias seguintes, recorrendo para isso a uma matemática abstrusa, é surpreendente não só pelo caos que conseguiu lançar sobre a actividade económica dos cinco continentes mas, mais ainda, pela inspiração retrógrada que o norteia. Mesmo a suspensão anunciada uma semana depois para várias dezenas de países e outras suspensões parciais não impediram que, pela sua amplitude e pelo país que os decretou, os aumentos em vigor representassem a iniciativa mais perturbadora em toda a história do comércio mundial. Aliás, curiosamente, Trump preocupou-se apenas com a balança comercial dos bens materiais e não com a dos serviços, em que os americanos detêm geralmente uma posição excedentária.
Contudo, desde o final da segunda guerra mundial que o déficit dos Estados Unidos era apresentado pela crítica marxista como uma expressão do imperialismo, um benefício suplementar obtido pelos americanos devido ao facto de o dólar ser a principal moeda de reserva e o principal meio de pagamento no comércio internacional. E é perante esta situação que Trump, invocando justificações diversas consoante as ocasiões, pretende obrigar o resto do mundo a reduzir drasticamente o fluxo de exportações para os Estados Unidos. O governo americano recuou no tempo e adoptou o mercantilismo pré-capitalista.
De imediato, este reforço das barreiras alfandegárias implica uma redução da oferta de bens nos Estados Unidos, com o consequente aumento dos preços, ou seja, uma deterioração das condições de vida da população americana. E como, ao mesmo tempo, leva a uma súbita redução das exportações dos outros países, prejudicando-lhes a actividade económica e aumentando-lhes o desemprego, gera as condições de uma crise generalizada.
Porém, a economia actual é plenamente industrializada, tendo a agricultura e os serviços adoptado as normas da indústria, e assim os efeitos nefastos do proteccionismo não se circunscrevem ao âmbito comercial. Ao reduzir a importação de produtos estrangeiros, o aumento das taxas alfandegárias está também a limitar a concorrência que esses produtos poderiam exercer sobre os seus similares produzidos nos Estados Unidos. Ora, só a pressão da concorrência leva a acelerar o ritmo das inovações nos processos de produção. O isolacionismo e o proteccionismo têm como consequência o declínio da produtividade, por isso a guerra tarifária iniciada por Trump, além de provocar um aumento dos preços no interior do seu país, conduz à estagnação ou ao declínio das capacidades económicas americanas.
Decerto, Trump alega que a subida das tarifas, na medida em que dificulta, ou mesmo impede, os produtores em países estrangeiros de exportarem para os Estados Unidos, pressiona-os a abandonar esses países e a transferirem-se para os Estados Unidos, dinamizando assim a economia americana. Mas o argumento é demasiado simplista. As cadeias de produção não se deslocam com a velocidade das cotações na bolsa, porque criam raízes muito dispendiosas e dependem de infra-estruturas e de fornecedores, o que levanta sérios obstáculos à sua mobilidade. Por outro lado, Trump despreza aquilo que, antes de mais, levou as empresas americanas a deslocalizarem os seus processos produtivos — a obtenção noutros países de custos menores do que nos Estados Unidos. E dessa deslocalização, com as respectivas reduções de custos, resultam vantagens que beneficiam todos os consumidores, incluindo os americanos. Portanto, ao mesmo tempo que o aumento das taxas aduaneiras desincentiva a produtividade porque diminui a pressão exercida pela concorrência estrangeira, desincentiva-a também na medida em que se opõe à redução de custos propiciada pela deslocalização das cadeias produtivas.
«Ao minar a ultra-eficiente cadeia de abastecimento global, os Estados Unidos enfrentam agora o pior dos mundos», escreveu o Jornal Económico em 17 de Abril, referindo-se à indústria electrónica (aqui). Mas as repercussões das medidas anunciadas por Trump no dia 2 de Abril não se limitam às fronteiras americanas e deixam também os outros países perante «o pior dos mundos», deparando com três alternativas que são uma verdadeira armadilha. Ou se submetem às novas taxas aduaneiras, ficando assim expostos às consequências decorrentes da redução da sua actividade económica. Ou tentam obter algumas vantagens significativas negociando com a administração americana, o que parece difícil ou até impossível se Trump continuar apegado a uma argumentação económica mercantilista e pré-capitalista. Ou decidem acções de retaliação e aumentam as suas tarifas, mas neste caso reproduzem no interior das próprias fronteiras as consequências funestas do proteccionismo e todos são prejudicados, não só o país alvo, neste caso os Estados Unidos, como igualmente os que retaliaram. É uma guerra em que ninguém ganha. Talvez seja a China o único país em condições de retaliar com êxito, devido à dimensão potencial do seu mercado interno, às represálias que pode exercer contra grandes empresas transnacionais de base americana que executam na China segmentos fundamentais das suas cadeias de produção e ao facto de a concorrência entre empresas chinesas pelo desenvolvimento da produtividade estar já a ultrapassar a americana em sectores tecnológicos de ponta com grande projecção mundial. Mesmo que assim seja, isto não impede que o aumento das tarifas leve a situação económica na China a ficar pior do que estaria sem esse aumento.
Para agravar os problemas, Trump tem anunciado de um dia para o outro, até de uma hora para a outra, subidas e descidas das taxas aduaneiras, o que impede as empresas ou mesmo os simples investidores de procederem a qualquer planificação da sua actividade. Esta incerteza tem precipitado no caos as previsões económicas. Pior ainda quando Trump suspendeu por três meses a nova vaga de aumentos de tarifas que acabara de decretar, porque prolongou então o prazo da incerteza.
E a instabilidade repercutiu-se inevitavelmente no dólar que, sendo uma moeda americana e ao mesmo tempo mundial, mais ainda contribuiu para aprofundar e espalhar a crise.
Em suma, invocando argumentos arcaicos e alheios ao funcionamento próprio do capitalismo, Trump lançou não só o seu país, mas o resto do mundo numa crise económica de raízes estritamente políticas. Logo no dia 3 de Abril as bolsas, nos Estados Unidos como por todo o lado, desceram precipitadamente, reflectindo uma incerteza tanto mais grave quanto os seus motivos são exteriores à economia. No dia seguinte Jerome Powell, presidente do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos, alguém que por profissão e vocação deve ser discreto e comedido, violou os hábitos e preveniu que o aumento de tarifas decretado por Trump iria acelerar a inflação e retardar o crescimento económico. E num editorial da edição de 5 de Abril The Economist, que costuma medir bem as palavras, classificou aquela decisão de Trump como «o erro económico mais incompreensível, prejudicial e desnecessário da época moderna» («the most profound, harmful and unnecessary economic error in the modern era») (aqui). Mas teria sido apenas um «erro»?
Apesar do apoio estridente prestado a Trump pelas figuras representativas do Silicon Valley e malgrado o destaque de Elon Musk na ala extrema do novo fascismo americano, foi precisamente aquele sector o mais atingido pela queda das bolsas. Logo no dia 3 de Abril o NASDAQ, em que predominam empresas vocacionadas para a tecnologia da informação, desceu quase 6%, a Nvidia caiu 8% e a Apple e a Meta caíram ambas 9%. Em apenas dois dias a Tesla perdeu na bolsa 18 biliões de dólares, o que mesmo para Musk é uma quantia apreciável, e embora ele sugerisse no dia 5 de Abril a aplicação de tarifas zero nas relações comerciais entre os Estados Unidos e a União Europeia — uma proposta que foi depois apresentada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para o comércio de produtos industriais — e aproveitasse outras oportunidades para criticar a guerra de tarifas, o certo é que o fez indirectamente, sem hostilizar Trump. Só raros capitalistas americanos reclamaram em público, nomeadamente o presidente do banco JPMorgan Chase, e um grupo de empresários moveu uma fútil acção em justiça com o objectivo de impedir o aumento das taxas aduaneiras. Ter-se-iam os restantes capitalistas resignado a aceitar o caos provocado pela instabilidade das bolsas mundiais? Se Trump errou ao decretar o aumento generalizado das pautas aduaneiras, será que a grande maioria dos principais empresários e investidores errou também? Ou será o medo tão grande que os empresários se limitem a exprimir as suas inquietações detrás de portas fechadas?
É certo que no dia 15 de Abril Jerome Powell insistiu nas críticas, dizendo que as medidas anunciadas por Trump punham em risco o duplo objectivo da Reserva Federal de manter uma baixa inflação e impedir o aumento do desemprego. Mas Trump não tem poderes para o demitir e, embora nos últimos dias se tenha esforçado por isso e o insultasse publicamente, Powell não parece correr riscos, se bem que nos dias 22 e 23 de Abril The Economist começasse a inquietar-se com essa possibilidade (aqui e aqui).
De qualquer modo, o caos económico foi lançado por motivos que nada devem à racionalidade económica. Ora, penso ter mostrado no segundo volume de Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022) que a subsunção da economia à ideologia é um dos elementos definidores do fascismo, nomeadamente na sua forma mais extrema, o nacional-socialismo. Será que este prevalecimento dos critérios políticos sobre os interesses económicos poderá ser usado para avaliar a progressão do fascismo nos Estados Unidos? Terá a situação chegado realmente a tal ponto?
Estas duas enormes convulsões, a que transformou a política interna americana e a que perturbou toda a economia mundial, entrelaçam-se e potenciam-se na espectacular alteração das relações entre os Estados Unidos e a Rússia. Num artigo publicado recentemente no Passa Palavra (aqui) chamei a atenção para o facto de Trump, ao mesmo tempo que mantém Zelensky secundarizado nas negociações de paz, ter desde início adoptado os argumentos e os objectivos de Putin. E mesmo quando um acordo entre a Rússia e a Ucrânia parece estar cada vez mais longe, é na realidade uma carta-branca que Trump dá a Putin para prolongar indefinidamente a guerra em condições vantajosas. Esta convergência política teria como fundamento, por um lado, um acordo económico russo-americano e, por outro lado, a espoliação das riquezas do subsolo ucraniano pelos americanos, que além disso passariam a controlar a central nuclear de Zaporizhzhia. É esclarecedor que precisamente quando Trump anunciava a afrontosa subida das taxas aduaneiras Kirill Dmitriev, homem de confiança de Putin que dirige um importante fundo de investimentos russo, tivesse ido aos Estados Unidos encontrar-se com o factótum do presidente americano, Steve Witkoff. E talvez mais esclarecedor ainda é o facto de aquele aumento universal das tarifas poupar a Rússia, com o argumento de que é muito reduzido o comércio entre ambos os países, embora esse aumento atinja países com quem os Estados Unidos têm relações comerciais menores, ou mesmo quase nulas. Enquanto convulsiona a economia mundial, Trump examina com Putin um futuro de negócios em conjunto.
As consequências são ainda mais sérias, porque a aproximação de Washington a Moscovo e a guerra de tarifas confirmam o desenho de uma nova geopolítica, certificando o fim do tradicional eixo atlântico e acelerando o esvaziamento da NATO. Depois dos insultos do vice-presidente Vance aos europeus e das afirmações de Trump de que a União Europeia fora fundada para prejudicar os Estados Unidos, o facto de a Europa ser um dos principais alvos do aumento das taxas aduaneiras, agora suspenso, mostra que ela é considerada como um inimigo pelo actual governo americano. Ao mesmo tempo, Trump tem exigido sucessivos acréscimos dos gastos militares aos países membros da União Europeia, para que continuem a dispor da protecção americana na NATO. Este conjunto de circunstâncias leva os principais países europeus, acompanhados neste caso pelo Reino Unido, a ressuscitar a ideia da formação de um exército comum. E assim Trump assegurará mais dois grandes objectivos de Putin — o desmembramento da NATO, se a ruptura entre as duas partes da Aliança se verificar, e o enfraquecimento da União Europeia, se as tarifas impostas pelos Estados Unidos conseguirem debilitar-lhe a economia e acentuar-lhe as divisões internas.
Mas o movimento de umas peças neste puzzle implica que outras se movam também. A União Europeia, que até agora alinhara com o governo americano na hostilidade económica à China, vê-se na necessidade de alterar o rumo e, perante uns Estados Unidos que ameaçam fechar-lhe as portas, dirige-se a uma China que, por comparação, parece mais hospitaleira. Num artigo de 3 de Abril The Economist descreveu o novo jogo: «Enquanto os Estados Unidos erguem muros, a China tem uma oportunidade para redefinir as relações comerciais em todo o mundo, oferecendo-se para investir na indústria em países parceiros, em vez de os inundar com exportações» (aqui). É nesta perspectiva que a União Europeia, ao mesmo tempo que se esforça por expandir as suas relações comerciais na Ásia e na América Latina, prossegue agora negociações com os dirigentes chineses. Temos um horizonte próximo em que a União Europeia e a China encabecem o multilateralismo e a globalização capitalista. E assim estes países, tão distantes nas concepções sociais, na estrutura económica e nos sistemas de governo, abraçam-se por outros interesses. Inesperadamente, Trump fundou uma nova geopolítica no caos em que lançou a geoeconomia.
A extrema-esquerda, que desde há muito deixou de se preocupar com a transformação das relações sociais de trabalho para se ocupar exclusivamente de geopolítica — quer a tradicional, entre nações, quer a nova, entre identidades — deixou agora de saber para que lado se há-de voltar, como pretendo mostrar em seguida. Mas os caminhos são ainda mais sinuosos do que muitos imaginam.
A segunda parte deste ensaio pode ser lida aqui.
João Bernardo,
Uma das coisas que me chamou atenção no anúncio das tarifas dia 2 de abril foi o fato de Trump ter chamado um metalúrgico aposentado para fazer uma fala em sua defesa, dizendo que a medida ajudaria a retomar a indústria nos antigos polos americanos. Trump complementou dizendo que agora os sindicatos “estão todos do seu lado”. A United Auto Workers declarou apoio às tarifas. Não pude deixar de lembrar de uma frase de um artigo seu de alguns anos atrás: “A operação ideológica fundamental do fascismo consiste na conversão da luta entre classes numa luta entre nações”.
https://kentuckylantern.com/2025/03/21/uaws-embrace-of-trump-tariffs-could-lead-to-disaster-for-its-members/
https://passapalavra.info/2022/03/142611/
Minha análise foi semelhante a deste artigo, de que a questão da imposição das tarifas tinha mais a ver com uma questão ideológica do que com a racionalidade econômica, ainda mais ligando com todas as outras medidas adotadas em outras frentes, como nas deportações.
Observem o caso de Kilmar García, imigrante salvadorenho legal que foi deportado “por engano” para uma prisão em El Salvador e, mesmo após decisões judiciais determinarem sua liberação e retorno aos EUA, o governo diz que não as obedecerá, usando o próprio perfil da Casa Branca para marcar sua posição.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/18/fez-papel-de-bobo-trump-critica-senador-dos-eua-que-visitou-homem-deportado-por-engano-para-el-salvador.ghtml
Davi,
Com efeito, a questão da perseguição aos imigrantes e da sua deportação decorre da mesma subordinação da economia à ideologia, porque eles seriam uma mão-de-obra indispensável à relocalização das empresas estabelecidas no estrangeiro, que Trump pretende — ou diz pretender.
Pela forma como surgiram e pelo lugar onde surgiram, tudo isto são factos sem precedentes, e é lastimável que haja quem queira aplicar às novas questões as velhas respostas.
Se a resposta antecede a questão, trata-se de uma “velha resposta”.
Velha resposta >=< Dogma.
João Bernardo,
Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre uma corrente intelectual que me parece particularmente pertinente de analisar à luz da sua própria grelha de leitura.
O senhor já se interessou pelos pensadores chamados “neorreacionários”, oriundos (ou próximos) do meio da Silicon Valley: Peter Thiel, Curtis Yarvin (também conhecido como Mencius Moldbug), Marc Andreessen e, sobretudo, Nick Land, que batizou ele próprio esta corrente como Dark Enlightenment? Este movimento reivindica uma rutura radical com a democracia liberal e, de forma mais ampla, com a herança do Iluminismo.
Curtis Yarvin identifica a era de Roosevelt como o momento fundador de um regime dominado por uma nova classe de gestores estatais — uma leitura diretamente inspirada em James Burnham. Daí deduz a necessidade de um Estado governado como uma empresa, dirigido por um CEO e eleito por acionistas. De forma mais geral, estes autores defendem uma reabilitação do poder autoritário, não baseada na tradição, mas na suposta eficácia do tecno-capitalismo, em oposição frontal à burocracia estatal, que associam à esquerda e ao socialismo. Daí a ideia de “neorreacionário”: uma visão profundamente reacionária que toma o lugar de uma modernidade esgotada.
Nick Land vai ainda mais longe, ao descrever o surgimento de uma nova classe dominante: os “Tecno-Capitalistas” — Peter Thiel, Elon Musk, Jeff Bezos, entre outros. A partir da sua distinção entre o Estado Restrito (burocrático) e o Estado Amplo (redes empresariais e de poder económico), podemos ler esta ideologia como a expressão da vontade do Estado Amplo de se apoderar do Estado Restrito. Uma tentativa de conquista do aparelho estatal por parte de uma oligarquia tecno-industrial, contra a velha burocracia de Washington.
Estes pensadores dizem-se libertários, mas esta etiqueta parece-me ilusória: não querem menos Estado, querem outro Estado — integrando o despotismo das empresas nas próprias estruturas da ordem política. O que propõem assemelha-se a uma tomada total do Estado pelo Capital, até à ideia de um Estado Total privado… Nick Land compara, aliás, esta transição a uma “Segunda Revolução Gloriosa”.
Talvez confundam os seus sonhos — ou os seus pesadelos — com a realidade. Mas, como o senhor tantas vezes assinala, os discursos, mesmo delirantes, preparam ou acompanham a ação.
Gostaria muito de saber se já estudou estas correntes ou se refletiu sobre o seu alcance real.
Com respeito e interesse,
Texto traduzido com a ajuda da IA.
cleptodespotismo oligotecnofeudal perde
Antoine-G,
Nunca li directamente os autores que cita e só lhes conheço as ideias pelo que leio noutros artigos e estudos. Mas sejamos justos! Quem primeiro abriu o caminho para considerar que as empresas formam, por si próprias, um corpo político, não sendo necessária a existência de qualquer outro órgão de governo, não foi nenhum libertarian americano, mas um francês muito anterior — Claude Henri de Saint-Simon. Foi ele o notável precursor da aplicação de critérios empresariais ao Estado.
Caro, João Bernardo.
Uma entre as várias coisas difícil de compreender nesse quebra-cabeça é a posição de Musk. Como você menciona, a empresa dele perdeu um valor considerável em função do tarifaço de Trump.
Seria também uma manifestação da ideologia se sobrepondo à economia? Pensas que Musk está colocando em primeiro plano a ideologia?
Estaria o homem mais rico do mundo deliberadamente queimando bilhões de dólares por questões ideológicas?
Saudações cordiais,
VDR.
Caro VDR,
Com efeito, o caso é intrigante e não sei resolvê-lo, tanto mais que Trump, desde que foi reeleito presidente, tem inventado negócios pessoais lucrativos. Pode supor-se que Musk esperava ter benefícios e se enganou no cálculo, mas não gosto de explicações que atribuam a erros alheios a minha própria incapacidade de compreensão. Então, não sei.
O site Passa Palavra não publica comentários que contenham insultos pessoais.
Descontada a confessa incapacidade de compreensão, fica o benefício da dúvida: será que Trump inventava negócios pessoais lucrativos ANTES de ter sido reeleito?
Enfim, cada um tem a dúvida que merece…