Por João Bernardo

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A outra porta não abre

Em contraste com os sistemas económicos anteriores, a durabilidade do capitalismo não assenta na repressão dos conflitos, mas na sua recuperação. Para os empresários não se trata de recusar o fundamento das lutas sociais nem de negar a razão de ser das meras insatisfações difusas, mas de lhes responder de um modo em que a aceitação das reivindicações implique um aumento da exploração. Esta dialéctica resulta de uma assimetria entre aquilo que os trabalhadores exigem e aquilo que interessa aos patrões.

Os trabalhadores reivindicam o que, directa ou indirectamente, resulta numa maior disponibilidade de bens materiais e serviços, enquanto os capitalistas se interessam apenas por aumentar o tempo de trabalho que podem extorquir durante o processo de laboração. A exploração, tal como é definida pelo modelo da mais-valia, não consiste numa distribuição desigual de bens, mas de tempo — é o tempo que constitui a substância do capitalismo. Não se trata, porém, de um tempo linear nem uniforme. Se os capitalistas se limitassem à modalidade absoluta da mais-valia e, para agravar a exploração, exigissem jornadas de trabalho mais longas e intensivas, depressa o método se esgotaria, porque o dia tem só vinte e quatro horas e a fadiga ergue limites. Por isso, no actual sistema económico o tempo é plástico e adquire profundidade.

Se considerarmos como simples o trabalho executado por uma pessoa desprovida de qualificações especiais e operando com meios técnicos rudimentares, devemos então considerar complexo o trabalho realizado por alguém que adquiriu maiores qualificações e dispõe de meios técnicos mais sofisticados. Por comparação com o tempo de trabalho simples, o tempo de trabalho complexo como que se aprofunda, e as horas medidas pelo relógio são improcedentes para avaliar esta plasticidade. Se os trabalhadores reivindicam salários que lhes proporcionem mais bens e mais tempo de lazer, os capitalistas respondem com um aumento da complexidade do trabalho, assente na melhoria das qualificações dos trabalhadores e no aperfeiçoamento dos instrumentos com que laboram. Este aumento da complexidade do trabalho, por um lado, faz com que em menos horas medidas pelo relógio ocorra um maior dispêndio de tempo de trabalho avaliado como multiplicador do trabalho simples; e, por outro lado, faz com que seja produzido um número superior de bens, cada um deles incorporando menos tempo de trabalho do que o necessário na fase anterior e, portanto, representando custos menores. Assim, a resposta do capitalismo às reivindicações dos trabalhadores consiste em extorquir-lhes mais tempo de trabalho (medido em referência ao trabalho simples) e pagar-lhes com bens que (em referência ao trabalho simples) representam menos tempo de trabalho. É este o motor da mais-valia relativa, que tem como mecanismo a dupla faceta do aumento da produtividade — trabalhar mais tempo dentro de um menor período medido pelas horas do relógio e produzir uma maior quantidade de bens dentro desse período menor. Em vez de levar à revolução e ao colapso do capitalismo, a acumulação de conflitos sociais tem suscitado a mais-valia relativa, funcionando como o agente do progresso económico.

Ora, assim como os conflitos sociais não são homogéneos nem simultâneos e obedecem a dinâmicas variadas e muitas vezes imprevisíveis, também a produtividade não progride uniformemente, e esta heterogeneidade pode ser compreendida se reunirmos dois modelos bem conhecidos — a destruição criativa, tal como foi formulada por Schumpeter, e o desenvolvimento desigual e combinado, enunciado por Trotsky. A obtenção de novas qualificações pela força de trabalho, com a consequente adopção de novos meios técnicos adaptados a essas novas qualificações, não ocorre mediante pequenas remodelações graduais, mas implica a inutilização ou a degradação das qualificações e dos meios técnicos anteriores. Assim, o desenvolvimento do capitalismo é sempre irregular, embora todas as suas formas e fases se combinem numa estrutura única.

Ao longo do tempo, as consequências sociais desta heterogeneidade tornaram-se cada vez mais visíveis, sobretudo desde que a progressiva qualificação de uma parte crescente da força de trabalho levou à proletarização da actividade intelectual, que se demarca da actividade predominantemente manual da mão-de-obra menos qualificada. Este processo atingiu uma nova etapa com o trabalho virtual, e agora a Inteligência Artificial acentuou mais ainda a dicotomia da requalificação e desqualificação das aptidões de trabalho, com as consequentes divisões sociais entre os trabalhadores.

Antes de mais, agravou-se a cisão social entre, por um lado, os trabalhadores mais qualificados, sujeitos à mais-valia relativa, que, aos olhos dos restantes, e pior ainda, aos seus próprios olhos, aparecem ilusoriamente como uma elite; e, por outro lado, os trabalhadores menos qualificados ou recentemente desqualificados, sujeitos à mais-valia absoluta, incluindo as modalidades antigas de mais-valia relativa que, por comparação com as recentes, foram remetidas para o âmbito da mais-valia absoluta. Com efeito, a mais-valia relativa desenvolve-se em ciclos, e a dialéctica operada entre a requalificação e a desqualificação é um dos principais agentes da destruição criativa e do desenvolvimento desigual.

Nos países economicamente desenvolvidos são estes trabalhadores menos qualificados ou desqualificados, que a extrema-esquerda se habituara a considerar como a sua base política inerente, quem agora tem dado o voto decisivo à extrema-direita ou mesmo aos fascistas. A extrema-esquerda esforça-se por iludir esta questão, que é ainda agravada por dois lados. Primeiro, os trabalhadores mais qualificados, vistos como uma elite, são objecto da mesma hostilidade com que os trabalhadores menos qualificados encaram os capitalistas. É esta uma das funções da noção de classe média, que dissimula as clivagens de classe sob uma enganosa hierarquia de rendimentos. Em segundo lugar, aquela cisão social é agravada pela imigração em massa dirigida para os países desenvolvidos, provocando um aumento de oferta no mercado de trabalho menos qualificado, com a consequente pressão à baixa salarial. E se o populismo apresenta os trabalhadores mais qualificados como uma elite hostil, apresenta os imigrantes como uma ralé inimiga da mão-de-obra autóctone. Em suma, a destruição criativa e o desenvolvimento desigual e combinado têm efeitos drásticos na estrutura social dos trabalhadores, agravando as suas contradições internas a um ponto que torna a classe irreconhecível aos seus próprios olhos.

Na perspectiva histórica dos trabalhadores ou, pelo menos, na perspectiva que usualmente lhes atribuíamos, a situação é mais complexa e mais grave, porque sob aquelas mudanças sociais e políticas existem transformações tecnológicas. Ao mesmo tempo que a qualificação da força de trabalho foi atingindo novos patamares, desenvolveu-se uma infra-estrutura informática que permite a substituição das relações pessoais por relações virtuais. Ora, as relações pessoais expõem cada indivíduo à interferência de outros, proporcionando um tecido de interacções que atravessa múltiplos níveis sociais e lhes confere solidez, enquanto as redes sociais — ou ditas sociais — pressupõem aceitações e cancelamentos que, afinal, isolam cada indivíduo na multiplicação do idêntico. Este novo sistema de contactos e de transmissão de ideias, em círculos viciosos sem comunicação recíproca, mais ainda deteriora os elos de classe que já haviam sido postos fundamentalmente em causa pela heterogeneidade dos conflitos sociais e dos ciclos de mais-valia relativa.

Como se tudo isto não fosse preocupante, vivemos numa conjuntura mais grave ainda, porque os computadores e a rede electrónica que os liga permitem, pela primeira vez na história da humanidade, fundir o trabalho, o lazer e a fiscalização num conjunto único. Em todas as sociedades anteriores, e ainda durante os dois primeiros séculos do capitalismo, o trabalho e os ócios estavam claramente demarcados, muitas vezes até se destacavam por rituais. Porém, a internet e a generalização dos computadores pessoais criaram uma situação em que os mesmos meios técnicos servem de instrumento de trabalho e de equipamento para o lazer, com duas consequências imediatas sobre o processo de exploração. Antes de mais, a ausência de uma delimitação clara do período de actividade profissional dá aos patrões uma oportunidade para ampliar despercebidamente o tempo de trabalho. Além disso, o facto de os ócios terem a mesma infra-estrutura técnica que o trabalho converte inevitavelmente a actividade do lazer num adestramento para a actividade profissional, o que implica uma permanente qualificação do trabalhador e, por conseguinte, um acréscimo da mais-valia relativa em benefício do patrão.

Se a conjugação do trabalho e do ócio num conjunto tecnológico único tem como efeito o agravamento do processo de exploração, as consequências são ainda mais sérias porque esse conjunto tecnológico serve igualmente de infra-estrutura à fiscalização, tanto patronal como policial e política. O que quer que se faça na internet é vigiado e registado, e como as redes sociais constituem o quadro preferencial de relacionamento entre as pessoas, isto significa que toda a privacidade desapareceu não só para os indivíduos, mas também para os agentes da repressão. Assim, além de a disciplina de empresa se ter expandido até limites incalculáveis devido à partilha da mesma infra-estrutura pelo trabalho e pelo ócio, também o condicionamento social e político passou a dispor de utensílios sem precedentes. Seria difícil imaginar, por detrás de uma tão fascinante aparência de liberdade, uma generalização tão eficaz de barreiras à contestação, sempre prontas a funcionar.

Esta infra-estrutura tecnológica e o quadro social e político que nela se sustenta não teriam podido desenvolver-se se os trabalhadores, que em termos económicos continuam a constituir uma classe, definida pelo modelo da mais-valia, não tivessem deixado de agir como uma classe no campo social. Os marxistas saltam hoje alegremente de uma para outra acepção, como se aqui não residisse precisamente o problema — o maior de todos os problemas que enfrentamos. Porém, os elementos para a compreensão desta situação estavam já, e desde há muito, claramente formulados, porque o desenvolvimento desigual e combinado, pressuposto na destruição criativa, permite entender a dicotomia operada na classe trabalhadora entre os profissionais qualificados e a mão-de-obra não qualificada. E como a mais-valia relativa se reproduz ciclicamente, aquela cisão tende sempre a agravar-se. Aliás, a noção de destruição criativa ajuda a compreender que qualquer processo de aumento das qualificações de dadas categorias profissionais implique, por si só, um processo de desqualificação de categorias que até então eram qualificadas, o que contribui para piorar as cisões sociais entre os trabalhadores, com a consequente agudização das hostilidades recíprocas.

A incapacidade de compreender que o relacionamento social dos trabalhadores não se deve deduzir imediatamente do facto de eles pertencerem à mesma classe de produtores de mais-valia, ou seja, a adopção de uma noção demasiado simplista do quadro económico para justificar uma noção idealizada do contexto social representa a falência não do marxismo, mas dos marxistas. Eles confundem a exploração, que diz estritamente respeito à apropriação pelos capitalistas do tempo de trabalho dos trabalhadores e à plasticidade e ao possível aprofundamento desse tempo, com a desigual distribuição de bens materiais e serviços, que constituem modalidades congeladas do tempo de trabalho. A exploração incide nas relações sociais de trabalho, na forma como está organizado o processo de produção, em que uns controlam o tempo de trabalho alheio e os restantes são desprovidos de controle sobre o seu próprio tempo. Mas hoje os marxistas desvirtuam a luta contra a exploração, apresentando-a como um banal desejo de nivelar a distribuição dos rendimentos, e assim as perspectivas revolucionárias na crítica do capitalismo são substituídas pela apreciação do índice de Gini. A isto os marxistas reduziram o marxismo!

A falência dos marxistas tem a mais expressiva demonstração na solicitude com que adoptaram a ecologia e os identitarismos.

A ecologia fundamenta-se ideologicamente numa recusa moralista do capitalismo. Para Marx e Engels o capitalismo inaugurara, no desenvolvimento progressivo da humanidade, uma nova fase tecnológica, económica e social, que criara as condições da sua superação. Mas para isso, em vez de recusar em bloco tudo o que o capitalismo criou e cria, considerando-o como o epítome do Mal, seria necessário tomar como ponto de partida as realizações do capitalismo, para então as transformar, desenvolvendo com esse material um sistema socioeconómico novo, em que deixasse de existir a exploração da força de trabalho. Esta é uma das questões em que os marxistas actuais mais se distinguem do marxismo. Simetricamente, recordo que alguém escreveu que a crítica à ecologia é o único aspecto em que eu sou um marxista ortodoxo.

Para entendermos a noção de que o capitalismo cria as condições da sua superação devemos distinguir entre tecnologia e técnicas. A tecnologia é um sistema estruturado, que dita as formas que inspiram a criação ou o desenvolvimento dos seus elementos e as regras a que eles obedecem. Do mesmo modo que as palavras, quando são adoptadas por uma língua a partir de outra língua, enriquecem a língua de acolhimento mas, ao mesmo tempo, alteram alguma coisa na sua forma vocabular e passam a obedecer à nova estrutura sintáxica, também uma técnica pode ser desarticulada do sistema tecnológico que primeiro a gerou e inserir-se numa nova estrutura, que a modificará parcialmente e lhe ditará as regras a que passará a obedecer. O exemplo talvez mais esclarecedor, porque mais antigo, é a domesticação do fogo, que ocorreu inicialmente em sociedades em que a sua função económica era inseparável, ou mesmo indistinguível, do seu lugar nos mitos e rituais religiosos. Depois o fogo laicizou-se e tanto a sua produção como a sua conservação e os seus usos foram alterados, sem que nenhuma das novas tecnologias deixasse de adoptar aquela técnica. É nesta perspectiva que devemos considerar a possível superação do sistema capitalista partindo do aproveitamento de elementos técnicos gerados ou adaptados no capitalismo.

Pelo contrário, a ecologia pretende não a superação do capitalismo mediante o uso de elementos técnicos desarticulados desse sistema económico, mas a sua negação global, com a recusa de todas as suas técnicas. Em vez da noção de superação, que Marx e Engels conceberam na perspectiva do progresso histórico da humanidade, a ecologia pretende, afinal, a regressão a estádios históricos pré-capitalistas. A crítica à ecologia é um dos meus eixos de análise mais antigos e mais constantes, não vejo por isso necessidade de repetir aqui o que já existe espalhado por tantas páginas de muitos livros e artigos. Basta-me recordar que numa sociedade preenchida pelo enorme crescimento demográfico que o capitalismo suscitou e permitiu, a rejeição das técnicas capitalistas de cultivo e de fabrico corresponderia, literalmente, a um colossal genocídio. A negação da produtividade tem sido o grande tema dos ecologistas, dissimuladamente primeiro, depois explicitamente e até como bandeira de propaganda, mas preferem não explanar as consequências económicas e demográficas dessa negação.

No entanto, como na história não existe marcha atrás, é impossível a restauração de sistemas económicos e até culturais anteriores ao capitalismo, pretendida pelos ecologistas e pelos adeptos da curiosamente denominada Epistemologia do Sul. O pré-capitalismo desejado pela ecologia é mítico, e este mito foi-lhe fornecido pelos fascismos clássicos, com as suas ilusões sobre um campesinato estável, alheio às poluições e zelador da natureza — exactamente o contrário do que ele fora. O mito do camponês é um dos elementos recorrentes em todos os fascismos, apresentado de um modo tal que serve para lhe definir a função social e política. Porém, foi no nacional-socialismo germânico que esse mito assumiu as suas formas extremas, quando o Ministério dos Abastecimentos e da Agricultura do Terceiro Reich adoptou como doutrina oficial a agricultura orgânica.

Que depois da derrota militar dos fascismos este pedigree tenha sido ocultado por uns e ignorado pelos outros, numa sociedade em que a informação é aparentemente tão acessível, mostra até que ponto pode chegar o controle ideológico. Aliás, dou como exemplo o que sucedeu comigo. No primeiro livro que dediquei à crítica do movimento ecológico, O Inimigo Oculto (Porto: Afrontamento, 1979) (aqui), salientei a sua capacidade para fundir direitas e esquerdas. Escrevi então que «o movimento ecológico aparece desde o início como uma fusão das tendências políticas, até aí bem demarcadas, da direita e da esquerda» (pág. 154). Já perto do final, referindo-me à situação portuguesa daquela época, considerei que os jornais e revistas dessa persuasão «podem unir numa plataforma ecológica comum elementos oriundos da esquerda e da extrema-esquerda com representantes das direitas parlamentares ou até fascizantes». E fiz a prova dos noves. «A frequência desta conjugação não permite manter ilusões» (pág. 194). Apesar disto, só mais tarde, quando comecei a estudar detalhadamente o fascismo, me apercebi com alguma surpresa de que fora esse o campo de origem da ecologia.

Penso ter demonstrado com abundantes exemplos que o fascismo resulta sempre de uma convergência ou um cruzamento entre movimentos saídos da extrema-esquerda e outros da extrema-direita, em que alguns ecos de contestação social se repercutem em meios e ambientes vocacionados para a manutenção de uma certa ordem. Ora, pela forma como foi gerada e como mais tarde ressurgiu, a ecologia cumpre duplamente essa função, sustentando e articulando obrigatoriamente tanto os fascismos de tipo clássico como os fascismos do pós-fascismo, quero dizer, o identitarismo.

Que os marxistas actuais sejam atraídos irresistivelmente pelo vórtex da ecologia, participando assim num campo gerador do fascismo, é suficiente para revelar a sua falência política e ideológica. Esta falência não é menos grave quando os vemos adoptarem o identitarismo ou serem adoptados por ele.

A minha crítica aos identitarismos tem raízes muito antigas e já em O Inimigo Oculto, depois de afirmar que «a emancipação feminina relativamente a servidões tradicionais, o direito à homossexualidade e múltiplas outras reivindicações, que só podem dirigir-se ao âmago dos problemas quando integradas na luta central pela remodelação do modo de produção, são em vez disso reduzidas a mera expressão de inclinações individuais», eu concluí: «É possível que, deste modo, mulheres se emancipem e homossexuais vejam reconhecidos os seus direitos e a sua dignidade — mas nada obstará a que mulheres explorem mulheres, ou homens, e que um capitalista homossexual receba a mais-valia de proletários homossexuais» (pág. 113). Isto é exacto, como se confirma por tudo o que sucedeu nas quatro décadas e meia que se seguiram à publicação do livro, mas o problema é mais complexo.

Os identitarismos reproduzem hoje, numa época de transnacionalização do capital, a mesma dinâmica geradora do fascismo que, na primeira década do século passado, levara Corradini na Itália e Kita Ikki no Japão a formularem o conceito de nação proletária e aplicarem os termos da luta de classes ao confronto entre nações, confundindo assim ambos os extremos. Foi neste choque entre a revolta social e a ordem nacional que se gerou o fascismo clássico, e continuou a gerar-se de então em diante. Ora, tudo o que pode dizer-se acerca desta convergência, ou fusão, entre os extremos pode repetir-se a propósito do identitarismo. As identidades ultrapassam as fronteiras, mas cada uma delas é tão real ou tão mítica como uma nação, com a sua história recriada em fábulas e fantasias. E se o fascismo clássico, para justificar como uma merecida reparação o engrandecimento da nação, a classificava de proletária, também as identidades legitimam a sua ascensão a nova elite pretendendo-se vítimas. Uma nação proletária e uma identidade vítima são equivalentes.

A situação é mais grave ainda, porque se as identidades são transnacionais e não se delimitam por fronteiras, só podem delimitar-se por características físicas, visíveis ou imaginadas. Ora, entre os fascismos clássicos o nacional-socialismo foi o único que pretendeu ultrapassar as fronteiras de um Reich e abranger todo o mito de uma Raça Nórdica, tendo para isso de proceder a uma dupla operação. Por um lado, para melhor estabelecer os seus limites foi-lhe necessário inventar uma anti-raça. Por outro lado, perante a indefinição do que poderia ser fisicamente uma raça nórdica, os nacionais-socialistas tiveram de admitir uma dupla circulação entre biologia e ideologia, de modo que quem assumisse uma ideologia nórdica teria um físico considerado nórdico, mesmo que não o tivesse; e, se o tivesse, deduzia-se que seria nórdica a sua ideologia. Esta mesma circulação entre biologia e ideologia encontra-se agora nas identidades, cada qual invocando um ou outro destes aspectos para presumir ser o que pretende. E também cada identitarismo necessita de uma anti-identidade — escusado será dizer qual ela é.

Não haverá solução? Será que tudo se há-de reduzir a sucessivas remodelações internas do capitalismo? Se houver solução, ela só poderá surgir das pessoas comuns, alheias aos sistemas ideológicos; das pessoas que pensam pela sua própria cabeça e não se mobilizam por modas. E demorará muito tempo, o que for necessário. Como Melanie Rae Thon advertiu em Sweet Hearts: «Será possível perdermo-nos, se não nos importamos para onde vamos?» («Is it possible to be lost, if you don’t care where you are going?»). É uma guerra de mil anos.

A primeira parte deste ensaio pode ser lida aqui.

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