Por Manolo
Depois de ver na segunda parte como o contexto internacional posterior à crise de 2008-2011 criou condições para a eclosão ou fortalecimento de movimentos populistas, fascistas e para-fascistas; depois de ver na terceira parte como um setor em meio aos capitalistas brasileiros conseguiu usar a exportação de capitais para sobreviver à crise econômica iniciada em 2011 e à crise recessiva de 2014-2016, condenando os demais a enredar-se numa teia de problemas; depois de ver na quarta e na quinta partes como os capitalistas fizeram no Brasil para lançar sobre os trabalhadores a conta de suas crises; depois de ver na sexta parte como se estrutura o espaço político-partidário brasileiro; agora é hora de ver como tudo isto se entremeou com as tendências de longo prazo da formação social brasileira para oportunizar a eclosão de novos movimentos sociais de extrema-direita, como suas temáticas ressoam pela sociedade, como abrem um campo de oportunidades para o populismo e o fascismo.
É preciso começar analisando que fatores exteriores a um movimento fascista propriamente dito podem tê-lo gestado. É a isto que chamo – empregando a metodologia de João Bernardo para análise do fascismo – de eixo exógeno.
O primeiro e mais clássico elemento deste eixo são as forças militares e paramilitares.
Via de regra quem fala em forças paramilitares e milícias quanto ao fascismo clássico refere-se aos squadristi italianos ou aos Sturmabteilung alemães, reservando ao eixo exógeno apenas as forças armadas; ocorre que hoje as forças armadas encontram-se em posição numericamente inferior à das forças privadas de segurança, que por isto, pelo exercício de funções profissionais desvinculadas da orientação por parte de organizações políticas e pela legalidade de sua atuação, devem ser agregadas às forças armadas. Unem-nas certa ética e mística da guerra, da força e da violência; o disciplinamento de trabalhadores; a circulação de pessoas entre seus quadros e o compartilhamento de técnicas. Estes elementos militares e paramilitares da sociedade brasileira serão analisados quanto à sua evolução, funcionamento, formas de mobilização interna e recrutamento e ideologia.
Mas ora, muitos dos temas e práticas das forças militares e paramilitares encontram-se também no crime organizado. Para piorar, não são poucas as organizações criminosas que funcionam em moldes similares aos de uma empresa lícita, regular e legal, com livros-caixa, anotações e apontamentos bastante complexos, registros de estoque etc. Por isto mesmo, o crime organizado será enquadrado aqui como parte das forças militares e paramilitares.
O segundo elemento deste eixo é o fundamentalismo religioso. Não se trata, como no fascismo clássico, do conservadorismo católico e suas raízes ultramontanas. No contexto brasileiro, é isto e mais. Há os adeptos da teologia da prosperidade, com seu elemento disciplinador da força de trabalho. Há o conservadorismo moral a agregar num só bloco os fundamentalistas em meio aos católicos, protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais. Há as formas de organização das igrejas pentecostais e neopentecostais, muito mais flexíveis que a hierarquia católica, favorecedoras de uma expansão aceleradíssima das igrejas protestantes. Ressalte-se aos leitores desatentos que os aspectos puramente teológicos e místicos não interessam a esta análise; o fundamentalismo religioso interessa apenas em seus efeitos sociais, ou seja, interessa menos a “verdade” ou a “falsidade” de tal ou qual escola teológica que o fato de determinados comportamentos sociais encontrarem nela sua justificação.
Em seguida, há o eixo endógeno, ou seja, as organizações e instituições onde atuam os fascistas, onde eles encontram expressão política própria, onde agregam seus quadros.
O elemento mais tradicional, comentado e esperado neste eixo são os partidos e milícias fascistas, inexistentes na atual conjuntura nos mesmos moldes em que existiram no passado. Em especial no caso brasileiro, apesar de haver pequenas organizações assumidamente fascistas, o que há são movimentos difusos.
Outro elemento tradicional deste eixo são os sindicatos. Os temas do fascismo clássico foram também desenvolvidos em meio a certas vertentes muito específicas do sindicalismo revolucionário na França e na Itália, nomeadamente os seguidores de Georges Sorel, Édouard Berth, Hubert Lagardelle, Gustave Hervé, Georges Valois, Arturo Labriola, Angelo Oliviero Olivetti, Filippo Corridoni, Sergio Panunzio, do grupo La Lupa, do Fascio Rivoluzionario d’Azione Internazionalista, do Cercle Proudhon etc. Não tanto pelo fato de serem sindicalistas, mas pelo fato de o sindicalismo (aqui entendido de forma muito lata) ser a fração mais significativa dos movimentos anticapitalistas dos primeiros anos do século XX. Não tanto pelo corpo da doutrina sindicalista revolucionária, mas pela convergência em meio a ela de temas próprios do movimento operário com o nacionalismo, o elitismo, o antiintelectualismo, o voluntarismo heroico e outros.
Ora, vistas as coisas cem anos depois é preciso ter em conta a circulação do mesmo ideário em meio aos movimentos anticapitalistas atuais. Ou seja: de que forma, por que meios os temas mais característicos da direita circulam nos meios de esquerda, nos meios anticapitalistas?
Esta parte do ensaio iniciará a análise dos elementos integrantes do eixo exógeno do fascismo à brasileira.
Eixo exógeno: forças armadas, forças auxiliares, forças privadas de segurança, crime organizado
Forças armadas e auxiliares
No contexto brasileiro, por força de definição constitucional, existem tanto as forças armadas que se reconhece facilmente no Exército, Marinha e Aeronáutica (CF, art. 142) quanto as forças auxiliares representadas pelas polícias militares e corpos de bombeiros militares estaduais, que também são reserva do Exército (CF, art. 144, § 2º). Além disto, há que se considerar a formação de um corpo de reservistas pelo contingente que concluiu o serviço militar obrigatório, pelos oficiais formados nos Centros de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) e Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva (NPOR) e pelos cerca de 230 tiros de guerra existentes em cidades de porte pequeno e médio. Para que se entenda o papel desempenhado pelas forças armadas e auxiliares no desenvolvimento de tendências conservadoras e fascistas na sociedade brasileira, é preciso compreender o desenvolvimento histórico de seus métodos de recrutamento e de disciplina interna, pois são estes dois elementos os traços definidores das forças armadas não a partir de seu óbvio papel bélico, mas de suas funções de formação da força de trabalho.
Em tempos passados, no Brasil como alhures, foi comum o recrutamento forçado para as forças armadas. Qualificar como forçado o recrutamento não é nenhum exagero: até aproximadamente o século XIX, homens eram literalmente sequestrados por oficiais de recrutamento para servir nas forças armadas, sequestro este que se dava tanto em instituições penais (delegacias, cadeias, presídios, calabouços etc.) quanto em áreas urbanas e rurais onde os oficiais de recrutamento reconheciam de antemão a frequência por indivíduos “indesejáveis” que eram capturados para conscrição. Via de regra havia uma série de isenções neste modelo, pelas quais determinadas profissões, classes sociais, grupos etários etc. eram retirados da mira dos recrutadores; havia, de igual maneira, o instituto da substituição, pelo qual o serviço militar poderia ser prestado por algum tipo de substituto (alguém pago por indivíduos ricos para prestar o serviço em seu lugar; escravos enviados para as guerras no lugar de seus senhores etc.) ou era diretamente substituído por uma quantia em dinheiro mediante a qual indivíduos abastados compravam sua isenção. Os muitos nomes pelos quais o fenômeno foi identificado em várias línguas (impressment, presse, levy, levée, leva, servizio di leva, värnplikt, voinskaja objazannost etc.) testemunham tanto sua ubiquidade quanto a circulação de práticas semelhantes.
No caso brasileiro, as Instruções implementadas pela Decisão nº 67 de Ministério da Guerra, de 10 de julho de 1822 permaneceram em vigor até 1874, quando foi revogada pela Lei 2.556, de 26 de setembro de 1874. O caráter disciplinar do recrutamento é explícito. A exposição de motivos da Decisão 67 reconhece a “necessidade de um mais activo Recrutamento, que, sem detrimento das Artes, e Navegação, Commercio, e Agricultura, fontes da prosperidade publica, comprehenda os indivíduos, que por nenhuma publica occupação, ou legal industria, viveiros de criminosa occiosidade, só lhes servem de impedimento”, em todos os casos “enquanto praticarem seus ofícios e demonstrarem bom comportamento”. A mensagem era muito evidente: homens que não trabalhassem, que não obedecessem às autoridades e não vendessem sua força de trabalho ou se alistassem na Guarda Nacional (que funcionava como reserva) seriam recrutados – nem se adjetivava o recrutamento como forçado, pois na época este substantivo já continha implicitamente o caráter compulsório, mesmo violento do recrutamento. A Decisão 67 foi complementada por um decreto, de 20 de novembro de 1835, que estabeleceu quinze dias do ano em que cidadãos poderiam se voluntariar ao Exército com algumas vantagens, e manteve para o resto do ano o recrutamento forçado, orientando que qualquer recrutado por este método “será conduzido preso ao quartel, e nelle conservado em segurança, até que a disciplina o constitua em estado de se lhe facultar maior liberdade”.
Estavam sujeitos ao recrutamento pelas instruções da Decisão nº 67 “todos os homens brancos solteiros, e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 annos”, desde que não se enquadrassem em algumas exceções: “caixeiros de lojas de bebidas, e Tabernas, sendo solteiros, e de idade até 35 annos”; “milicianos impropriamente alistados, e que não estiverem fardados, ou não subsistirem de uma honesta, e legal industria”; “homens casados”; “o irmão de orphãos, que tiver a seu cargo a subsbtencia, e educação delles”; “o filho unico de lavrador, ou um á sua escolha, quando houver mais de um, cultivando terras ou proprias, ou aforadas, ou arrendadas”; “filho único de viuvas”; “o feitor, ou administrador de fazendas com mais de sei:l escravos, ou plantação, ou de criação, ou de olaria”; “tropeiros, boiadeiros, os mestres de officios com loja aberta, pedreiros, carpinteiros, canteiros, pescadores de qual discrição, uma vez que exercitem os seus officios effectivamente e tenham bom comportamento”; “marinheiros, grumetes, e moços, que se acharem embarcados, ou matriculados”; “arraes, effectivos de barcos de conduzir mantimentos, ou outros generos”; três caixeiros “nas casas de commercio de grosso trato”, dois “nas de segunda ordem” e um “nas de pequena”; por fim, “estudantes que apresentarem attestados dos respectivos professores, que certifiquem a sua applicação, e aproveitamento”.
A legislação imperial posterior mostra a dinâmica da luta de classes durante o Império. Os oficiais eram recrutados não por meio dos sequestros, mas de instituições como o cadetismo, pelo qual só seriam admitidos ao oficialato aqueles que pudessem provar ancestralidade nobre “de quatro costados” (ou seja, que tinha avós nobres), critério alargado entre 1809 e 1820 por medidas habilitadoras dos filhos de oficiais aos quadros do oficialato; ou como os soldados particulares, que permitiam o acesso ao oficialato de filhos da “nobreza civil” (os doutores em leis e medicina, ou os comerciantes “de grosso trato” e demais indivíduos abastados). Com o tempo, novas legislações foram instituindo novas isenções aos mais bem situados na estrutura social, como a possibilidade de isentar-se ao serviço militar por meio de substituições ou da compra de exempções. A proibição do recrutamento de filhos únicos de viúvas era praticamente inócua em cidades como Salvador, onde apenas pequena proporção da população era casada “de papel passado” na igreja católica, via de regra os mais bem posicionados na sociedade escravista. Os negros livres, que de início estavam isentos do recrutamento, foram nele incluídos pela Decisão nº 560 do Ministério da Guerra, de 3 de novembro de 1837 por uma artimanha semântica simples: os recrutadores foram orientados a “não excluir do recrutamento os pretos crioulos, visto que a Lei não os exclue” – mas, como visto, também não os incluía. Mais do que um sentido hermenêutico, importa saber que, não por acaso, em 1837 ocorreu a Sabinada, e dois anos antes, em 1835, a repressão à Revolta dos Malês pôs fim a um ciclo de revoltas de negros escravizados, mas estourou no Grão-Pará a Cabanagem, onde os negros livres e aquilombados tiveram papel decisivo; o recrutamento servia para retirar de circulação os “criminosos” e “desordeiros” quando a simples perseguição penal não o conseguia; o recrutamento pós-Sabinada, por exemplo, resultou no sequestro de cerca de mil rebeldes para as forças armadas no Rio de Janeiro imediatamente após o esmagamento da revolta, e também centenas de outros encontrados em fuga nos municípios baianos nos meses que se seguiram, ao ponto de o juiz de uma destas localidades reclamar da escassez de algemas para lidar com os recrutados.
O sistema de recrutamento forçado era característico das sociedades do ancien régime, das monarquias absolutas e de seus resquícios feudais. Sua estrutura rígida, nobiliárquica, baseada em conscrições forçadas e na capacidade dos aristocratas de manter grandes exércitos regulares às suas próprias custas como sinal de poder, foi sendo substituída pelos chamados exércitos nacionais, constituídos pelo recrutamento por conscrição universal ou por sorteio entre cidadãos alistados (no sentido mais forte do termo, ou seja, “postos numa lista”). Foi apenas a gradual implementação do Krümpersystem criado pelos generais prussianos Gerhard von Scharnhorst e August von Gneisenau para o exército prussiano na primeira década do século XIX que marcou a substituição do sistema de recrutamento forçado pelo da alternância entre militares da ativa e da reserva, pelo sistema de conscrição universal por sorteio e pela disciplina sem uso de castigos corporais. No caso brasileiro, a Lei 2.556 já referida foi uma tentativa de instituir um sistema combinado de voluntariado e sorteio de alistados para a formação das forças da ativa, mas, além de haver permanecido na própria lei o jogo de isenções, substituições e compra de exempções, o alistamento foi deixado a cargo de juntas paroquiais presididas pelos juízes de paz e completadas pelo padre e pelo delegado de cada freguesia – justamente quem pretendia se livrar dos “criminosos”, “desordeiros” e “indesejáveis” de sempre; como o sorteio só colhia aqueles a quem a junta alistara, o número de conscritos apresentados pelas paróquias via de regra mantinha-se inferior ao exigido pelas leis de mobilização militar, e o recrutamento forçado era empregue para suprir as vagas restantes.
Mesmo a Lei 1.860, de 4 de janeiro de 1908, que instituiu ainda outra vez o sistema de sorteio de alistados e aboliu o recrutamento forçado, demorou para pegar. Houve resistência encarniçada ao sorteio militar, tanto por parte da Confederação Operária Brasileira (COB) quanto da Liga Antimilitarista Brasileira, por parte dos trabalhadores, quanto, do lado dos gestores e burgueses, pelo Apostolado Positivista do Brasil; tipifica bem esta oposição uma representação contra o sorteio movida ao Congresso brasileiro em 1907 pela Associação dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro por afirmar que “desorganiza de um modo radical as classes produtoras do país” – decerto por acabar com as muitas isenções profissionais e instituir a obrigatoriedade do alistamento para todos os cidadãos, não apenas para os “indesejáveis”. Apesar da promulgação da lei, em muitos relatórios ministeriais da Primeira República brasileira vê-se, nas estatísticas, uma fonte de recrutamento indicada como “outra”, que chegou a responder por 50% do recrutamento para a Marinha em 1920 (contra 12,48% de voluntários e 37,51% de recrutados nas escolas de aprendizes navais): trata-se da permanência do recrutamento forçado. Ainda em 1913, Estêvão Leitão de Carvalho afirmou num artigo publicado numa revista de militares reformadores que as principais fontes de recrutamento eram: a) os nordestinos afugentados pelas secas; b) os desocupados das grandes cidades que procuravam o serviço militar como emprego; c) os criminosos mandados pela Polícia; d) os inaptos para o trabalho (“O voluntariado do Exército”. A Defesa Nacional, vol. I, nº 2, nov. 1913, pp. 40-43). Num tal ambiente, não é de espantar a constância da violência disciplinar, e também os comportamentos rebeldes. Conquanto a Lei 2.556 tenha abolido os castigos físicos em 1874, fê-lo somente no Exército, deixando a Marinha livre de tais restrições até a Revolta da Chibata em 1910; para piorar, sequer no Exército tais castigos foram extintos pela lei, perdurando ainda por algumas décadas. Brigas, roubos e bebedeiras eram rotina entre os militares fora e dentro dos quarteis, e a população aterrorizada via o recrutamento com verdadeiro horror, receando integrar os quadros das forças armadas.
É na década de 1910 que um grupo de oficiais treinados na Alemanha entre 1906 e 1912, ironicamente chamados de “jovens turcos”, faz intensa campanha pela reforma das forças armadas; Olavo Bilac, tido como “patrono do serviço militar” pela intensa campanha que fez em prol da conscrição por sorteio, foi apenas um entre muitos dos convencidos pelos “jovens turcos” a mobilizar-se em prol da reforma das forças armadas. Conseguem pautar eficazmente a retirada das autoridades civis de todo o controle sobre o alistamento, transferindo-o para o Exército e eliminando o recrutamento forçado. Em 1916, depois de muita polêmica e da ação incisiva da COB (cujo congresso de 1913 reforçara a luta antimilitarista), foi realizado o primeiro sorteio nacional de cidadãos alistados; a rejeição era tão grande que houve quem impetrasse habeas corpus para se livrar da conscrição, sem sucesso. Em 1918 foi instituída a obrigatoriedade da apresentação da carteira de reservista para a posse em cargos públicos, estendida em 1945 à expedição de identidade e passaporte e ao acesso à Justiça do Trabalho. No mesmo ano foi extinta a velha Guarda Nacional, e também reorganizada a Confederação Brasileira do Tiro, fundada em 1896 e posta agora sob controle do Exército com o novo nome de Confederação do Tiro de Guerra, origem dos atuais “tiros de guerra”. A formação de militares, que se dera na escola militar da Praia Vermelha (1858-1904) num clima muito mais acadêmico e de formação de doutores burocratas que propriamente bélico, foi transferida primeiro para a Escola de Guerra de Porto Alegre (1906-1910) e depois, definitivamente, para a escola do Realengo (1913-1944), cujo acesso se dava por meio de testes públicos de admissão; ainda que o positivismo houvesse sido paulatinamente extirpado das escolas militares desde 1904, o ideal de um oficialato “profissional e apolítico” imposto pelo regimento interno de 1913 cedo enfrentaria a oposição daquele do soldado-cidadão que fez a cabeça da geração tenentista, responsável por tantos e quantos levantes propriamente militares ou pela participação intensa do oficialato na política brasileira durante a maior parte do século XX. Foi o sistema de sorteio, afinal, quem substituiu o recrutamento forçado, com algumas variações impostas pelo Decreto 12.790, de 2 de janeiro de 1918; pelo Decreto 14.397, de 9 de outubro de 1920; pelo e pelo Decreto-lei 1.187, de 4 de abril de 1939. O regime vigeu até 1945, quando o Decreto-lei 7.343 substituiu-o pelo regime de convocação geral. É este o sistema de recrutamento que segue atualmente em vigor, guardadas algumas especificidades próprias a cada regime constitucional e algumas reformas importantes instituídas pelo Decreto-lei 9.500, de 24 de julho de 1946 e pela Lei 4.375, de 17 de agosto de 1964.
As forças armadas cumprem hoje funções outras além da pura repressão armada e do disciplinamento brutal dos trabalhadores mais rebeldes, ainda mais quando desde a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial as forças armadas dedicam-se ou ao apoio às forças de paz da ONU (Suez, Timor Leste, Moçambique, Angola, Haiti), ou ao combate a “inimigos internos” (em especial no caso das guerrilhas do Vale do Ribeira, do Caparaó e do Araguaia e no apoio as operações de garantia da lei e da ordem (GLO) e intervenções). A rarefação dos engajamentos militares brasileiros dissolveu ainda outra clivagem anteriormente existente nas forças armadas: aquela entre os oficiais formados nas escolas militares (os “doutores”) e os oficiais alçados aos postos superiores por promoções de combate, via de regra pouco cultos (os “tarimbeiros”).
Ainda no que diz respeito ao recrutamento, as forças armadas brasileiras seguem uma tendência internacional: a de voluntariato do serviço militar. Mesmo que a Estratégia Nacional de Defesa, publicada em 2008 e revista em 2012, mantenha a obrigatoriedade do serviço militar, o número de vagas disponíveis para novos recrutas é muito maior que o de jovens a se apresentar nas juntas de serviço militar nos períodos de alistamento; em 2013, dados do Ministério da Defesa apontavam que, no Brasil, são alistados por ano para o serviço militar cerca de dois milhões de jovens, dos quais 600 mil eram designados para a segunda fase e somente 200 mil chegavam, efetivamente, ao serviço militar. O processo seletivo para estas vagas é, portanto, rigoroso, levando a meios informais de seleção. Nos municípios maiores, por exemplo, onde costuma haver muito excesso de contingente, basta a um jovem apresentar ao médico qualquer doença para escapar do serviço militar por questões de saúde. Em municípios de regiões metropolitanas onde não está instituído o tiro de guerra, basta arrumar um comprovante de residência de um “parente” para ser enquadrado no excesso de contingente, jurar a bandeira no mesmo dia e pegar o certificado de reservista em uma semana. Há muitíssimos outros meios, tantos quantos as possibilidades de momento e as brechas legais permitam. Por tais expedientes, os candidatos remanescentes – que ainda são superiores em número à quantidade de vagas – são apenas aqueles que realmente desejam prestar o serviço militar, e a seleção vai-se dando apenas entre aqueles que realmente desejam ser aprovados. Deste modo, de legalmente obrigatório como ainda é, o serviço militar passa, por meios informais, a ser voluntário.
E quem são os jovens que realmente desejam prestar o serviço militar? Neste aspecto, as forças armadas brasileiras seguem ainda outra tendência internacional: a de separação marcante entre as origens sociais de oficiais e praças. A literatura internacional mais recente (ver aqui, por exemplo) indica que esta separação tem sido a regra. Na Grã-Bretanha, onde o serviço militar é voluntário, uma campanha publicitária recente das forças armadas tem sido acusada de focar seu público em jovens em situação de privação social e econômica, o que tanto pode ser interpretado como uma chance de mobilidade social ascendente aberta a estes jovens (e também a outros de estratos sociais diferentes) quanto como a oferta da carreira militar como a única chance que estes jovens terão na vida para melhor explorá-los num trabalho reconhecidamente perigoso e mal-remunerado (ver aqui e aqui). Nos EUA, onde o serviço militar é também voluntário, um estudo do ano 2000 demonstra estatisticamente a conclusão – um tanto óbvia, mas que precisava de algum nível empírico de confirmação – que as taxas de alistamento são mais baixas entre indivíduos com pais portadores de diploma universitário, altas notas e planos de custeio dos estudos universitários, enquanto as taxas de alistamento são mais altas entre afro-americanos, hispânicos e outras minorias étnicas e estratos mais economicamente vulneráveis da classe trabalhadora; antigo como seja, tal estudo corrobora a hipótese de outro estudo semelhante, desta vez tendo como base o alistamento militar estadunidense de 1972.
No caso brasileiro, embora a conscrição universal, formalmente, “nivele” a prestação do serviço militar obrigatório entre cidadãos de classes sociais distintas, os muitos meios informais de evitar o serviço militar são decerto mais acessíveis àqueles que possam usar de influência social, econômica e política para escapar à conscrição. De modo parecido, embora a seleção pública por meio de provas de aptidão seja o método de entrada para as escolas de oficiais como a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), o Instituto Militar de Engenharia (IME), o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), a Academia da Força Aérea (AFA) e a Escola Preparatória de Cadetes do Exército(EsPCEx), o altíssimo nível de dificuldade das provas cria um ponto de corte muito exigente, alcançado apenas pelos mais estudiosos e disciplinados, via de regra oriundos ou dos colégios militares, de escolas técnicas federais ou de escolar particulares, onde o investimento por estudante é maior e, portanto, melhores as condições para o pleno desenvolvimento intelectual. (Descontamos, evidentemente, os testes de aptidão física.) Este mecanismo, embora não determine a exclusão absoluta dos jovens trabalhadores que desejem ingressar no oficialato, impõe-lhes restrições muito grandes, superáveis apenas por esforços imensamente desproporcionais àqueles dos jovens filhos de burgueses e gestores que tiveram acesso a maiores investimentos escolares e familiares em sua formação.
Daí que seja, hoje, a face “social” das ações das forças armadas e auxiliares o que contribui para conquistar corações e mentes. Os quarteis, bem ou mal, oferecem moradia, alimentação e salário a jovens trabalhadores, em especial para aqueles mais precarizados. Esta vocação das forças armadas como uma instituição promotora da mobilidade social ascendente, visível desde os tempos do Império e fortalecido pelas reformas republicanas e varguistas, ganha na atualidade contornos próprios.
Veja-se o Programa Soldado-Cidadão, iniciativa das forças armadas existente desde 2004 em todo o território do país que já envolveu quase 200 mil jovens; em resumo apertado, trata-se da oferta pelas forças armadas de “cursos em conformidade com a demanda do mercado de trabalho regional”, onde as escolas técnicas e militares “são parceiras na capacitação dos jovens que estão deixando a farda para retornar à vida civil”. Entre as áreas de qualificação disponibilizadas aos recrutas estão: telecomunicações, mecânica, alimentação, construção civil, artes gráficas, confecção, têxtil, eletricidade, comércio, comunicação, transportes, informática, vigilância, pintura e saúde.
Veja-se também a retomada do Projeto Rondon, criado em 1968 como forma assistencialista de extensão universitária para engajar jovens acadêmicos em causas assistenciais e retirá-los, assim, da esfera de influência das organizações opositoras à ditadura militar que tinham nas universidades um campo privilegiado de atuação. O projeto foi encerrado em 1989, mas retomado em 2005; já realizou 76 operações, em 1.142 municípios de 24 unidades da federação, com a participação de 2.170 instituições de ensino superior e 21.436 rondonistas (universitários e professores), alcançando cerca de 2 milhões de pessoas. Em 2016, 604 rondonistas desenvolveram ações em 29 municípios do Maranhão, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Espírito Santo.
Veja-se também o funcionamento dos tiros de guerra. Trata-se de um convênio entre as forças armadas, que fornecem instrutores (sargentos e subtenentes), material e farda, e prefeituras municipais, que fornecem as instalações; este convênio realiza-se por meio de um curso de quarenta semanas onde jovens em idade para alistamento militar aprendem elementos básicos da disciplina militar, têm aulas de tiro e de táticas militares (como o controle de distúrbios civis), recebem “palestras por conceituados membros da comunidade”, realizam “visitas a entidades públicas e privadas, para conhecimento das realizações e possibilidades do município em todos os campos de atividades”, e são orientados a desenvolver “participação na vida comunitária, cooperando na instrução de ordem unida e educação física nos colégios, em competições esportivas, em ações cívico-sociais e outras julgadas necessárias”. A disciplina nos tiros de guerra é parecida à de um quartel, embora os jovens permaneçam na sede apenas enquanto duram as aulas; o regime não é de internato, mas o de uma escola comum. Há tiros de guerra, alguns já centenários, em cidades brasileiras tão diversas quanto Arapiraca (AL), Manicoré (AM), Cachoeira (BA), Cruz das Almas (BA), Itabuna (BA), Jequié (BA), Juazeiro (BA), Santo Antônio de Jesus (BA), Valença (BA), Vitória da Conquista (BA), Aracati (CE), Aracaú (CE), Itapipoca (CE), Iporá (GO), Caxias (MA), Diamantina (MG), Frutal (MG), Governador Valadares (MG), Lavras (MG), Matozinhos (MG), Muriaé (MG), Oliveira (MG), São João Nepomuceno (MG), São Lourenço (MG), Alta Floresta (MT), Castanhal (PA), Pombal (PB), Parnaíba (PI), Bandeirante (PR), Campo Largo (PR), Cornélio Procópio (PR), Londrina (PR), Telêmaco Borba (PR), Barra Mansa (RJ), Nova Friburgo (RJ), Teresópolis (RJ), Brusque (SC), Caçador (SC), Joaçaba (SC), Estância (SE), Lagarto (SE), Araçatuba (SP), Araraquara (SP), Assis (SP), Bebedouro (SP), Capivari (SP), Catanduva (SP), Franca (SP), Itapetininga (SP), Itápolis (SP), Itatibá (SP), Mirassol (SP), Mogi das Cruzes (SP), Olímpia (SP), Peruíbe (SP), Piracicaba (SP), Presidente Prudente (SP), São Carlos (SP), São José dos Campos (SP), Sorocaba (SP), Vargem Grande do Sul (SP), Votuporanga (SP), Miracema (TO), Pedro Afonso (TO), Porto Nacional (TO), Em alguns casos, como no tiro de guerra de Sorocaba, a prefeitura inclui cursos profissionalizantes no conteúdo do curso. Por isto mesmo, não faltam prefeituras candidatando-se a conveniar a fundação de tiros de guerra, como as de Iúna (ES), Cajati (SP), Itupeva (SP); ter um tiro de guerra, para municípios de pequeno e médio porte, é como que um sinal de “progresso”, de aproximação das instituições metropolitanas.
As forças armadas retomam, deste modo, seu papel clássico de formar novas gerações de trabalhadores, adaptando-o às exigências do momento. Se a disciplina férrea foi instrumento para punição e “ressocialização” de “indesejáveis”, ela é, hoje, meio para formação de gerações de trabalhadores cada vez “mais organizados”, “mais disciplinados”, “mais empreendedores” – em suma, mais produtivos. Para formar, em suma, bons trabalhadores, que permitam sua própria exploração e facilitem-na, eles próprios, ao máximo. Para formar novas gerações em moldes nacionalistas e “republicanos”, com base num igualitarismo formal (de clara origem positivista) entre os “cidadãos” de classes distintas em meio à tropa e à sociedade.
Vem daí o problema? Não. A formação de trabalhadores pelas forças armadas cria condições ideológicas e práticas para o fascismo, mas não é, por si só, fascista. É preciso outros elementos. Alguns deles serão vistos adiante.
Forças privadas de “segurança”
Há que se ter atenção também ao crescimento das empresas de segurança privada.
Não se trata apenas do segurança que roda à noite de bicicleta em algumas comunidades, apitando para fazer notar sua presença. Não se trata apenas do policial que usa seus tempos de folga trabalhando como segurança em hotéis, boates e restaurantes. Este é o modelo do segurança informal. Trata-se de setor importante, pois empresários do setor calculam que para cada profissional em situação regular, existem três clandestinos; mas para os propósitos deste ensaio é um setor difícil de se deixar capturar por estatísticas, o que torna-o de difícil análise. Ficaremos então com o setor formal da segurança privada, representado pelas empresas de segurança autorizadas pela Polícia Federal. É o que de mais próximo permite comparações com o setor informal.
Em primeiro lugar, é preciso desfazer um mito: o de que a segurança privada prospera quando aumenta a violência (ver um exemplo deste mito aqui). Isto pode ser uma causa muito remota para este crescimento, mas não é causa imediata, como se verá.
Segundo o Atlas da Violência 2017 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil registrou 59.080 homicídios em 2015, consolidando um aumento de patamar no indicador para perto de 60 mil assassinatos por ano. Entre 2005 e 2007 esse número ficava entre 48 mil e 50 mil. Alguns Estados do Norte e Nordeste, como Rio Grande do Norte, tiveram crescimento superior a 100% nas taxas de homicídio entre 2005 e 2015.
Num tal cenário, é de se esperar que cresçam ou o número de empresas de segurança, ou o número de trabalhadores contratados no setor. A tabela 1, retirada das estatísticas da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (FENAVIST), mostra a evolução no número de empresas.
Tabela 1: Empresas de segurança autorizadas pela Polícia Federal no Brasil
Ano | Empresas autorizadas pela PF | Variação |
2002 | 1.386 | – |
2004 | 1.420 | 2,45% |
2007 | 1.650 | 16,20% |
2008 | 1.672 | 1,33% |
2010 | 1.818 | 8,73% |
2011 | 2.053 | 12,93% |
2012 | 2.282 | 11,15% |
2013 | 2.392 | 4,82% |
2014 | 2.548 | 6,52% |
2015 | 2.581 | 1,30% |
2016 | 2.561 | -0,77% |
Fonte: Estudo do Setor de Segurança Privada, edições 2012 e 2016
Por este números se vê que o número de empresas do setor aumenta bastante nos “anos de bonança”, diminui o ritmo deste incremento nos anos de menor crescimento econômico e, nos anos de crise e recessão, viu seu crescimento diminuir o ritmo até que o número de empresas encolhesse em 2016.
A isto se deve somar a variação no número de trabalhadores contratados por estas empresas, visto na tabela 2.
Tabela 2: Trabalhadores contratados por empresas de segurança no Brasil
Ano | Trabalhadores contratados | Variação anual |
2012 | 631.594 | – |
2013 | 645.637 | 2,22% |
2014 | 654.899 | 1,43% |
2015 | 631.028 | -3,64% |
2016 | 598.468 | -5,16% |
Fonte: Estudo do Setor de Segurança Privada, edição de 2017
(Comparativamente, o pessoal da ativa na Marinha, na Aeronáutica e no Exército em 2010 era de cerca de 327 mil militares.)
O comportamento deste setor, no que diz respeito à contratação de trabalhadores, segue perfil semelhante ao de empresas de outros setores: redução nas contratações em tempos de crise. Reportagem do Valor publicada em 2016 indica outros detalhes da atividade empresarial: o preço cobrado pelas empresas de segurança leva em conta a quantidade de vigilantes contratados pelos clientes; mesmo assim, as empresas não conseguiram repassar integralmente aos clientes os reajustes salariais pagos aos funcionários. Enquanto a média do aumento salarial do vigilante em 2016 foi de 11,15%, no mesmo ano, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) subiu 6,58%. Segundo o presidente da FENAVIST, Jefferson Furlan Nazário, “nos últimos cinco anos, o setor deu reajustes 8,32% acima da inflação”.
Tudo isto poderia acontecer não por força das flutuações na conjuntura econômica, mas por alterações tecnológicas e nos processos de trabalho. Seria preciso ver no que investiram as empresas filiadas à FENAVIST.
O estudo da FENAVIST aponta que investimentos em equipamentos e frota foram feitos ao longo de 2016 apenas para manter a infraestrutura. O número de carros-fortes diminuiu de 4,5 mil em 2015 para 4,3 mil em 2016. O pico foi em 2013, com 4,8 mil veículos. Já entre os carros de escolta armada, eram 3,4 mil unidades em 2014 e 2015, subindo a 3,6 mil em 2016. A tabela 3 indica como evoluiu a compra de munições por este setor entre 1990 e 2012.
Tabela 3: Compra de armas e munições pelas empresas de segurança no Brasil
Ano | Armas compradas | Variação (%) | Munição comprada | Variação (%) |
1990 | 4.281 | – | 813.383 | – |
1991 | 5.489 | 28,22% | 2.046.583 | 151,61% |
1992 | 9.587 | 74,66% | 687.024 | -66,43% |
1993 | 9.929 | 3,57% | 1.275.892 | 85,71% |
1994 | 16.186 | 63,02% | 1.330.210 | 4,26% |
1995 | 28.529 | 76,26% | 3.698.094 | 178,01% |
1996 | 54.400 | 90,68% | 2.303.214 | -37,72% |
1997 | 14.652 | -73,07% | 1.574.060 | -31,66% |
1998 | 8.402 | -42,66% | 1.447.322 | -8,05% |
1999 | 15.318 | 82,31% | 2.474.714 | 70,99% |
2000 | 22.945 | 49,79% | 1.852.710 | -25,13% |
2001 | 22.256 | -3,00% | 3.008.288 | 62,37% |
2002 | 53.343 | 139,68% | 2.231.913 | -25,81% |
2003 | 10.857 | -79,65% | 2.557.994 | 14,61% |
2004 | 9.572 | -11,84% | 2.772.010 | 8,37% |
2005 | 28.712 | 199,96% | 3.017.100 | 8,84% |
2006 | 21.874 | -23,82% | 3.793.505 | 25,73% |
2007 | 27.825 | 27,21% | 3.362.425 | -11,36% |
2008 | 31.185 | 12,08% | 4.026.963 | 19,76% |
2009 | 19.326 | -38,03% | 7.101.835 | 76,36% |
2010 | 32.869 | 70,08% | 7.852.672 | 10,57% |
2011 | 28.905 | -12,06% | 7.803.187 | -0,63% |
2012 | 35.924 | 24,28% | 8.190.200 | 4,96% |
Fonte: Estudo do Setor de Segurança Privada, edição de 2012
Cruzadas a evolução no número de empresas com a evolução do número de trabalhadores contratado e também com o padrão de investimentos, percebe-se que, ao contrário do que afirma certo mito de que a indústria da segurança cresceria em paralelo com o aumento da violência, as empresas do setor acompanham, isto sim, o comportamento empresarial geral em meio às sucessivas conjunturas econômicas. É a tese defendida pelo presidente da FENAVIST, Jefferson Furlan Nazário, num artigo publicado em 2017 pel’O Estado de São Paulo. Adicionalmente, Mauro Catharino, diretor da Mezzo Planejamento e responsável pelo Estudo do Setor de Segurança Privada, disse em 2005 que “o setor cresce 8% ao ano no mundo, mesmo em países onde a violência urbana não preocupa tanto como nos EUA. É a relação direta com o aumento do patrimônio”. Clodomir Marcondes, diretor da Power Segurança, confirma a hipótese, inclusive apontando como “um empresário poderoso pode gastar entre R$ 100 mil e R$ 150 mil por mês para garantir a sua segurança e de sua família”.
Deve ser lida também por esta chave a divisão entre um setor formal e um setor informal. Precisamente por se tratar de um serviço prestado nos moldes capitalistas – e, como visto, por seguir comportamento similar aos de empresas de qualquer outro setor – a segurança também está sujeita às pressões por produtividade e inovação tecnológica, e por tal caminho às necessidades de investimento. Verifica-se neste setor também a divisão entre, de um lado, capitalistas capazes de criar maior sensação de segurança por meio do aparato tecnológico, do volume de trabalhadores mobilizados etc. resultante de investimentos contínuos, e de outro capitalistas menos capazes de realizar tais investimentos, que por isto mesmo tendem a atender às necessidades de segurança de setores capitalistas tão retardatários quanto eles próprios, ou de ruas e bairros de trabalhadores que já não mais confiam na sensação de segurança fornecida pelas polícias.
Não custa, antes de prosseguir, ressaltar que as empresas de segurança recrutam seus funcionários na mesma base social em que as forças armadas recrutam seus quadros inferiores: jovens trabalhadores precarizados. Como não há restrições etárias ao trabalho como segurança, o recrutamento se dá entre os jovens que saíram das forças armadas para a reserva. Adicionalmente, como consequência da ausência de restrições etárias e dos padrões extremamente rígidos de disciplina das forças armadas, o setor da segurança privada transforma-se em oportunidade de trabalho, ainda que muito perigoso e mal-remunerado, para trabalhadores mais precarizados.
O crime organizado
Outro setor que passou a mobilizar trabalhadores pobres, principalmente jovens em comunidades pobres, foi o chamado “crime organizado”, onde o que menos importa, para os fins deste ensaio, é sua ilegalidade. Pessoas se organizam para que ele exista, e são os efeitos desta organização o que importa.
No caso das milícias cariocas, as disputas por poder e território entre elas têm se tornado a regra depois da prisão dos líderes da Liga da Justiça (ver aqui), assim como em momento anterior o fora a disputa por território com facções do tráfico de drogas. A replicação do modelo carioca de milícias, desde cedo considerada uma hipótese plausível, já em 2016 era uma realidade incontestável no Pará, São Paulo, Bahia, Ceará e Mato Grosso do Sul. Às vezes a ligação entre milícias e políticos é mais direta, como em certas justificações de sua presença nas comunidades (ver aqui, aqui). Existe ainda a participação direta de políticos em suas atividades ou, por outro lado, a ascensão de líderes milicianos a cargos parlamentares (ver aqui, aqui, aqui).
Não bastasse seu papel econômico, os grupos do crime organizado também disciplinam territórios inteiros. Veja-se a proliferação de códigos de ética neste meio: aquele encontrado mais recentemente em João Pessoa é apenas um entre muitos, como os já encontrados em Roraima, Bahia, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, São Paulo, Maranhão, e a circulação de modelos entre as organizações é notória.
O problema não é o de “tratar os moradores das favelas com cidadania”, como querem alguns especialistas (ver aqui); é o de ver as formas de trabalho ocultas por trás da ilegalidade. Aqui também, elementos de transmutação da revolta juvenil contra o “sistema” numa mobilização empresarial reacionária, absolutamente dentro da ordem. Ainda há outro aspecto: a circulação de pessoas entre as polícias e o crime organizado. O caso das milícias cariocas é o mais conhecido. Lá, policiais agiam como agentes infiltrados da Liga da Justiça (maior milícia carioca) junto à Corregedoria da Polícia, fornecendo informações sobre os planos e ações da própria Secretaria de Segurança Pública (ver aqui e aqui). Não são novas, também, notícias de militares a circular indistintamente entre as forças armadas e a criminalidade; a estrutura logística das forças armadas e a baixíssima interferência das polícias militar e civil sobre as operações logísticas militares é muito tentadora, facilitando a praças e oficiais (inclusive de alto escalão) possibilidades de envolvimento no tráfico de drogas e em outras formas de crime organizado (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui…).
Os elementos fascistas
Disciplinamento de trabalhadores nas forças armadas e auxiliares. Proliferação das empresas de “segurança” ao ponto de superar, de quase dobrar, os efetivos militares. Funções disciplinares do crime organizado, para “dentro” (códigos de ética) e para “fora” (disciplinamento comunitário). Muita circulação de indivíduos entre os três setores.
Onde estaria, entretanto, o vínculo entre os elementos beligerantes da sociedade e a política? Entre eles e o fascismo?
O Passa Palavra questionou, recentemente, se as reivindicações de militares podem ou não ser incluídas entre as reivindicações da classe trabalhadora; indicou, no mesmo artigo, como as reivindicações salariais dos militares serviram de trampolim para que suas lideranças se lançassem em carreiras políticas com variados graus de sucesso. Reportagem da Beta Redação apresenta dados importantes acerca da participação dos militares na política. Em 2014, 25 mil pessoas concorreram aos cargos de deputado estadual, deputado federal, senador, governador e presidente. Desses candidatos, apenas 667 foram enquadrados como militares, o que configura uma participação de 2,6% no número total de concorrentes. O resultado foi pífio numericamente: apenas nove desses 667 candidatos conseguiram se eleger. A realidade é parecida, mas a representatividade ainda mais escassa nas eleições municipais. Em 2016, 479.942 pessoas concorreram aos cargos de prefeitos e vereadores. Apenas 2 mil delas eram militares — ou seja, 0,41% do total. Claro, a proibição aos militares de participar da política influencia nos números, mas num país de 200 milhões de habitantes o elemento beligerante, somados aí os efetivos das forças armadas (aprox. 300 mil) e das empresas de “segurança” (aprox. 600 mil), chega a 0,45% da população. Estariam os militares super-representados no universo de candidatos nas eleições 2018 como estiveram em 2014? E o que significa esta superrepresentação – ou, melhor dizendo, a superrepresentação nas eleições federais e estaduais e a sub-representação nas eleições municipais?
Cabe um esforço suplementar, uma análise que corre como pano de fundo: a alegada queda dos orçamentos militares, em especial durante a crise recessiva de 2014-2017. Em 2012 reportagem do G1 apresentou quadro de sucateamento das forças armadas brasileiras: munição para menos de uma hora de combate (segundo o general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa), mantidos apenas os estoques mínimos para as necessidades da instrução militar; armamento leve obsoleto, com 120 mil fuzis FAL com mais de trinta anos de uso (o próprio desenho do Fuzil Automático Leve (FAL), concebido entre 1946 e 1954, já é de duas ou três gerações atrás); 92% dos meios de comunicação em franca obsolescência, com 87% dos equipamentos sequer em condições de uso; fardas importadas da China desbotando na primeira lavagem; carros, barcos e helicópteros em número escasso, e blindados com 40 a 50 anos de uso; entre 2002 e 2012 a percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) investido em defesa girou em torno de 1,5%, segundo números do Ministério da Defesa, com maior porcentagem em 2009, quando 1,62% do PIB foram destinados para o setor, mas disso tudo 90% dos recursos eram para pagamento de salários, com apenas 10% para custeio e novos investimentos; e por aí vai.
É muito provável que, com o processo de atualização tecnológica, tática e estratégica das forças armadas pelo mundo, os efetivos das forças armadas brasileiras venham a ser reduzidos para que aumente a margem orçamentária para investimentos e se atualize a composição do orçamento das forças armadas para os patamares recomendados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de teto de 40% para as despesas com pessoal. Um exemplo desta transição para um modelo mais tecnológico de defesa é o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), constante na Estratégia Nacional de Defesa de 2008 e que vem sendo implementado a conta-gotas: se o projeto deveria ter recebido R$ 1 bilhão por ano durante 11 anos para ser implementado, o valor médio anual pago pelo governo federal de 2013 a 2017 foi muito menor (R$ 220,9 milhões). Apesar da crise, o governo federal voltou a aumentar os investimentos no setor de defesa; o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) indicou num estudo de 2017 que o Brasil “registrou um aumento nos gastos militares acima da média mundial, e saltou de saltou de 13º, em 2016, para 11º no ranking dos países que mais investem no setor”. O cenário completo é o desenhado na tabela 4.
Tabela 4: os 15 países com maior gasto militar no mundo em 2017
País | Classificação | Gasto militar (US$ bi) | Variação 2008-2017 (%) | Parcela do gasto militar mundial em 2017 (em %) | |
2017 | 2016 | ||||
EUA | 1 | 1 | 610 | -14 | 35 |
China | 2 | 2 | 228 | 110 | 13 |
Arábia Saudita | 3 | 4 | 69,4 | 34 | 4 |
Rússia | 4 | 3 | 66,3 | 36 | 3,8 |
Índia | 5 | 6 | 63,9 | 45 | 3,7 |
França | 6 | 5 | 57,8 | 5,1 | 3,3 |
Grã-Bretanha | 7 | 7 | 47,2 | -15 | 2,7 |
Japão | 8 | 8 | 45,4 | 4,4 | 2,6 |
Alemanha | 9 | 9 | 44,3 | 8,8 | 2,5 |
Coreia do Sul | 10 | 10 | 39,2 | 29 | 2,3 |
Brasil | 11 | 13 | 29,3 | 21 | 1,7 |
Itália | 12 | 11 | 29,2 | -17 | 1,7 |
Austrália | 13 | 12 | 27,5 | 33 | 1,6 |
Canadá | 14 | 14 | 20,6 | 13 | 1,2 |
Turquia | 15 | 15 | 18,2 | 46 | 1 |
Fonte: Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), Trends in world military expenditure
Como se vê, não apenas o Brasil está entre os 15 países com maior gasto militar no mundo, como, levando em consideração a variação nos gastos militares entre 2008 e 2017, é o nono país, entre os quinze, com maior variação positiva. De igual maneira, a tabela 5 mostra como a participação dos gastos militares no PIB brasileiro é compatível com a de economias desenvolvidas.
Tabela 5: investimento militar como parcela do PIB em economias selecionadas
1958 a 1960 | 1968 a 1970 | 1978 a 1980 | 1988 a 1990 | 1998 a 2000 | 2003 a 2005 | 2008 a 2011 | 2012 a 2017 | |
Economias desenvolvidas | ||||||||
Alemanha | 3,8% | 3,5% | 3,2% | 2,7% | 1,5% | 1,4% | 1,3% | 1,2% |
Canadá | 4,5% | 2,3% | 1,8% | 2,0% | 1,2% | 1,1% | 1,3% | 1,1% |
Espanha | 2,0% | 2,3% | 2,4% | 2,4% | 1,7% | 1,4% | 1,4% | 1,3% |
EUA | 9,1% | 8,3% | 4,8% | 5,5% | 3,0% | 3,7% | 4,5% | 3,5% |
França | 6,6% | 4,5% | 3,7% | 3,4% | 2,6% | 2,5% | 2,3% | 2,3% |
Grã-Bretanha | 6,6% | 5,0% | 4,3% | 3,6% | 2,2% | 2,3% | 2,4% | 2,0% |
Itália | 3,3% | 2,7% | 2,1% | 2,2% | 1,9% | 1,9% | 1,7% | 1,5% |
Portugal | 3,4% | 5,6% | 2,7% | 2,5% | 1,9% | 2,0% | 2,0% | 1,8% |
BRICS* | ||||||||
Brasil | 2,9% | 2,7% | 1,4% | 2,4% | 1,7% | 1,5% | 1,5% | 1,4% |
Rússia** | – | – | – | – | 3,3% | 3,7% | 3,7% | 4,4% |
Índia | 2,0% | 3,2% | 3,2% | 3,5% | 3,0% | 2,8% | 2,7% | 2,5% |
China | – | – | – | 2,5% | 1,8% | 2,1% | 1,9% | 1,9% |
África do Sul*** | 0,9% | 2,6% | 3,9% | 4,3% | 1,3% | 1,4% | 1,1% | 1,1% |
Tigres Asiáticos | ||||||||
Cingapura | – | 5,4% | 4,8% | 4,6% | 5,0% | 4,5% | 3,6% | 3,2% |
Coreia do Sul | – | – | 7,3% | 5,2% | 3,0% | 2,2% | 2,1% | 1,9% |
Taiwan | 7,4% | 4,6% | 6,1% | 4,2% | 2,6% | 2,4% | 2,6% | 2,6% |
Novos Tigres Asiáticos | ||||||||
Filipinas | 1,9% | 2,0% | 2,8% | 2,3% | 1,6% | 1,4% | 1,2% | 1,2% |
Indonésia | – | – | 3,0% | 1,4% | 0,8% | 0,9% | 0,6% | 0,8% |
Malásia | 3,3% | 4,5% | 3,9% | 2,5% | 1,8% | 2,4% | 1,7% | 1,4% |
Tailândia | 2,9% | 2,9% | 4,2% | 2,7% | 1,7% | 1,2% | 1,7% | 1,4% |
Vietnã | – | – | – | 7,4% | – | 2,0% | 2,2% | 2,30% |
Fonte: Elaboração própria com dados de Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) – Military Expenditure Database. *Empregou-se a “versão alargada” dos BRICS, incluindo a África do Sul.
Estes últimos dados devem ser vistos com cautela, pois maiores proporções de um PIB pequeno significam, na prática, baixo gasto militar, enquanto menores proporções de um PIB grande significam, na prática, alto gasto militar. Como, entretanto, o Brasil tem PIB próximo daqueles da Grã-Bretanha, França, Itália e Indonésia, e quase dobra o PIB de países como Espanha e Tailândia, tais cautelas devem ser ponderadas por ainda outra: o tamanho do território a defender, o que faz o gasto militar brasileiro ser comparável com proveito apenas aos de países com tamanho parecido (Rússia, Canadá, China, EUA, Austrália). Por
outro lado, a comparação diacrônica demonstra que mesmo sob os regimes militares a participação dos gastos militares no PIB brasileiro mostra-se perfeitamente compatível com a de países sem indústria militar autóctone (Canadá, Filipinas) ou não envolvidos com frequência em conflitos bélicos (Espanha, Itália).
Se a crise nas forças armadas brasileiras é real e incontestável, não é menos real o progressivo aumento nos orçamentos militares, como demonstra a tabela 6, construída com base em dados de uma reportagem acerca desta crise.
Tabela 6: orçamento militar brasileiro e sua variação
Ano | Valor (em R$ bi) | Variação (em %) |
2013 | 69,7 | – |
2014 | 78,4 | 12,48% |
2015 | 80,1 | 2,17% |
2016 | 87,6 | 9,36% |
2017 | 92,2 | 5,25% |
TOTAL ACUMULADO | 408 | 29,29% |
Fonte: UOL Notícias, com base em dados do sistema SIGA Brasil
Embora a reportagem demonstre o aumento no orçamento militar brasileiro, ressalta paralelamente uma tendência de queda da despesa primária do Ministério da Defesa em relação à despesa primária da União, como se vê na tabela 7.
Tabela 7: despesa primária do Ministério da Defesa versus despesa primária da União
Ano | Participação da Defesa na despesa primária da União (em %) | Variação |
1996 | 11,50% | – |
1998 | 10,90% | -5,22% |
2000 | 10,50% | -3,67% |
2002 | 10,70% | 1,90% |
2004 | 8,90% | -16,82% |
2006 | 8,40% | -5,62% |
2008 | 8,60% | 2,38% |
2010 | 8,70% | 1,16% |
2012 | 7,70% | -11,49% |
2014 | 7,20% | -6,49% |
2016 | 6,70% | -6,94% |
Fonte: UOL Notícias, com base em dados do Ministério da Defesa
Há que se ter, entretanto, cuidado com a leitura do desinvestimento nas forças armadas, que tem sido feita sem qualquer contextualização na conjuntura econômica de cada momento. Em linhas muito gerais, as variações negativas em 1998 e 2000 são facilmente compreendidas num contexto de crise econômica global que afetou também o Brasil, e a variação negativa em 2004 é também facilmente entendida no contexto da instabilidade causada pela sucessão presidencial onde a ascensão do PT colocou investidores e empresários em polvorosa. Tanto assim que em 2008 e 2010, anos de prosperidade econômica, a participação do orçamento do Ministério da Defesa no orçamento da União voltou a crescer, voltando a cair em tempos de instabilidade e crise na economia. Deve-se levar em consideração, de igual maneira, que todo o orçamento público é sujeito a conflitos distributivos, onde, ressalvados os orçamentos impositivos da saúde e da educação, os setores do serviço público mais bem posicionados nas malhas de poder – via articulação com ministros e cargos de confiança, ou via emendas parlamentares, ou via grupos de pressão externos ao governo – conseguem acesso a maior volume de recursos; a diferença é que o poder de pressão dos militares está, em última instância, nas armas, não na articulação política.
Se a tendência ao desinvestimento é revertida durante as fases de prosperidade econômica, nem por isto todos os conscritos o percebem. O alto comando e o generalato das forças armadas brasileiras, é claro, percebe-o por compartilhar com outros altos gestores uma visão de conjunto e das entranhas do funcionamento do Estado, mas nem por isto o fator econômico é por ele percebido como fundamental: não se pode esquecer que nos currículos das escolas de formação de oficiais é a geopolítica a matriz fundamental para compreensão das relações internacionais, não a economia. Ou melhor: a economia entra na formação do oficialato, desde que subordinada à geopolítica. Percebem, portanto, a face mais ostensiva das relações de poder, mas correm o risco de deixar escapar pelos dedos outros elementos mais refinados de construção e consolidação de poder e hegemonia. Mesmo os altos oficiais mais “antenados” com tendências de ponta no pensamento e prática militares como a guerra de quarta geração, a guerra assimétrica e outras, fazem-no ainda no plano estritamente tático, submetendo estas novas formas de combate aos esquemas tradicionais da grande estratégia. Se este é um cenário bastante plausível para o alto comando e o generalato, ele é ainda mais grave em meio aos oficiais superiores (majores, tenentes-coronéis e coronéis), aos oficiais intermediários (capitães), aos oficiais subalternos (aspirantes e tenentes), aos praças (cabos, sargentos, subtenentes e suboficiais) e aos soldados e marinheiros, estes últimos representando o grosso das tropas conscritas.
Como o princípio da hierarquia militar pressupõe também um alto nível de compartimentação de informações, o alto comando e o generalato não compartilha de todas as informações de que dispõe. Ora, é precisamente o acesso a informações privilegiadas que poderia contrabalançar a lacuna na formação econômica do oficialato e dar maior clareza quanto ao cenário de investimentos orçamentários nas forças armadas; sem estas informações, todo o restante da tropa, formada na escola da geopolítica, está portanto condicionada a entender a lenta deterioração das forças armadas como uma questão sujeita à pura e simples “vontade política”, que pode ser interpretada das maneiras mais diversas, indo desde a compreensão adequada do conflito distributivo orçamentário e a eleição de políticos cujas campanhas se baseiam no reforço ao elemento bélico da sociedade (eis aí um dos segredos para o sucesso eleitoral da “bancada da bala”) até a construção das mais disparatadas e delirantes teorias da conspiração.
É aí onde se radicam os elementos fascistas oriundos das forças armadas. Ao pesquisar para a construção deste ensaio, tive a oportunidade de frequentar os meios empregues pelos digital influencers (“influenciadores digitais”) destas alas radicais do militarismo; prefiro não dar qualquer link a eles para não dar-lhes mais público. Posso afirmar, entretanto, que se trata de uma rede muito bem desenvolvida de sites, blogs, perfis de YouTube, Facebook e Instagram, num ecossistema digital razoavelmente coeso com bastante interação entre suas partes componentes. Ali circulam teorias bastante frágeis, mas que, bem apresentadas por meio de uma pletora de dados e informações descontextualizadas e bem consolidada por meio de refutações falaciosas aos argumentos em contrário, passam tranquilamente como “verdade”. É aí que se formaram alas radicalmente antiesquerdistas, ou abertamente fascistas, em meio aos soldados, praças e ao oficialato. Herança da ditadura? Claro, este elemento é inegável, mas também o são o que chamo de “externalidades negativas da internet”: a maior possibilidade de comunicação par-a-par (peer-to-peer) e a redução da distância entre emissor e receptor, assim como a multiplicação de emissores, permitem a certos “guetos discursivos” comunicar-se entre si sem muita mediação dos instrumentos tradicionais de comunicação, fazendo circular muito mais velozmente aquilo que, em outros tempos, precisaria da mediação de editoras, tradutores e demais aparato especializado. Falas e discursos de generais, áudios “vazados”, artigos de publicações paleoconservadoras, traduções toscas de vídeos de digital influencers similares produzidos em outros países, eis as fontes principais deste ecossistema. Como os assuntos de que tratam são os mesmos que afligem o restante da tropa, e como oferecem explicações falhas e falaciosas, mas aparentemente coerentes e consistentes, para problemas perceptíveis a olho nu, estes digital influencers são como que os intelectuais orgânicos dos setores radicalizados das forças armadas, exercendo hoje um papel que em tempos passados foi dos “doutores” em meio ao generalato e restante oficialato.
Este é o primeiro eixo exógeno ao fascismo onde seus temas e ideias podem circular com facilidade. Militares radicalizados pela percepção (equivocada) de um sucateamento proposital das forças armadas criam explicações (na verdade bricolagens falaciosas) para o fenômeno, resultando assim em teorias conspiratórias que, se não são adotadas em sua integralidade pelo grosso dos sujeitos imersos no elemento bélico da sociedade, encontram ali um meio para ampla circulação. O segundo eixo exógeno é o fundamentalismo religioso e moral, de que trataremos a seguir.
Este artigo é o sétimo de uma série. Leia as demais partes clicando aqui.
A este amplo e detalhado panorama sobre um dos eixos endógenos do novo fascismo à brasileira, analisado pelo Manolo na série, pode se acrescentar e relacionar, notadamente aqui em São Paulo (porém com variações afins em outros estados), o papel dos CONSEGs – Conselhos Comunitários de Segurança. No caso, vale atentar às relações umbilicais destes conselhos “participativos”, presenciais e virtuais, não só com as forças policiais que os coordenam e demais aparatos de “segurança pública”, além das empresas/agências de segurança privada, mas também com as associações de bairros e condominiais e, sobretudo, administradoras/seguradoras prediais, condominiais e patrimoniais. Acho que esta forma (de guerra) híbrida paulista, maturada desde o início da redemocratização, porém muito aprimorada nos últimos anos, indica os modelos mais modernos e avançados da imbricação entre Estado Amplo e Estado Restrito no Brasil contemporâneo, e um dos principais paradigmas por aqui para a gestão neofascista da vida social nas suas relações produtivas e cotidianas nos territórios – especialmente urbanos.
Tal modelo foi extensamente analisado, sob uma importante perspectiva histórica atenta às objetividades e (novas) subjetividades deste processo fascistizante difuso, por uma dissertação de mestrado recém-apresentada na Unicamp, que vale muito conferir e agregar à análise do Manolo:
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(Para quem tiver interesse, ler a dissertação completa aqui: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332266/1/Valente_RodolfoDeAlmeida_M.pdf)
manolo, não seria interessante produzir vídeos para plantar sementes de dúvida nos e nas consumidoras dos “digital influencers” da extrema-direita? Isso exige a capacidade de diálogo com um público bem diferente do que estamos acostumados. Ou talvez para um público não tão especializado que não busque estes comunicadores de temas tão especializados, mas aquele público que consume as produções da direita digital em geral.
Sei que como militantes não podemos fazer de tudo, mas ultimamente estive pensando nessa questão, e também por não pertencer à última geração que já está tão acostumada com a lógica dos “influencers”, demorei muito para achar coisas interessantes no Youtube, por exemplo. Mas devo dizer que recentemente encontrei gente fazendo coisas interessantes na “batalha cultural”. E é gente que gasta tempo e energia para combater as posições da nova direita, não aqueles velhos conhecidos só interessados em reafirmar mil vezes o que dizem seus livros favoritos para o mesmo público de sempre (se é que esse público ainda existe). Achei que merecia esse comentário pois o final do teu texto parece indicar a importância que este fenômeno adquiriu, como “intelectuais orgânicos” da extrema-direita, e como neste novo formato comunicativo por mais que existam nichos (como antes) estes são um pouco mais permeáveis do que quando tudo passava por um editor…
E pelo que tenho visto e experimentado, a produção (em termos técnicos e estéticos) é sim algo importante, mas o principal, como sempre o foi, é o argumento. Precisamos de gente inteligente para escrever argumentos concisos, com linguagem simples, que não sejam tão “explicativos”, sem isso nada de bom pode ser produzido. O resto se consegue com um par de companheiros e companheiras jovens que conhecem mais os meandros técnicos e da internet. Então deixo aqui essa ideia para você e para os demais leitores, quem sabe vai brotando coisas interessantes nalgum futuro.