Por Rodrigo Oliveira Fonseca
No presente artigo, dividido em quatro partes, discutimos o conceito de fascismo a partir dos estudos em História Comparada de João Bernardo. Além disso, os modos de sonhar, de odiar, de agir e de reagir dos fascismos são caracterizados enquanto quatro grandes fundamentos que se alimentam e complementam, e que podem ser percebidos a partir de alguns elementos e manifestações próprias da conjuntura social e política brasileira, onde, mesmo não havendo ainda um regime que possa ser considerado fascista, percebe-se com preocupante clareza uma agenda fascistizante, o que será demonstrado. O campo da educação é problematizado como uma das mais importantes arenas em (que se) disputa, numa batalha entre tendências conservadoras e radicais de direita, de um lado, e democráticas e igualitárias, de outro. Fecha o artigo, na sua quarta e última parte, uma breve análise do slogan Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.
Introdução: o fascismo como conceito
Ainda que pouco conhecido pela maioria das pessoas hoje, o fascismo é uma categoria que, infelizmente, voltou a ser evocada no debate público, e de forma recorrente. No Brasil, um sinal desse fenômeno é o aumento em 643% das buscas pelo termo fascismo na internet entre outubro de 2017 e outubro de 2018 [1], mês em que o candidato Jair Bolsonaro saiu vitorioso nas eleições presidenciais com 55% dos votos válidos. Também a eleição de Donald Trump, com o lema Make America Great Again — retomado da campanha presidencial vitoriosa de Ronald Reagan em 1980 —, contribuiu para a renovação dos debates em torno do fascismo [2]. De fato, políticos em ascensão e governos nacionalistas e populistas de direita em todo o mundo inspiram desconfianças e animam a busca de informações e análises sobre fascismo e neofascismo: as Filipinas de Duterte, a Rússia de Putin, a Turquia de Erdogan, Israel de Netanyahu, a Índia de Modi, a Hungria de Orbán, a Polônia de Duda e Kaczynski, a Áustria de Kurz, a Itália de Salvini, a Bolívia de Camacho…
Muitos pesquisadores consideram o fascismo uma categoria datada do século passado e, no lugar de uma teorização sobre o fascismo, preferem analisar a onda direitista mundial dos últimos anos — e os fenômenos a ela associados — sob o prisma do populismo, que nos parece uma categoria pertinente e auxiliar [3]. O próprio Steve Bannon, ideólogo e estrategista de extrema-direita mais influente no mundo hoje (ao lado do seu par do lado russo, Aleksandr Dugin), denomina o seu campo político como nacional-populismo [4], que soa um termo mais adequado do que simplesmente populismo. No entanto, é importante lembrar que aqueles regimes inequívoca e mundialmente reconhecidos como fascistas, notadamente a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler, foram derrotados no campo militar e não no campo político. Chama a atenção para esse fato João Bernardo, que, em sua obra monumental sobre o tema, Labirintos do Fascismo [5], principal referência do presente texto, analisa os caminhos pelos quais o fascismo pôde sobreviver ideologicamente até os nossos dias. Um desses caminhos diz respeito a transformações no seio do pensamento liberal em relação à concepção de democracia como sistema que comporta e estimula não a participação ativa do cidadão comum na coisa pública, a soberania popular, mas a existência de uma pluralidade de elites como garantia da liberdade. Ou seja, um sistema que estimula e diversifica a constituição de grupos específicos de poder, descentralizados, em vistas de um equilíbrio de forças no corpo social, o que, curiosamente, também era preconizado no corporativismo fascista clássico [6].
Engana-se assim quem pensa, por exemplo, que o regime nazista preconizava a centralização e hierarquização absoluta das cadeias de poder na sociedade. Através de seu Führerprinzip, o princípio do sistema de condução social e administrativa perseguido no regime nazista, cada chefe, em cada instituição, era considerado um Führer, ao qual não cabia o papel de correia de transmissão do partido nem o de burocrata:
[…] competia-lhes proceder como achavam que o Führer procederia naquela situação, ou seja, representavam-no como a sua imagem. Por isso, cada um desses Führers menores, se detinha a completa autoridade sobre a esfera que chefiava, era também completamente responsável, respondendo por violações cometidas pelos seus subordinados [7].
Pode parecer paradoxal a existência de um tal sistema, com essa descentralização, em meio a um Estado totalitário como o alemão na época de Hitler, no qual se legisla por decreto e o arbítrio e a exceção são a regra, cabendo ao poder executivo o poder de executar, no sentido de poder decidir sobre a vida e a morte de opositores e desafetos. No entanto, não é paradoxal, e parece perfeitamente possível compreender essa dualidade a partir do que o filósofo esloveno Slavoj Zizek infere ao comparar o número de agentes secretos da Gestapo em toda a Alemanha nazista (25 mil) com o que, anos depois, seria o contingente na socialista Alemanha Oriental, com uma população muitíssimo menor (100 mil agentes secretos). Se quatro vezes mais agentes eram necessários para o controle de uma população cinco vezes menor (18 milhões de habitantes em 1950 frente a 90 milhões na Alemanha nazista de 1941), é porque “a população alemã era moralmente muito mais corrupta em seu apoio aos nazistas (e, portanto, colaborava com o regime) do que a população da República Democrática Alemã”, onde a forte dissidência ao regime socialista pautava-se na própria ideologia do Estado em sua contradição com a realidade — liberdade real, solidariedade social, verdadeira democracia [8] [9].
A inspiração para essa descentralização totalitária das cadeias de poder no Führerprinzip não é outra que a de uma idealização da Alta Idade Média com o seu sistema de diversas communitates, cada uma com o seu chefe local, plenamente responsável na sua jurisdição, e em relação de vassalagem com um imperator [10]. E, assim, aquilo que os nazistas buscaram no feudalismo, objetivando um equilíbrio de poder no corpo social, acabou depois influenciando o liberalismo em sua busca por uma forma democrática que não atrapalhasse os negócios. Uma democracia dos de cima, ordeira, capaz de obstruir uma democracia dos de baixo — que é justamente aquela que está na origem insultuosa do próprio termo democracia como “o inominável governo da multidão”, “a ruína de toda ordem legítima” [11]. Tanto faz que o espaço da communitate seja o da pátria, o da administração local, ou o da família “de bem” em pleno exercício de seu direito à posse de armas e homeschooling, contanto que a ordem e hierarquias do corpo social sejam valores respeitados contra os elementos de instabilidade e corrupção — que seriam estimulados, inclusive, pela “exigência febril de igualdade” do consumismo contemporâneo [12].
Se um dos caminhos para a sobrevivência dos fantasmas do fascismo foi esse rebaixamento qualitativo do horizonte democrático, outro caminho fundamental foi a desestruturação do fascismo enquanto categoria política a partir do emprego massivo da noção de totalitarismo no contexto da Guerra Fria e, antes disso, da separação entre totalitarismo e autoritarismo proposta pelos regimes fascistas de Salazar, em Portugal, e de Schuschnigg, na Áustria, como forma de eles próprios se diferenciarem dos fascistas italianos e alemães [13]. Essa recusa em se considerar numerosos movimentos e regimes como fascistas sob a justificativa de que eles não se assemelhariam aos governos de Hitler e Mussolini é bastante disseminada e adotada pela maioria dos pesquisadores, mas é curiosa porque as diferenças entre esses dois regimes eram notáveis, chegando a motivar disputas intensas, como por exemplo a luta mortal entre mussolinianos e hitleristas na Áustria entre 1932 e 1938 [14]. Considerando-se a adoção de políticas do liberalismo econômico pelos regimes fascistas, pode-se inferir os benefícios dessas duas operações conceituais que rebaixaram a categoria do fascismo a qualquer coisa como um acidente circunstancial ou uma excrescência sem um caráter recorrente na história contemporânea.
Outro fator dessa sobrevivência dos fascismos por dentro da ordem liberal, destacado por Michel Pêcheux, é o impacto da derrota do hitlerismo na reconfiguração do núcleo internacional da forma de produção capitalista, tendo o “percurso americano” assumido uma posição de liderança inconteste. Por essa via, foi sendo desenvolvido de modo acelerado o autoritarismo político do “Estado mínimo” de tipo anglo-saxão e o totalitarismo sutil de uma ordem panóptica sem patrões visíveis e sem memória histórica, com o emprego de tecnologias de opressão cada vez mais refinadas, e estratégias ideológicas que “libertam” os indivíduos de suas necessidades, de suas defesas e certezas, reduzindo — no limite — sua existência a bases biopsicológicas momentâneas [15]. Especificamente quanto a essas formas de gestão e sua homogeneização do simbólico, Ana Zandwais entende que aí estão as condições para a formação do “embrião” de uma construção imaginária de “memória nacional”, base para os fascismos e senso comum que serve de álibi para a ação totalitária do Estado: “é este trabalho obsessivo de refração da história, da obstinação pelo apagamento da memória em torno do vivido que persegue as formas de administração dos sentidos pelos regimes totalitários” [16].
Por isso, neste artigo em quatro partes, fascismo será utilizado como categoria ampla, que tem como peculiaridade articular o conservadorismo (culto de valores e hierarquias em crise numa sociedade concebida como um todo orgânico e harmônico) e o radicalismo (apelo à ação direta, ao confronto físico e à antipolítica), vetores sociais que em geral se encontram separados, em torno de um movimento de revolta dentro da ordem, como postulado por João Bernardo. Ilustra bem essa articulação entre vetores distintos uma crítica feita por lideranças do Movimento Brasil Livre (MBL) à ala bolsonarista do governo: os ataques ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal seriam incompatíveis com uma agenda conservadora. “Você pode e deve criticar atitudes de membros dessas instituições [Congresso e STF], mas nunca demonizá-las. Presidente que se diz conservador não pode atropelar instituição democrática” [17].
Ainda no propósito de introduzir o texto “limpando o terreno”, é importante notar que essa operação de transformação de fascismo em totalitarismo está na base das considerações de alguns personagens atuais que, sob a acusação de serem fascistas (ou de terem atitudes e posições fascistas), respondem dizendo que não o são porque eles são de direita e o fascismo é/era de esquerda. Fica sem explicação o fato de que os fascistas do passado tenham se engajado em lutas de morte contra a esquerda e que os fascistas de hoje pretendam o mesmo, como fica também sem explicação o apoio de grupos neonazistas a políticos fascistas que recusam essa identificação [18]. Mais importante e esclarecedor ainda é o fato de que os próprios neofascistas, neonazistas e correlatos rejeitam sua categorização como esquerda. No entanto, não é novidade o estabelecimento dessa relação entre o fascismo e a esquerda (em especial com a esquerda comunista-soviética). No início dos anos 1920, Karl Kautsky, figura central da social-democracia alemã e principal teórico da Segunda Internacional Socialista, considerou o fascismo uma contrapartida ao bolchevismo, de onde havia extraído técnicas repressoras [19]. O próprio conceito de Estado totalitário (o totale Staat alemão, formulado por Carl Schmitt em 1931) surgiu da fórmula italiana Stato totalitario — Estado corporativo, em oposição ao Estado liberal fragmentário, com vários partidos legais —, que teve como “disparador ideológico” o sindicalismo revolucionário inspirado em Georges Sorel (1847-1922) e materializado na Unione sindacale do jovem Mussolini [20]. O sindicalismo revolucionário italiano rachou em 1914, com a sua corrente nacionalista — favorável à entrada da Itália na guerra — passando a configurar a principal força da extrema-direita daquele país. O soreliano Mussolini, à época dirigente de destaque do Partido Socialista Italiano e diretor do jornal socialista Avanti!, ao não conseguir autorização para publicar seus textos em favor da mobilização nacional para a guerra, fundou um novo jornal, Il Popolo d’Italia, sendo então expulso do partido. Como explica Jean-Pierre Faye[21], pela “rosa dos ventos ideológicos do Movimento Nacional e [pel]o oscilador semântico da ferradura dos partidos no modelo italiano”, a linguagem da revolução foi transmutada na linguagem do conservantismo, fazendo com que guerra passasse a significar revolução, numa conversão da luta de classes em luta entre nações e pela própria nação.
Historiadores à direita (como François Furet e Ernst Nolte) e à esquerda (como Eric Hobsbawm) reproduziram, cada um do seu modo, o entendimento de que o fascismo foi uma reação à ameaça comunista — lógica irmã daquelas que justificam o golpe de 1964 no Brasil como um “contragolpe” diante da ameaça comunista e sindicalista representada pelo governo de João Goulart. Diga-se de passagem que existem grandes diferenças entre a compreensão de Nolte e a de Hobsbawm, mas também semelhanças: enquanto para este tratou-se de uma resposta exagerada, posto que, passada a euforia dos primeiros anos após a Revolução Russa, a esquerda e os comunistas não representavam ameaças aos regimes vigentes em seus países, para Ernst Nolte o comunismo foi o verdadeiro responsável pelo nazismo [22]. Algo que está em jogo nesse revisionismo histórico, que identifica o fascismo como uma consequência direta do comunismo, como sintetizou o historiador alemão Hans-Ulrich Wehler [23], seria “aliviar a consciência alemã de sua responsabilidade histórica, transferindo-a para as teorias de Marx, os comunistas e mesmo os sociais-democratas”.
Em uma conjuntura em que o marxismo vinha estabelecendo um espaço próprio na universidade alemã, Ernst Nolte equipara o nazismo e o comunismo, sem disfarçar sua preferência pelo regime de Adolf Hitler — que, por sua vez, tinha absoluta convicção de que a democracia invariavelmente conduziria os povos ao comunismo. O deslocamento que os nazistas operaram da luta de classe para a luta de raças — tomadas como equivalentes por Ernst Nolte —, para além de esconder o antagonismo social, ainda implicava numa passagem para a barbárie, para o extermínio do corpo estranho que supostamente ameaçava a harmonia nacional, sem paralelos com a luta dirigida pelos comunistas para a liquidação da burguesia enquanto classe social dominante [24]. Para João Bernardo [25], “nenhum fascismo se limitou a ser uma resposta da ordem à revolução. Todos eles foram, antes de mais, uma revolta dentro da ordem, e por isso começaram por procurar na esquerda uma inspiração que permitisse renovar a direita”. Essa renovação da direita a partir de inspirações à esquerda, no caso da Alemanha nazista, fez com que parte das massas operárias nutrisse esperanças quanto às possibilidades de que algo socialista pudesse surgir do “nacional-socialismo” [26]. Ou seja, houve realmente aprendizagens, inspirações e até quadros políticos — de base e de direção — oriundos da esquerda na origem de vários movimentos fascistas e, em especial, depois, quando estes viravam governos [27], mas o seu horizonte político jamais foi o da transformação da ordem social e econômica em favor das classes trabalhadoras. Tratou-se sempre do exato oposto, o que, curiosamente, se manifesta numa identificação contemporânea entre nazismo e democracia promovida por intelectuais críticos da democracia: lamentando as perdas da humanidade, a ruína civilizatória, associam as pesquisas com embriões às câmaras de gás e, no final das contas, atribuem um mesmo lastro a fenômenos como o nazismo, a democracia, a modernidade e o genocídio. Para esses críticos contemporâneos, o nazismo seria, assim, uma consequência direta não do comunismo, mas da própria democracia em seus desdobramentos para a ruína civilizacional[28].
Se os marxistas sempre foram céticos e críticos diretos da democracia sob o capitalismo, logo após a vaga revolucionária de 1917 “os movimentos social-democratas (marxistas) tornaram-se mais forças mantenedoras do Estado que forças subversivas, e não se questionava seu compromisso com a democracia” [29], o que também seria reconhecido para o Brasil do pós-guerra (do pós-Estado Novo) se o ambiente político dominante não estivesse já tomado pelo anticomunismo, posto que a força eleitoral do PCB e, sobretudo, a participação intensa de seus parlamentares na Constituinte de 1946 com suas propostas de modernização política e econômica, não deixam margem de dúvidas sobre o seu horizonte democrático: parlamentarismo, independência das casas legislativas, fim dos decretos-leis do Executivo, fim do Senado, redução do tempo dos mandatos no Executivo e Legislativo, gratuidade da justiça, eleição popular de parte dos juízes, reforma agrária, autonomia dos estados e municípios, liberdade de culto, voto dos analfabetos, combate à discriminação racial, fim das polícias políticas e da censura, liberdade de imprensa, autonomia sindical, direito de greve, representação sindical dos trabalhadores nas empresas, fiscalização das leis trabalhistas pelos sindicatos, participação dos trabalhadores nos lucros e gestão das empresas etc. [30]. Como escreveu Jacques Rancière [31]:
[…] na época em que as instituições da democracia parlamentar eram contestadas, em que prevalecia a ideia de que elas eram ‘apenas formas’, eram no entanto objeto de uma vigilância militante bem superior. E vimos gerações de militantes socialistas e comunistas lutarem ferozmente por uma Constituição, direitos, instituições e funcionamentos institucionais dos quais diziam, por outro lado, que exprimiam o poder da burguesia e do capital.
Tomar o fascismo enquanto categoria unificadora e pertinente à apreensão de diversas tendências presentes na conjuntura mundial é também uma aposta. Aglutinando um eixo conservador e um eixo radical, o fascismo representa uma revolta no interior da ordem e da coesão social, visando à sua reconstituição (postulado central de João Bernardo), e a sua invisibilidade, indistinção e naturalização enquanto caldo cultural e político são fatores perigosíssimos para a agenda da democracia, da liberdade e, com destaque, das maiorias trabalhadoras. Ainda que não haja o entendimento no presente artigo de que o atual governo brasileiro seja fascista, ao longo de todo o texto são mobilizados elementos da conjuntura social e política brasileira que se encaixam perfeitamente em tendências fascistizantes do Estado — para além do partido-movimento fascista que está sendo estruturado pelo grupo do presidente [32], do revival integralista e das insinuações de uma política cultural goebbelsiana. A transformação de um movimento fascista em um regime fascista foi algo que nem sempre aconteceu na história, e, quando aconteceu, o substrato decisivo foi a articulação em algum nível entre quatro campos institucionais: no eixo endógeno e radical, o conjunto do partido e grupos milicianos e a articulação entre milícias e sindicatos; e no eixo exógeno e conservador, o Exército e as Igrejas [33]. Como ainda existem dissensos ou desavenças significativas em torno de várias pautas do governo Bolsonaro, como os limites para o fim do monopólio legal da violência armada pelo Estado, a tolerância frente à atuação de grupos milicianos, a legitimidade de movimentos como o dos caminhoneiros e dos policiais, o grau de subordinação da política externa aos EUA, o fim do caráter laico do Estado, o fechamento ou a diminuição dos poderes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, entre outros pontos, o mais correto é falarmos de tendências fascistas ou, no máximo, de um movimento fascista difuso. E, como estaremos em algumas passagens mobilizando os estudos de Jean-Pierre Faye, cabe salientar que, de acordo com a sua perspectiva teórica e metodológica, não deveríamos utilizar o termo fascista para falar dessas tendências e movimento no Brasil, posto que os seus próprios sujeitos não o utilizam. Entendemos essa recusa de Faye, mas tentaremos mostrar a seguir a pertinência desse emprego.
A seguir, nas próximas partes do artigo, pontuo alguns elementos de tendências fascistizantes que podem ser observadas na conjuntura. Esses elementos estão agrupados no que consideramos os quatro grandes fundamentos do ethos fascista: o idealismo (o modo do sonhar fascista em torno da restauração e do reerguimento do país); o sentimento fascista (odiar quem impede que o país seja restaurado e reerguido); o pragmatismo (restaurar e reerguer o país); a violência ou super-ação (assegurar que o trabalho de restaurar e reerguer o país não seja atrapalhado).
Compreender o fascismo: 1) o conceito
Compreender o fascismo: 2) sonho e ódio
Compreender o fascismo: 3) o pragmatismo
Compreender o fascismo: 4) violência e modos de dizer
Notas
[1] Pesquisa realizada pela empresa de marketing digital SEMrush. Disponível aqui. Interessante notar que paralelamente a esse forte crescimento do interesse pelos sentidos de fascismo, a busca pelo termo direitos humanos cresceu apenas 22% no mesmo período.
[2] Como podemos ver no artigo Rise of Donald Trump Tracks Growing Debate Over Global Fascism, de Peter Baker, publicado em 28/05/2016 no The New York Times. Disponível aqui.
[3] E há também quem prefira entender esse fenômeno pelo viés da malignidade, caso do sociólogo Antonio Cattani após observar o modo como Salvini, Trump e Bolsonaro atiçam ressentimentos, intolerâncias, racismos e tudo o que a sociedade tem de pior. Cf. André Barrocal, Não há “fascismo”, mas “malignidade” no Brasil, diz sociólogo. Carta Capital, 04/02/2020. Disponível aqui.
[4] Em entrevista ao jornal El País, Bannon, que já assessorou Donald Trump, falou de seu trabalho junto à direita italiana, espanhola, inglesa e brasileira, chegando a afirmar que “esse movimento é populista, nacionalista e tradicionalista. E Bolsonaro e Salvini são seus melhores representantes”. Entrevista disponível aqui.
[5] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. 3ª edição, ampliada e revisada, 2018. Disponível aqui.
[6] BERNARDO, 2018, p. 278-9.
[7] BERNARDO, 2018, p. 279.
[8] ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 262.
[9] João Bernardo, em O mito da culpabilidade alemã (2012), disponível aqui, mostra que o apoio da população a Hitler estava longe de ser total, que havia resistência e também muito medo em relação à brutalidade da repressão, e que esse é um esquecimento que serviu para, entre outras coisas, escamotear crimes de guerra cometidos pelos Aliados.
[10] BERNARDO, 2018, p. 279.
[11] RANCIÈRE, Jacques, O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 8.
[12] RANCIÈRE, 2014, p. 28.
[13] BERNARDO, 2018, p. 277.
[14] BERNARDO, 2018, p. 51.
[15] PÊCHEUX, Michel. Ideologia, aprisionamento ou campo paradoxal? Tradução de Carmen Zink. In: PÊCHEUX, Análise de Discurso. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes, 2011 [1982], p. 110-111, 117.
[16] ZANDWAIS, Ana. Práticas políticas nacionalistas e funcionamento discursivo: totalitarismo, fascismo e nazismo. In: ZANDWAIS; ROMÃO (Orgs.), Leituras do político. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 133.
[17] Letícia Mori. Kataguiri rebate críticas de ativistas pró-Bolsonaro: ‘Radicais cegos e alucinados’. BBC News Brasil, 21/05/2019. Disponível aqui.
[18] Cf. manifestação contra “libertinos e comunistas” e em solidariedade ao então deputado Jair Bolsonaro: Neonazistas ajudam a convocar “ato cívico” pró-Bolsonaro em São Paulo. Uol Notícias, 06/04/2011. Disponível aqui.
[19] ZIZEK, 2011, p. 264.
[20] FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. Tradução de Fábio Landa e Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 146-147.
[21] FAYE, 2009, p. 148.
[22] ZIZEK, 2011; e MELO, Demian. Ernst Nolte e a historiografia revisionista. Blog Junho. 2016. Disponível aqui.
[23] Apud MELO, 2016.
[24] ZIZEK, 2011, p. 263-265.
[25] BERNARDO, 2018, p. 283.
[26] FAYE, 2009, p. 40.
[27] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 125.
[28] RANCIÈRE, 2014, p. 114-115.
[29] HOBSBAWM, 1995, p. 116.
[30] FONSECA, Rodrigo Oliveira. A interdição discursiva na cassação do PCB em 1947. In: TFOUNI; STÜBE; PAULON (Org.), Silêncio e interdito: discursos em movimento. São Carlos, SP: Pedro & João, 2016, p. 214-215.
[31] RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 100.
[32] Bem analisado por Santiago Assunção aqui.
[33] BERNARDO, 2018, p. 49-50.
As ilustrações reproduzem obras de Robert Rauschenberg (1925-2008).