Por A Voz Rouca

👩🏽‍🏫 DIÁRIO DA QUARENTENA #09
💻 Educação nos tempos de corona

AS TELETELAS DO TELETRABALHO

Há poucos dias eu estava no espaço que tão bem conheço: a sala de aula e suas quatro paredes. Hoje, estou junto com meus alunos apenas no tempo, mas não no espaço. Relaciono-me com eles diante de uma tela. Aqui não quero romantizar esse passado tão recente, mas que parece tão distante. Mas sim falar do presente distópico que nos foi imposto da noite para o dia.

Todos os contatos com os estudantes são agora mediados por uma tela. A relação se torna gélida e impede que eu possa travar qualquer contato mais estreito. Afinal, as imagens dos alunos não os substituem: não estou diante de uma sala digital, classroom ou o diabo que quiserem chamar.
Estou diante de uma tela, simples assim. Uma tela em que posso ver, porém sou muito mais visto. Eu me sinto numa vitrine. Os pais assistem aulas ao lado dos seus filhos para conferir o que o professor está falando para eles. A coordenação pode entrar em qualquer aula por meio de poucos cliques. E entram sem falar nada, assistem e saem em busca de policiar a aula de outro colega.

Aí está o sonho de muitos pais e dos gestores escolares: promover George Orwell como seu pedagogo de referência. As teletelas já estão em funcionamento. Agora todo meu trabalho pode ser acompanhado bem de perto. E se alguém metido a Grande Irmão perder sua aula, não tem problema, pois ela fica gravada. Nada escapa ao olhar da teletela – quanto tempo demorará para sair o livro “1984 para os gestores escolares”?

Os gestores não se aproveitam apenas da vigilância possibilitada pelas teletelas. Enquanto no sistema de teletrabalho cada professor trabalha em sua casa, a sala dos professores segue fechada. Também não há substituto para ela. Mas, como disse, não quero aqui romantizar. Que professor nunca passou nervoso nesse espaço? Porém, lá é o lugar para trocar ideias e experiências com seus colegas. E é nessa troca que pensamos nossas próprias ações e nos enxergamos enquanto colegas de trabalho. Sem esse espaço de trocas, os professores lidam com a fragmentação. Cada um na sua casa em frente à sua teletela. Que cenário encantador para a coordenação e a direção, não?

O retorno ao espaço escolar se faz necessário não apenas para a volta da socialização, tão importante para o processo de ensino-aprendizagem. Mas também para a volta do estabelecimento de algo essencial na educação: a construção da sala de aula. Para que o espaço físico de uma sala qualquer se torne o espaço pedagógico de uma sala de aula, é preciso a construção de um pacto entre os alunos e o educador. E esse pacto se faz por quem vive a sala no seu dia-a-dia dentro das suas quatro paredes. Quem não pertence à essa dinâmica deve ficar do lado de fora, não só do espaço físico, mas também do espaço pedagógico. E para que nós, professores, voltemos a ter o contato cara a cara, entre nós, para cada um saber como seus colegas estão pensando e sentindo o trabalho.

Por último e igualmente importante. Quando voltarmos para a escola após o fim da quarentena, saibamos com clareza não só o espaço físico de cada um, mas também seu lugar social. Por mais que se esforcem em passar a imagem de equipe, a coordenação e a direção não estão do nosso lado. Lembremos que sua preocupação sobre os efeitos da quarentena esteve voltada não para a nossa saúde mental, mas sim para as mensalidades. Adoram vestir o jaleco que nós usamos, mas não é coincidência o nosso uniforme estar sempre surrado, cheio de manchas de canetão e amarelado, enquanto o deles está sempre liso, limpo e branco.

(A Voz Rouca irá publicar na sua página relatos de abusos cometidos pelas escolas contra os trabalhadores durante a crise do Coronavírus. Caso você queira compartilhar alguma história, é só nos procurar ).

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