Por A Voz Rouca
👩🏽🏫 DIÁRIO DA QUARENTENA #10
💻 Educação nos tempos de corona
MÁQUINA DE CORRIGIR EM TEMPOS DE PANDEMIA
O ambiente da escola privada não se distingue muito do ambiente em uma fábrica, de uma linha de produção, ao menos não em essência. Produzir correções de texto. Essa é minha função. Nossa função. Corrigir. Corrigir. Corrigir.
Produções sem rostos. Sei que alguém as escreve, mas não deixa de ser uma figura na qual não me reconheço.
Alienação. Esse é o nome. Assim como o trabalhador na esteira da linha de produção que produz parafusos não sabe onde esses parafusos serão utilizados, se em um carro, em um liquidificador, em uma panela, tampouco eu sei para onde serão destinados e qual o propósito desses textos. Não sei se são alunos com dificuldade cognitiva, se têm alguma questão comportamental, se são alegres ou tristes.
Os estudantes tampouco sabem quem somos. Em meu primeiro dia de trabalho uma das crianças me disse: “Achava que quem corrigia os textos era um computador”. Em verdade essa criança não está equivocada. Somos submetidos a um ritmo insano. Trabalhamos 44 horas semanais. Tenho que corrigir a cada fim de período, em média, 2.000 produções textuais. Não tenho outra alternativa senão me converter em máquina para dar conta dessa quantidade de correções.
Trabalhamos em um setor à parte, que apenas amplia o isolamento com relação aos outros funcionários e aos próprios estudantes.
Como se não bastasse, soma-se a meu trajeto diário cerca quatro horas de percurso entre minha casa e o trabalho e vice-versa. Totalizando uma jornada de trabalho de 12 a 13 horas. Em decorrência da pandemia, o isolamento social não está sendo tão diferente daquele na escola, lá já vivíamos, de certa forma, isolados. A diferença está sendo o não desgaste no transporte. Em contrapartida, todos os meios de trabalho agora são extraídos de mim: internet, computador, energia elétrica, água, e ainda falam em diminuir salários, quando, em verdade, deveriam aumentá-los para compensar esses gastos.
Em meio à crise do coronavírus, insistimos para a direção que nos liberassem do trabalho presencial, já que nos locomovemos por longas distâncias e somos
expostos, em decorrência do uso constante do transporte coletivo. Linha vermelha do metrô lotada. O cúmulo da contradição, vejam só, uma companheira e eu, esmagadas entre tantas pessoas, o trem parado na plataforma, na televisão do vagão propagandas sobre os cuidados que as pessoas deveriam ter diante dessa Pandemia: evitar aglomerações.
Agora a máquina de correção trabalha em casa. Corrigindo textos e mais textos (físicos e digitais) com suas próprias máquinas e recursos, cada dia mais escassos. Ainda mais isolados, só se dão conta de nossa existência quando as correções atrasam, mensagens e mais mensagens não deixam de chegar. Ansiedade.
O jeito é nos cuidarmos para não sermos afetados pelo COVID-19 e pelas tantas outras enfermidades que essa forma de trabalho estimula. Ao fim do trimestre talvez lembrem-se de que também adoecemos.
Caracol de Maria
(A Voz Rouca irá publicar na sua página relatos de abusos cometidos pelas escolas contra os trabalhadores durante a crise do Coronavírus. Caso você queira compartilhar alguma história, é só nos procurar ).
