Por Passa Palavra

A Suprema Corte britânica admitiu esta semana uma apelação interposta pelo governo dos Estados Unidos contra uma decisão proferida pela juíza Vanessa Baraitser em janeiro deste ano, que rejeitou o pedido de extradição de Julian Assange com fundamento no receio de que ele possa tentar se suicidar no cárcere devido ao seu estado mental. Na prisão de segurança máxima onde aguarda a extradição o mesmo sofreu um episódio de derrame, ao que indicam os familiares, causado pelo estresse.

A decisão da Suprema Corte, proferida no último dia 10, acolheu quatro garantias oferecidas pelo governo americano: Assange não será submetido às chamadas Special Administrative Measures (SAMs), que incluem manter o prisioneiro incomunicável, retirar-lhe o direito de receber visitas, impedi-lo de dar entrevistas, monitoramento de conversas com advogados, entre outras medidas; caso condenado, poderá requerer o cumprimento da pena na Austrália, sua terra natal, do que dependerá a anuência do governo australiano; Assange receberá tratamento médico e psicológico enquanto estiver sob custódia do governo americano; por fim, ele não será encarcerado na penitenciária de segurança máxima de Florence, Colorado, antes do julgamento, e só poderá ser enviado para lá, depois do julgamento, verificado o risco de novos crimes que justifiquem a medida.

Protesto em Berlim

Quanto às ditas garantias, é preciso ter em mente que se prestam mais a viabilizar a aceitação da extradição pelo Reino Unido do que qualquer outra coisa, de modo que o governo americano poderá se valer de diversos expedientes para, tendo colocado as mãos em Assange, privá-lo para sempre de quaisquer liberdades e direitos.

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Em abril de 2019 alertávamos, num artigo sobre as prisões de Assange na embaixada do Equador em Londres e de Ola Bini, detido ilegalmente no aeroporto de Quito no mesmo dia da revogação do asilo concedido pelo governo equatoriano a Assange, que “está em curso um processo de criminalização contra aqueles que tentarem trazer à tona fatos relacionados a crimes cometidos por políticos e altos gestores do Estado”.

Na verdade, aquele processo de criminalização desdobra-se em duas frentes. O que se busca é não apenas frustrar o esforço de publicização de crimes cometidos pelas classes dominantes, devidamente engavetados em registros públicos e privados inacessíveis ao cidadão comum, mas ainda criminalizar a tentativa de tornar segura e livre a navegação e a comunicação pela internet. A ONG Artigo 19 definiu muito bem este segundo aspecto do problema quando expressou, na época da prisão de Bini, o receio de que “a prisão e a detenção ilegal de Ola Bini seja parte de um ataque generalizado contra uma comunidade de desenvolvedores que constrói tecnologias de segurança digital que garantem a liberdade na internet e a segurança nas comunicações online”.

Também faz parte desse processo, como destacado num artigo escrito por Ggus que publicamos há poucos dias, a tentativa de bloquear o acesso dos internautas a softwares como o Tor, desenvolvidos para garantir a privacidade e o anonimato na navegação pela internet.

Assim, empresas e governos buscam obter controle total sobre nossa atuação em espaços virtuais, definindo que informações podem chegar ao nosso conhecimento, que tipo de softwares podemos usar para acessá-las, bem como de que maneira podemos interagir e nos comunicar e, finalmente, para quê utilizaremos a internet. O objetivo dos capitalistas é nos cercar de todas as direções. Ao mesmo tempo, empresários e gestores públicos e privados pretendem dispor de informações detalhadas e atualizadas a nosso respeito, usando-as e compartilhando-as livre e discretamente, por razões econômicas ou para reforçar o poder que já exercem sobre nós diariamente. O leitor do Passa Palavra pode conferir uma série de artigos que já publicamos sobre a temática da vigilância neste link.

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Além do mais, é preciso levar em consideração outra questão. Os capitalistas em geral, estejam eles à frente do aparato do Estado ou de empresas públicas ou privadas, e tanto nas ditaduras quanto nas democracias, buscam não apenas garantir uma exploração cada vez mais intensa da classe trabalhadora como também impedir o surgimento ou neutralizar, desarticular e eliminar qualquer oposição efetiva ao capitalismo. O monitoramento de nossa atuação, bem como a capacidade de nos privar de informações que possam nos auxiliar em nossa luta contra a exploração são, assim, importantes trunfos nas mãos dos capitalistas. Quando a vigilância, o sigilo e outros artifícios mostram-se insuficientes, os capitalistas recorrem à repressão pura e simples: prisão, tortura e assassinato de militantes.

Manifestantes em Dublin

Ocorre que nas democracias é mais difícil recorrer à repressão violenta contra um número elevado de militantes, a não ser que as autoridades tenham êxito na conquista da opinião pública, e mesmo assim é preciso tentar manter as coisas em segredo, a exemplo das gravíssimas e infames violações de direitos humanos cometidas pelo governo dos Estados Unidos contra membros de grupos terroristas islâmicos. Essa dificuldade aumenta quando as ações dos ativistas são apoiadas pela opinião pública e eles conseguem agir anonimamente e sem deixar rastros. Os capitalistas tentam então pinçar aqueles entre eles que, por uma razão ou outra, sejam mais vulneráveis, fáceis de identificar e, caso sejam presos, possam não apenas ser pressionados a fornecer informações sobre os demais como também servir de exemplo, neutralizando a mobilização coletiva por meio da intimidação. Além disso, os capitalistas buscam constranger qualquer forma de ativismo por meio de campanhas caluniosas e difamatórias, bem como estabelecer precedentes judiciais e uma cultura avessa à militância anticapitalista, moldando a opinião pública para que se acostume a reprovar o comportamento daqueles que se levantam e decidem agir.

É este o caso Assange. Como apontamos neste artigo, o projeto que deu origem ao WikiLeaks foi construído por um coletivo de militantes anônimos que decidiram, como estratégia de defesa, nomear um porta-voz que respondesse pelo grupo, para a garantia da segurança dos demais membros, estratégia esta que, como sublinhamos naquela altura, possuía seus riscos e limitações.

Entretanto, o que importa salientar no momento é que, perseguindo Assange, autoridades e empresários de mais de um país, e por razões distintas, buscam não apenas fazer com que sirva de exemplo, mas também identificar e punir outros militantes, imobilizá-los, constrangê-los, marginalizá-los e voltar contra eles a opinião pública, quando não eliminá-los de vez. O que está em jogo não é apenas a liberdade e a integridade física e mental, a dignidade de um militante, mas a de todos nós.

Além do mais, para além do âmbito mais restrito do ativismo de esquerda, está em jogo o controle total dos espaços virtuais e da comunicação nesses espaços, por instituições dedicadas a transformá-los em instrumentos para o reforço das relações de poder e de exploração que atendem aos interesses das classes exploradoras. Por isso devemos sair em defesa de Assange. Por isso devemos lutar.

As fotografias que ilustram o artigo foram retiradas de postagens do WikiLeaks no twitter.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente texto. Nos faz refletir bastante.

    As lutas de classes, de fato, são generalizadas para os “espaços virtuais”. Estes espaços foram desde sempre munição para a arma da exploração e dominação.

    Da mesma forma que tentamos minar a hegemonia burguesa na sociedade, também devemos combatê-la nos espaços virtuais, que não deixa de ser uma extensão do mundo “não-virtual”.

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