Por Passa Palavra
No sábado, dia 7 de Março, as organizações de professores em Portugal promoveram um “cordão humano” de alguns quilómetros que se estendeu do Ministério da Educação ao Largo do Rato [sede do PS, Partido Socialista, no governo] e depois se concentrou em São Bento, em frente do parlamento – ver aqui, na secção Em Directo, os depoimentos áudio de três manifestantes. A novidade desta luta dos professores portugueses contra o governo socialista, que já leva alguns anos, é o aparecimento de vários movimentos espontâneos na sua base, os quais têm sido fundamentais em dois aspectos, inéditos no nosso país: uma mobilização sem precedentes dos professores (por duas vezes, manifestaram-se 120.000, ou seja, dois terços do total dos professores portugueses); e uma pressão crítica e combativa sobre as estruturas sindicais tradicionais e burocráticas, sempre propensas a negociar com o governo à revelia dos profundos desejos das bases. No sábado, dia 14 de Março, vai ter lugar na cidade de Leiria (no Teatro José Lúcio da Silva) um Encontro Nacional de Professores em Luta, promovido pelos cinco movimentos referidos nesta entrevista, sob o lema “Reforçar o espírito de unidade e de luta!”. Um desses movimentos é a ACEDE e Mário Machaqueiro é um dos seus principais animadores. Eis as resposta que deu às nossas perguntas.
Passa Palavra (PP) – Por que lutam os professores portugueses presentemente, e qual foi a evolução dessa luta nos últimos anos?
Mário Machaqueiro (MM) – Os professores estão em luta contra um conjunto de políticas governativas, plasmadas na legislação que se foi abatendo sobre as escolas desde que a actual maioria PS assumiu funções governativas, políticas que visam proletarizar os professores, degradar a sua condição de assalariados e o seu estatuto de transmissores do conhecimento, ao mesmo tempo que acentuam a transformação dos estabelecimentos de ensino público em meros depósitos de crianças e de jovens nos quais se encontram minados os meios de comunicação do saber e de apropriação crítica e criativa do conhecimento. Os professores lutam contra a divisão espúria da carreira docente em titulares e não titulares (professores ”de primeira” e “de segunda”), com barreiras artificiais na progressão salarial e uma desvalorização efectiva do trabalho produzido por muitos docentes, contra um modelo de avaliação que procura converter os docentes em fabricantes de sucesso escolar artificial, para efeitos meramente estatísticos, e contra um modelo de administração escolar que destrói a colegialidade e a partilha democrática no processo de tomada de decisões, colocando todo o poder nas mãos de um director que passa a ser uma mera correia de transmissão dos ditames ministeriais.
A luta dos professores evoluiu em três tempos: de Fevereiro a Março de 2008, a mobilização dos professores cresceu muito rapidamente, apanhando de surpresa todos os actores envolvidos e culminando na grande manifestação de 8 de Março. Depois, o memorando de entendimento entre o Ministério e a Plataforma Sindical colocou, no final do passado ano lectivo, um ponto final nessa mobilização, traindo muitas das expectativas que tinham sido criadas. No corrente ano lectivo, e logo nos primeiros meses, os professores voltaram a mobilizar-se, desta feita de forma muito espontânea nas escolas e à margem das orientações sindicais. Na verdade, os sindicatos sentiram a necessidade de enquadrar esse movimento espontâneo e de responder a iniciativas independentes como a convocação da manifestação de 15 de Novembro que, em grande medida, acabou por estar na origem da manifestação de 8 de Novembro. A terceira fase da luta dos professores é aquela em que nos encontramos agora: depois de os professores estarem fortemente mobilizados ao longo de todo o primeiro período e de realizarem das greves mais participadas de sempre, encontram-se agora relativamente divididos mercê do refluxo que acompanhou a forma de luta que consistiu na recusa de entrega dos objectivos individuais enquanto momento de um processo de avaliação que os professores haviam rejeitado de forma quase unânime.
O desafio que os movimentos e os sindicatos agora enfrentam é o de encontrar formas de luta que reunifiquem os professores, sabendo que muitos dos que cederam na entrega dos objectivos individuais o fizeram por medo face às chantagens do Ministério e pela vulnerabilidade em que se acham muitos docentes sem vínculo à função pública.
PP – Por que luta a APEDE em particular, e porquê e como nasceu a ideia de criar essa associação? Qual a sua implantação e forma de funcionamento? O que a distingue de outras, como o MUP, o MEP, o PROMOVA ou a CDEP? Qual a sua relação, se é que existe, com estruturas sindicais como a FenProf ou os sindicatos regionais?
MM – A APEDE (Associação de Professores e Educadores em Defesa do Ensino) constituiu-se a partir de uma reunião que, a 23 de Fevereiro de 2008, juntou nas Caldas da Rainha cerca de 500 professores oriundos do norte, do centro e do sul do país. O seu objectivo é lutar contra as políticas acima referidas, mas também propor, na base de uma reflexão o mais partilhada possível, novas ideias para uma reformulação profunda do sistema de ensino em Portugal. Infelizmente, a necessidade de responder à urgência da luta que temos travado tem-nos impedido de cumprir este último objectivo.
O que distingue a APEDE dos outros movimentos é a sua base institucional enquanto associação legalmente constituída. O nosso propósito é congregar, numa estrutura mais estável e duradoura, os diferentes movimentos independentes de professores que foram surgindo em diferentes regiões do país, de modo a contrariar a tendência para uma certa volatilidade que poderá caracterizá-los. Infelizmente, a cultura fragmentária que grassa entre os professores tem impedido que este objectivo seja realizado, embora, por outro lado, isso também contribua para a pluralidade e a riqueza cívica que tem marcado a emergência dos vários movimentos. Nesse sentido, a APEDE acaba por ser um movimento entre outros, apesar da sua componente associativa. Não temos quaisquer ligações a sindicatos, ainda que vários dos nossos membros sejam sindicalizados. O nosso propósito é complementar a acção sindical e constituir, ao mesmo tempo, uma consciência crítica dos limites que, por vezes, bloqueiam a intervenção política das organizações sindicais. Neste momento, a APEDE conta, sobretudo, com sócios no norte, no centro e na região da Grande Lisboa.
PP – Que factores foram, a seu ver, decisivos para a espectacular mobilização que já por duas vezes os professores conseguiram para as suas manifestações (em 2007 e 2008)?
MM – A grande mobilização dos professores assenta numa conjugação de factores: o facto de se ter atingido um ponto de saturação perante a forma arrogante e ofensiva com que a equipa do Ministério da Educação tratou os professores, fazendo deles o bode expiatório de todos os males do sistema educativo e apresentando-os à opinião pública como um grupo socialmente privilegiado, explorando com isso o ressentimento social de modo a conseguir apoio para uma política de redução de direitos laborais; o facto de terem surgido movimentos independentes dos partidos e dos sindicatos que muitos professores encararam como uma emanação genuína da classe docente, porque não comprometida com agendas extrínsecas aos interesses dos professores; o facto de a blogosfera se ter constituído como uma plataforma de troca de ideias e de informação, contribuindo para mobilizar os docentes à margem dos canais tradicionais.
PP – Nesta luta, os professores têm tido apoio concreto de outras classes profissionais – da educação ou não -, dos estudantes e dos pais de alunos? Ou considera que essa luta se tem limitado, ou que alguém a procura limitar, aos interesses restritos dos professores?
MM – Tem sido uma preocupação dos movimentos não afunilar a luta dos professores em torno de questões meramente corporativas, pois aquilo que está hoje ameaçado é a própria natureza democrática da escola pública e o futuro de um sistema educativo capaz de conciliar a exigência e o rigor com a inclusão social. Nesse sentido, a APEDE chegou a encetar contactos com associações de pais, quer a nível local, quer a nível mais alargado. Infelizmente, a nossa falta de tempo não tem proporcionado que esses contactos se sistematizem numa plataforma conjunta, e nós entendemos que essa é uma grande lacuna do movimento global dos professores. O combate pela opinião pública e a capacidade de contrariar a propaganda intoxicante do Governo ainda não foram ganhos pelos professores e pelas suas organizações representativas.
PP – Que saída – profissional e/ou política – pensa que pode haver para esta confrontação com o governo? Como avalia as possibilidades actuais de os professores saírem vencedores?
MM – O desenlace da luta dos professores vai depender, em muito, da capacidade de os sindicatos se manterem unidos na Plataforma e firmes no sentido de não embarcar em quaisquer negociações à revelia dos anseios da classe docente. Além disso, o sucesso desta luta terá necessariamente de passar pela sua radicalização no terceiro período do presente ano lectivo, uma radicalização assente em greves mobilizadoras e eficazes nos seus efeitos (a greve às avaliações é uma possibilidade que está agora a ser equacionada, quer pelos movimentos, quer pelas direcções sindicais). A frente de combate no plano jurídico e judicial que se abriu recentemente poderá também contribuir para forçar o Governo a ceder em pontos essenciais. Acreditamos que só a cedência completa por parte do Governo, e ainda neste ano lectivo, em aspectos como a divisão da carreira e o modelo de avaliação representará um sucesso para os professores, impedindo que esta ou outra maioria governativa possa implementar outras tantas pseudo-reformas que já estão previstas e que, caso se instalem no sistema de ensino, irão desfigurar definitivamente o que resta da profissão docente e da escola pública neste país.
PP – Que outros aspectos desta luta, não referidos acima, entende realçar?
MM – Destaco um aspecto que me parece relevante: o facto de o surgimento de movimentos independentes de professores ter contribuído para acrescentar formas novas de democracia participativa num país que, em regra, se caracteriza pela apatia e pela inércia da participação cívica. Trata-se de um fenómeno inédito, em grande parte impulsionado pela rede comunicacional da Internet, que partidos e sindicatos devem procurar compreender e acarinhar em vez de se esforçarem por querer controlar ou esmagar.