Por João Bernardo
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Por que motivo Marx, tanto na questão do Estado como na do dinheiro, seguiu em O Capital a inspiração de David Ricardo em vez de seguir a de Adam Smith? No entanto, seria a abordagem de Adam Smith, com o peso dado às instituições e ao jogo entre elas, que mais próxima estaria das preocupações políticas de Marx. Nunca consegui resolver cabalmente o paradoxo, mas talvez se descubra uma pista de solução se recordarmos que Marx adoptou um modelo em que cada empresa era considerada como exemplo de todo o capitalismo. Ora, ele estava assim a descurar as infra-estruturas tecnológicas, materiais e sociais sem as quais o capitalismo não funciona, e o Estado tem nestas infra-estruturas um dos seus campos de acção privilegiados. Transposto para a realidade empírica da época, o problema consistiu em tomar como referência o sistema livre-concorrencial de Manchester, em que a acção económica do Estado era reduzida, e não o governo intervencionista do Segundo Império francês. Daí a flagrante ausência do Estado em O Capital, enigmática da parte de um autor que se considerava acima de tudo como um político.
Mas quando, no Marx Crítico de Marx, notei aquela ausência, o caminho que me proporcionou essa observação estava já aberto, porque nos meus escritos anteriores eu considerara que o valor, enquanto tempo de trabalho mínimo possível de incorporar num produto, exigia o relacionamento das unidades particulares de produção com as condições gerais de produção, o que implicava que o Estado, ligado às condições gerais de produção, era indispensável ao capitalismo desde a sua génese.
Assim, não foi a forma como Marx tratara — ou não tratara — a questão do Estado, mas a forma como tratara a questão do dinheiro que mais me surpreendeu quando reli O Capital para preparar o Marx Crítico de Marx. Nessa obra abordei os problemas pecuniários em muitos lugares, mas vou concentrar-me agora no curto capítulo que dediquei à questão (aqui), onde sintetizei não só as conclusões a que chegara, mas sobretudo as novas perspectivas que desejava abrir.
A concepção marxista do dinheiro decorre da forma como a relação entre preços e valores foi apresentada enquanto pura correspondência, de modo que só posteriormente os atritos sociais turvariam a limpidez dessa expressão. Mas a perspectiva de Marx é ainda mais estapafúrdia, porque além de considerar que o dinheiro seria equivalente ao valor, ele considerava também que o dinheiro seria ele próprio um valor e, portanto, se exprimiria a si mesmo. Ora, esta é uma noção anacrónica, herdada da época mercantilista, e eu chamei a atenção para «o assombroso paradoxo de que o mediador das relações sociais no capitalismo se encontraria já constituído nas formas pré-capitalistas» (vol. II, pág. 191). Classifiquei a apresentação do dinheiro enquanto expressão imediata de valores como «naturalização do dinheiro» e observei que «essa naturalização do dinheiro impede a distinção entre o sistema monetário especificamente capitalista e os múltiplos sistemas determinados nos modos de produção não-capitalistas». O anacronismo comprova-se ao verificarmos que Marx «consegue expor os processos de produção, de circulação e de realização dos valores sem nunca elaborar uma teoria do crédito» (vol. II, pág. 192).
Ora, só a partir do crédito é possível apresentar uma concepção do dinheiro específica do capitalismo. «Que o dinheiro exista enquanto entidade física palpável, ou que seja uma expressão que não ultrapasse os livros de contas, de nada interessa se a sua existência permitir que as relações inter-capitalistas se processem, que as mercadorias se realizem, que a produção se reproduza» (vol. II, pág. 193). Na perspectiva que eu começara a defender no Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista e prossegui no Marx Crítico de Marx, as relações intercapitalistas consistem na articulação das possibilidades de produção com as possibilidades de realização e, portanto, fica implícita a problemática das conjecturas. «O dinheiro é o veículo institucional das conjecturas» (vol. II, pág. 193). Trata-se de «conceber o dinheiro como o veículo que permite a actividade conjecturante» (vol. II, pág. 194). Ou ainda: «Do modelo que proponho decorre […] uma concepção que nega o dinheiro enquanto expressão naturalizada das mercadorias e o considera uma expressão institucionalizada da prática dos capitalistas, enquanto veículo de realização institucional das suas conjecturas. O dinheiro deixa de relacionar-se com mercadorias tomadas como naturais para se relacionar com práticas tomadas como conjecturantes. É o dinheiro que permite a efectivação da articulação sempre concreta entre o bloco das possibilidades de produção e o bloco das possibilidades de realização» (vol. II, pág. 196). Para quem conheça as teorias económicas, é visível que esta noção do dinheiro como elo entre o presente e o futuro foi inspirada pela leitura das obras de John Maynard Keynes e Axel Leijonhufvud.
Assim entendido, no capitalismo o dinheiro é puramente simbólico, ficando aberto o caminho para a sua definição enquanto linguagem. Mas a diferença revelou-se grande entre abrir o caminho e percorrê-lo.
Num rápido balanço, muita coisa mudou na minha abordagem quando, no Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista (aqui), ultrapassei o esquema marxista clássico, em que uma empresa funcionaria como exemplo de todo o capitalismo, e passei a conceber um modelo em que os valores produzidos pelo conjunto dos trabalhadores são apropriados pela globalidade dos capitalistas, que só posteriormente os repartem entre si. Foi necessário atribuir ao dinheiro formas e funções diferentes daquelas que o marxismo me habituara a considerar, mas não poderia fazê-lo se permanecesse no campo estrito da obra de Marx e me limitasse à economia capitalista. Tive de rasgar outros horizontes teóricos e históricos e foi então, no final de 1977, que me abalancei a pesquisar o regime senhorial desde o século V até ao século XV e a escrever o Poder e Dinheiro (3 vols., Porto: Afrontamento, 1995, 1997, 2002) (aqui, aqui e aqui), um trabalho que me ocupou ao longo de vinte e quatro anos.
A história só poderá aproximar-se do estatuto de ciência mediante o uso do método comparativo, aquele que de mais perto cumpre as funções que o laboratório desempenha para o cientista. Trata-se de estabelecer as variantes de um fenómeno ou de um processo, tanto em diversas regiões na mesma época, sincronicamente, como diacronicamente, ao longo do tempo, cobrindo épocas diferentes. Tudo o que se inserir no perímetro definido por essas variantes obedece a uma classificação comum, não por qualquer identidade nas aparências, mas porque é análoga a estrutura que sustenta essas aparências e que elas eventualmente dissimulam. Deste modo evita-se considerar como modelo de referência um caso concreto em particular, o que leva a uma abusiva secundarização dos demais casos. Nem se recorre ao artifício de construir um falso empírico juntando características parcelares de vários casos reais, uma espécie de Lego mental denominado tipo ideal. Tal como eu o aplico, o método comparativo serve para definir campos, e a estrutura intrínseca a um campo explica-lhe não só a sua existência em cada época como o seu desenvolvimento ao longo do tempo.
Quer o historiador esteja ou não consciente disso, a história serve para conhecer o passado somente na medida em que esclarecer o presente. Eu pesquisei mil anos de regime senhorial apenas para, por comparação e contraste, entender a novidade do dinheiro no capitalismo. E se parei no século XV, quando o regime senhorial estava à beira de assumir no mercantilismo a sua forma derradeira, foi porque dispunha já de material suficiente para compreender o anacronismo do modelo pecuniário adoptado por Marx, o que me permitiu encarar o dinheiro no capitalismo numa perspectiva que rompe drasticamente com o passado. No Poder e Dinheiro, o poder foi o quadro geral em que, a partir de relações pessoais de tipo familiar, se desenvolveram formas de Estado sustentadas por relações impessoais, que permitiram depois gerar o Estado moderno. Mas era o outro termo do binómio que sobretudo me interessava, quando considerei o dinheiro como veículo daquelas relações impessoais. Pretendi assim preencher as duas lacunas que tanto me haviam incomodado em O Capital.
No Poder e Dinheiro estudei uma multiplicidade de formas pecuniárias, tanto no âmbito das variantes do regime senhorial como noutros sistemas económicos, coevos ou anteriores, e pude mostrar que essas formas se distinguiram no material usado como suporte, dispensando mesmo qualquer sustentação concreta, assim como se distinguiram também pelo carácter centralizado ou descentralizado da sua emissão e ainda pelo tipo de relações que se destinavam a veicular e pelos percursos e o âmbito da sua circulação. Em suma, graças à sua enorme plasticidade, o dinheiro surgiu-me como um componente indispensável de todos os sistemas económicos, caracterizado por um factor comum — ser um articulador de relações sociais, sem o qual elas não conseguiriam efectuar-se. Nesta ampla perspectiva pude conceber o dinheiro no capitalismo independentemente do mercado ou da materialidade de mercadorias, e sem nenhuma ligação obrigatória ou sequer preferencial a qualquer tipo de suporte. Faltou-me só a palavra. Entendido como um conjunto organizado de símbolos destinado a articular relações, o dinheiro é uma linguagem.
Dois anos após o início da pesquisa que levaria ao Poder e Dinheiro publiquei O Inimigo Oculto (Porto: Afrontamento, 1979) (aqui). Escrevi-o em três meses e meio no final de 1978, foi talvez o livro que escrevi mais rapidamente. Serviu-me para prolongar novos campos de reflexão, nomeadamente a estrutura de classes do capitalismo e a crítica ao movimento ecológico, mas nada adiantei de significativo no que diz respeito ao dinheiro, se é que não retrocedi.
Com efeito, retomando uma das teses centrais que havia desenvolvido no Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista, afirmei em O Inimigo Oculto que «enquanto no capitalismo a concorrência se exerce na própria produção, em todos os outros tipos de mercado a concorrência é meramente comercial» (pág. 13). Ou, numa formulação mais elaborada: «[…] a concorrência inter-capitalista no mercado assenta na concorrência inter-capitalista no próprio processo de produção; o mecanismo fundamental da concorrência capitalista reside na luta pelo aumento da produtividade, a qual se processa inteiramente ao nível do fabrico dos produtos» (pág. 21). Assim, referindo-me aos sistemas económicos pré-capitalistas, pude dizer sinteticamente que «produção e comércio estavam cindidos» (pág. 17). Depois de mencionar a fragmentação do mercado e o seu âmbito reduzido nos sistemas pré-capitalistas, escrevi: «Deste modo, a actividade mercantil existia em círculo fechado, num nível independente em relação à actividade produtiva geral, sem afectar os aspectos mais importantes da economia. A produção de bens era independente da actividade mercantil» (pág. 14). E concluí. «Deste carácter irregular e não-generalizado da actividade mercantil resultava a utilização restrita do dinheiro, que só pode expandir-se numa sociedade onde a troca de produtos constitui um fenómeno corrente da vida económica» (pág. 15). Ora, essa sociedade só pôde ser a sociedade capitalista. «O capitalismo é o único sistema económico que assenta na produção de mercadorias, ou seja, onde os bens são produzidos com a finalidade única da sua venda» (pág. 20).
Portanto, em O Inimigo Oculto eu restringi explicitamente o dinheiro no capitalismo ao âmbito do mercado, dando um passo atrás relativamente ao que conseguira formular em obras anteriores. Por outro lado, as leituras a que me dedicava para elaborar o Poder e Dinheiro eram ainda demasiado incipientes. É naquele contexto que deve entender-se a seguinte passagem: «As instituições bancárias centralizadas encarregadas da emissão monetária e da organização do crédito, permitindo uma orientação global dos investimentos e do movimento dos capitais, são outra condição básica do sistema capitalista de produção» (pág. 24). Em vez de abrir uma via para a compreensão do dinheiro no capitalismo, o crédito foi aqui remetido para o âmbito do mercado.
E assim eu analisei longamente a crise económica de 1929 e o seu prolongamento pela década seguinte sem em nenhum momento esboçar sequer uma abordagem da questão do dinheiro. A omissão foi mais grave ainda quando mencionei a inflação e depois a estagflação da década de 1970 ocupando-me só superficialmente das formas pecuniárias. «A taxa de utilização da capacidade produtiva diminui e o desemprego cresce», escrevi eu acerca da crise económica inaugurada em 1974, «mas os desempregados recebem subsídios e o mecanismo geral de estímulo ao consumo continua a vigorar. Por isso é crescente o desfasamento [defasagem] entre a taxa de aumento da capacidade aquisitiva do mercado de consumo particular e o ritmo da produção industrial. Qual o segredo do funcionamento deste processo? A criação de moeda» (pág. 137). Perdi aqui uma óptima oportunidade de expor os mecanismos pecuniários, porque de novo os remeti para o âmbito estrito do mercado. «[…] o valor da moeda não resulta de uma pura convenção social. Mantém-se na medida em que conservar uma dada relação com a massa dos produtos. Aumentar as capacidades aquisitivas numa situação de estagnação da produção é provocar uma erosão do valor da moeda. É esta a consequência da inflação sob o ponto de vista do consumo: um dado valor nominal representa uma capacidade de compra, ou seja, um valor real, cada vez menor» (págs. 137-138). Em seguida, quando mencionei o papel do dólar como meio de pagamento internacional, localizei a questão apenas no mercado mundial. «[…] sendo a evolução do valor da moeda determinada sempre pela evolução da sua relação com a quantidade de mercadorias […]» (pág. 142), afirmei eu, referindo-me ao dólar. Foi realmente um grande passo atrás em comparação com o que já havia escrito.
No entanto, muito de fugida e já no capítulo dedicado à crítica aos movimentos ecológicos, considerei que «Friedman e os seus adeptos não tomam em conta que a restrição da criação de moeda numa situação económica inflacionista leva unicamente ao aumento da velocidade de circulação da moeda em curso e à sua criação particular (não governamental), de forma que a inflação monetária verificar-se-ia sempre, como aliás vários exemplos históricos elucidam» (págs. 147-148). Esta observação, que pela sua acuidade destoa das outras menções ao dinheiro dispersas ao longo do livro, parece anunciar o tema de um artigo escrito após um intervalo de quatro anos.
Refiro-me a «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro» (aqui), onde pode apreciar-se o que eu conseguira avançar graças à pesquisa entretanto prosseguida no estudo do regime senhorial. Na primeira parte desse artigo analisei dois conjuntos de utopias de abolição do dinheiro.
No Comunismo de Guerra, como se designa o sistema económico vigente durante a guerra civil nas áreas do antigo Império Russo dominadas pelos bolchevistas, considerava-se que no interior do sector estatal o dinheiro fora abolido pelo facto de as trocas se efectuarem directamente em bens, quer entre as empresas quer no pagamento dos salários. «Entendia-se que a realização das transacções entre empresas mediante acertos contabilísticos (clearing) constituía uma abolição do dinheiro». Tratava-se, argumentei eu, de uma «fetichização extrema do dinheiro, que era reduzido à moeda materialmente considerada» (pág. 56). Por vezes emitiam-se senhas, evitando as notas emanadas do banco central, que sofriam uma depreciação crescente. Ora, essas senhas não eram senão uma modalidade de dinheiro. «Na época final do Comunismo de Guerra o governo nomeou comissões de economistas para estudarem a criação de uma unidade que substituísse, na contabilidade, o velho rublo. Todas as propostas apresentadas constituíam variantes de uma unidade: o trabalho físico incorporado». E concluí. «Da pretensa abolição do dinheiro resultara a naturalização absoluta da lei do valor» (pág. 56).
Contrariamente ao que sucedia no interior do sector estatal, nas relações entre este sector e o campesinato privado, quando não se procedia à simples requisição de bens, começara por se utilizar os tradicionais rublos. Mas com a inflação e a depreciação das emissões do banco central, os camponeses deixaram de aceitar rublos. «Desenvolveu-se o escambo […] E começou a verificar-se a criação particular de dinheiro: sal, tabaco, farinha, tecidos, álcool […] Note-se que todas estas formas de dinheiro podiam ser consumidas, o que se relaciona com a grande extensão assumida pelo escambo […]» (págs. 57-58).
«Que concluir? O Comunismo de Guerra pretendeu abolir o dinheiro, mas os resultados foram: 1) O dinheiro continuou a servir de base a toda a distribuição no interior do sector estadualizado (a contabilidade em rublos); 2) à emissão central de dinheiro no interior do sector estadual começou a substituir-se uma emissão local de dinheiro (as senhas emitidas pelos chefes de empresa ou autoridades locais do Partido); 3) nas relações entre os camponeses e as camadas urbanas criaram-se particularmente novos tipos de dinheiro (sal, tabaco, farinha, tecidos, álcool)» (pág. 58). Mas a verdadeira conclusão veio em seguida. «Em suma, o Estado estava perdendo completamente o controle dos mecanismos da economia. E da utopia da abolição do dinheiro resultara uma tripla forma de dinheiro!» (pág. 58).
Em seguida analisei as consequências do segundo conjunto de utopias de abolição do dinheiro, durante a guerra civil de Espanha e já em algumas experiências precursoras aquando das insurreições de Janeiro de 1933 no Levante, de Dezembro desse ano em algumas aldeias do Baixo Aragão e em Outubro de 1934 nas Astúrias. Na realidade, e tal como sucedera no caso do Comunismo de Guerra, nas insurreições de 1933 e 1934 o dinheiro continuava a ser usado nas trocas como meio de contabilidade e os comités revolucionários emitiam senhas para substituir as notas oficiais. «Conclusão: 1) não se punha em causa o dinheiro como instrumento contabilístico básico; 2) quando muito, as senhas emitidas restringiam a liquidez monetária; mas, como as pessoas podiam trocar as senhas entre si, elas acabariam por equivaler a notas de diferentes denominações» (pág. 59). Mais tarde, durante a guerra civil, mostrei o contraste entre duas experiências. Por um lado, nos centros urbanos e industriais da Catalunha a confederação sindical anarquista, Confederación Nacional del Trabajo, usava o dinheiro ou recorria ao clearing, pretendendo com isso ter abolido o dinheiro. Nas regiões rurais, por outro lado, a peseta ou continuava a ser o termo de referência na contabilidade, ou era substituída por dinheiro emitido pelas colectividades locais, ou por senhas ou cadernetas de trabalho que cumpriam funções pecuniárias. Só em raras comunidades, com escassos habitantes e de grande pobreza, o dinheiro foi efectivamente abolido, mas quase não havia bens para repartir ou trocar.
Resumindo a análise destas experiências, concluí. «Partindo da tese da reificação das relações sociais pelo dinheiro, que oculta essas relações, estas várias utopias realizadas da “abolição” do dinheiro acabaram por chegar a uma forma extrema de fetichização do dinheiro: julgaram que atacar a moeda materialmente considerada era atacar as relações sociais que ela encobria» (pág. 63).
Mas a chave para a compreensão do artigo reside na segunda parte, onde a análise das formas pecuniárias vigentes no período arcaico do regime senhorial resultou, toda ela, da pesquisa que estava a empreender para o Poder e Dinheiro. E se só o método comparativo permite aproximar a história de uma ciência, foi graças ao estudo das formas pecuniárias medievais que pude entender a fetichização do dinheiro no Comunismo de Guerra russo e na guerra civil espanhola. Depois de ter mostrado a facilidade de adaptação e a flexibilidade dos sistemas de transferência de bens naquele período do regime senhorial e ter definido o dinheiro como «um símbolo genérico de bens», afirmei que «a versatilidade das formas de transferência exige a versatilidade da própria forma dinheiro, que tem de poder converter-se rápida ou até instantaneamente noutras formas. Do lado da oferta de dinheiro isto requer o carácter instantâneo, ou rápido, e descentralizado dessa oferta: descentralização geográfica (pluralidade dos locais de emissão) e descentralização social (a emissão de dinheiro não é monopólio de uma dada classe ou grupo social)» (pág. 64). Outro aspecto fundamental é a versatilidade dos suportes que cumpriam a função pecuniária, tanto metais preciosos e outros artigos de luxo como géneros ou até símbolos de valor. Num caso extremo, assinalado entre os mercadores nas rotas que ligavam a área do regime senhorial ao Báltico ou a algumas regiões do Mar do Norte, recorria-se a formas praticamente fiduciárias em que o suporte do dinheiro eram pequenos pedaços de tecido de má qualidade. Ora, a versatilidade era tanto maior quanto géneros ou animais de trabalho empregues como dinheiro podiam sair dos circuitos pecuniários para servirem de alimento ou serem usados nas fainas rurais e em qualquer momento podiam voltar a exercer funções de dinheiro, sucedendo o mesmo com os metais preciosos, que podiam ser cunhados como moedas e rapidamente serem transformados em jóias para de novo serem fundidos e usados monetariamente, consoante as conveniências; aliás, as próprias moedas podiam ser utilizadas como jóias e não em funções pecuniárias. A versatilidade e a plasticidade do sistema iam mais longe ainda, porque geralmente os preços eram estabelecidos em unidades de contagem que não correspondiam às moedas efectivamente cunhadas, o que significa que na mesma operação o dinheiro como unidade contabilística diferia do dinheiro como meio de troca. «Em resumo», concluí eu, referindo-me ao período arcaico do regime senhorial, «neste sistema económico a forma dinheiro pode definir-se apenas pela sua função, caso a caso, e não por qualquer aspecto material. Reciprocamente, a moeda metálica não constitui, por si, qualquer indício da existência de dinheiro e da ocorrência de compra e venda» (pág. 67).
É impossível exagerar a importância que teve para mim a pesquisa destinada ao Poder e Dinheiro. Levou-me a abandonar o estrito quadro monetário em que os marxistas entendem o dinheiro e a ficar atento à pluralidade de formas pecuniárias surgidas no capitalismo. E se notarmos que «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro» data de 1983 e que eu haveria de dedicar mais dezanove anos de investigação até concluir o último volume do Poder e Dinheiro, podemos entender a repercussão que, por contraste, essa obra teve nas minhas concepções do capitalismo.
Concluí assim aquele artigo: «O dinheiro é um mero produto de relações sociais, inteiramente decorrente das características de tais relações. A oferta de dinheiro que tais relações tornam necessária nunca pode ser restringida enquanto tais relações perdurarem. Tal oferta é fácil. Querer destruir uma sociedade, ou querer sustentar e consolidar uma sociedade, visando para isso o dinheiro, é como querer destruir ou agarrar um objecto pela sua sombra». E terminei perguntando: «[…] se admitirmos como possível a existência de uma sociedade onde as inter-relações sejam igualitárias, significa isso a abolição do dinheiro — ou quer isso dizer que o dinheiro, uma vez mais, veiculará tais relações?» (pág. 67). Deixei assim em aberto uma indagação que durante muitos anos me acompanhou. A resposta, como veremos, não foi fácil.
Nota: Nas citações dos meus textos publicados no Brasil ajustei a ortografia ao uso português anterior ao actual acordo ortográfico.
O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o terceiro capítulo, o quarto capítulo, o quinto capítulo, o sexto capítulo, o sétimo capítulo, o oitavo capítulo e o nono capítulo.
As duas principais obras de referência sobre o comunismo de guerra que encontrei até o momento, recheadas de dados estatísticos, são dois livros: Die heroische Periode der grossen russischen Revolution (“O período heróico da Grande Revolução Russa”), de Lev Natanovich Kritzman, publicado em 1924, que digitalizei; e First models of the socialist economic systems: principles and theories, de Laszló Szamuely, publicado em 1974, que tenho numa edição italiana publicada com excelente prefácio de Rita di Leo.
O primeiro é uma intervenção no debate sobre a NEP, justificando com números que o comunismo de guerra apontava o verdadeiro caminho para comunismo, uma etapa necessária para alcançá-lo, ainda que as condições de bloqueio internacional e guerra civil impusessem desvios de rota e improvisos. Kritzman alinhou-se com os “comunistas de esquerda” nos debates sobre o tratado de Brest-Litovsk. Seu livro sobre o “período heroico da Grande Revolução Russa” é enciclopédico e abrangente, analisa com acuidade e lucidez mesmo os fenômenos mais difíceis para sua própria tese, levando a elogios inclusive de Robert Kurz, esse eterno pessimista apocalíptico, e ao uso extensivo por Tony Cliff numa análise daqueles anos cruciais do comunismo de guerra. Anos depois, Kritzman combateu com firmeza as posições de Alexander Chayanov quanto à questão agrária: enquanto Chayanov defendia o cooperativismo agrário na construção do socialismo no campo e argumentava serem ineficientes as fazendas em grande escala, Kritzman apontou repetidas vezes como Chayanov subestimava o conteúdo capitalista da economia familiar camponesa e os processos contínuos de diferenciação social no campo, tudo com base num volume absurdo de dados estatísticos. Ocorre que as posições de Kritzman deram as bases teóricas para a deskulakização (1929-1932), com os resultados que se conhece. Kritzman morreu em circunstâncias obscuras: fontes oficiais falam de uma doença renal à qual sucumbiu em 1938, enquanto outras fontes falam que teria sido vítima dos expurgos stalinistas, e ainda outras fontes datam sua morte em 1937.
O segundo, citado no artigo sobre dinheiro largamente comentado acima, é uma longa revisão, do ponto de vista da história econômica, sobre aquele primeiro esboço de passagem para outro sistema que não o capitalismo. Szamuely foi um economista envolvido nas reformas econômicas de 1966 na Hungria — o chamado “novo mecanismo econômico“, fruto tardio, abrandado e desvirtuado dos mesmos impulsos que resultaram na Revolução Húngara de 1956. Neste livro, Szamuely reviveu o debate sobre o comunismo de guerra a partir de várias fontes históricas para exortar seus contemporâneos a não se deixar prender pelos erros do stalinismo e a considerar as muitas alternativas históricas abertas pelos desafios de um período crucial para a definição dos rumos da revolução russa. Neste livro, o estudo de Kritzman é fonte privilegiada para dados estatísticos.
Apresento e comento estas duas obras porque nunca foram traduzidas ao português e, além disso, podem ser de interesse para alguém. São poucos os que ainda buscam material assim, mas um que seja basta para justificar a divulgação.
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Na internet também se acha os livros do Kritzman em russo, no original:
Очерк хозяйственной жизни и организация народного хозяйства советской России, 1 ноября 1917 – 1 июля 1920 г (“Esboço da vida econômica e da organização da economia nacional da Rússia Soviética, de 1º de novembro de 1917 a 1º de julho de 1920”, de 1921, escrito em parceria com Yuri Larin, que também tem uma tradução para o alemão)
Героический период великой русской революции (Опыт анализа т.н. военного коммунизма) (“O período heroico da grande revolução russa (experiência de análise do chamado comunismo de guerra)”, de 1924, que também tem uma tradução para o alemão)
Quem se interessa por este período, e pelo que escreveu Lev Kritzman, certamente gostará dos livros de Yuri Larin:
Частный капитал в СССР (“Capital privado na URSS”, de 1927, que também tem tradução para o inglês)
Государственный капитализм военного времени в Германии: 1914-1918 гг. (“Capitalismo de Estado em tempos de guerra na Alemanha: 1914-1918”, de 1928)
Евреи и антисемитизм в СССР (“Judeus e antissemitismo na URSS”, de 1929)
Строительство социализма и коллективизация быта (“Construindo o socialismo e a coletivização da vida cotidiana”, de 1930)