Por João Bernardo
5
Em 2 de Fevereiro de 2009, mal o Passa Palavra acabara de ser fundado, publiquei o artigo Perspectivas do capitalismo na actual crise económica (aqui), onde insisti no que me parece ser a principal contradição por detrás da crise de 2007 e 2008, a impossibilidade de organizar e supervisionar no âmbito de instituições nacionais um capitalismo que se havia tornado transnacional. «Ao contrário do que é comum afirmar, não creio que a actual crise tivesse sido precipitada pelo carácter demasiado ousado dos instrumentos financeiros mas, em vez disso, pelo carácter demasiado arcaico a que se têm circunscrito as instituições oficiais. Ficou patente a inadequação dos organismos de base nacional perante uma actividade económica transnacional». Nestas circunstâncias, quando a generalidade da esquerda, marxista e não marxista, punha em causa a criação ou a difusão de novas formas pecuniárias, eu adoptei uma perspectiva oposta. «Uma economia em que as nações e os respectivos governos perderam a primazia e em que as companhias transnacionais tendem a assumir a forma de uma rede de pólos interligados e com perfil mutável não pode depender de moedas nacionais». Foi este, aliás, o alvo da minha crítica ao neoliberalismo, pois «a admissão de que a macroeconomia não consiste numa mera soma de microeconomias constitui uma renúncia a um dos postulados fundamentais do neoliberalismo».
Assim, a propósito de uma crise que todos insistiam em considerar sobretudo financeira, eu pouco adiantei na análise do dinheiro, excepto quando prossegui na crítica às noções de capital especulativo e capital fictício. «Fala-se muito de “capital especulativo”, mas não existem capitais úteis e capitais inúteis, pois a função do crédito é agilizar a produção. Em vez de ter inaugurado uma “economia de casino”, a banca adaptou-se às necessidades do sistema produtivo actual». Foi este tipo de observações que me permitiu tomar plenamente consciência do carácter do dinheiro enquanto linguagem, mas o tema nem sequer foi evocado no artigo.
Um ano e meio depois, regressei a esse conjunto de questões com uma análise mais ambiciosa no longo ensaio Ainda acerca da crise económica, publicado no Passa Palavra entre 26 de Agosto e 14 de Outubro de 2010, e na quinta parte, «Transnacionalização e espaços nacionais» (aqui), dei o passo decisivo que até então me tinha iludido. Comecei por considerar que «o dinheiro é um instrumento técnico antiquíssimo, que não tem nenhuma relação exclusiva com qualquer modo de produção ou sequer com os sistemas de exploração», e excluí-me, portanto, da habitual cartilha do marxismo vulgar. Pude assim, assente numa base histórica sólida, definir em traços gerais a especificidade do dinheiro no capitalismo, insistindo na sua função homogeneizadora, que associei ao tipo de racionalismo de matriz jacobina. «O capitalismo adoptou uma das modalidades de dinheiro antes existentes e levou-a até limites nunca vistos, fazendo com que ela ou, mais tarde, diversas formas pecuniárias interligadas e reciprocamente convertíveis permeassem todos os níveis da sociedade e executassem todas as funções, o que nunca sucedera. O dinheiro, tal como o capitalismo o transformou e desenvolveu, tem como característica principal tornar homogéneo o que é diversificado. O racionalismo extremo, com o seu corolário, a redução das distinções de qualidade a diferenças de quantidade, são o quadro filosófico necessário a uma sociedade permeada por essa forma de dinheiro». Creio que não poderia ser mais sintético.
Continuando a referir-me ao tipo de dinheiro específico do capitalismo, afirmei que no âmbito social ele homogeneíza no mercado todos os intervenientes, qualquer que seja a sua classe ou o seu estatuto. Além disso, «o dinheiro torna operativa a mobilidade social, ascendente ou descendente, sem a qual não se efectiva a permanente instabilidade do capitalismo». No âmbito geográfico o dinheiro homogeneíza igualmente os espaços, cada vez mais complexos dada a «coexistência dos espaços nacionais e das companhias transnacionais», e insere-os a todos num padrão comum. Nas circunstâncias da época, porém, e sobretudo dada a forma como eclodiu a crise de 2007 e 2008, assumia um especial relevo outra esfera de acção das modalidades pecuniárias especificamente capitalistas. «O dinheiro cumpre ainda uma terceira função homogeneizadora, lançando uma ponte entre o passado, o presente e o futuro. É o sistema bancário que opera essa ponte, e o resultado é a taxa de juro. A taxa de juro é uma previsão de crescimento, e quanto mais estreita for a relação entre a actividade económica num momento e a actividade futura tanto mais o dinheiro deverá cumprir funções de crédito». E como estes diferentes âmbitos se confundem numa economia integrada, o dinheiro encontra aí a sua suprema função homogeneizadora. «Tudo isto só é redutível a um conjunto operativo graças ao dinheiro e exige modalidades fiduciárias inovadoras e diversificadas. Daí o advento de novos tipos de bancos, capazes de actuar no âmbito transnacional e entre os quais não há lugar para delimitações consoante as especialidades, porque elas se imbricam reciprocamente».
Foi no contexto desta função homogeneizadora que pela primeira vez evoquei de maneira explícita a definição do dinheiro como linguagem. «Tem competido ao dinheiro a função de homogeneizar aquilo que o capitalismo divide. Não é por acaso que alguns autores comparam as operações do dinheiro às operações da linguagem. Em vez da definição clássica de uma das funções do dinheiro como repositório de valor, devíamos defini-lo como repositório de informação». Depois de tantos anos a iludir o problema, não podia agora ter sido mais claro.
Esperar-se-ia talvez que de então em diante eu desenvolvesse com afinco as virtualidades daquela noção do dinheiro como linguagem. Mas foi o contrário que sucedeu. Várias vezes, em artigos e ensaios publicados no Passa Palavra, tive oportunidade de tratar não só temas económicos, mas especificamente a questão do dinheiro, sem que, no entanto, me ocupasse do seu carácter de linguagem. Nomeadamente na primeira parte de Crise na zona euro, publicada em 22 de Abril de 2012 (aqui), descrevi a substituição em 1999 do ECU (European Currency Unit, Unidade Monetária Europeia), uma unidade contabilística que fora criada em 1979 e se baseava num cabaz (cesta) de moedas europeias, por outra moeda contabilística, o euro. «Com a enorme diferença», observei então, «de que o euro possuía um valor próprio, independente das oscilações das moedas nacionais, que se obrigavam a manter para com ele paridades fixas, ficando assim criado um sistema monetário unificado. Deste modo, e como sucedeu várias vezes ao longo da história de outros regimes económicos, uma moeda começou a existência enquanto unidade contabilística. Só no final de Fevereiro de 2002 as notas e moedas de euro se converteram materialmente na única moeda legal em circulação nos países aderentes». Ora, a passagem de uma unidade contabilística baseada num conjunto ponderado de moedas efectivamente cunhadas para uma unidade contabilística possuidora de valor próprio, até que finalmente esta última unidade contabilística assumisse um suporte material, teria sido uma excelente oportunidade para empregar como fio condutor dessas metamorfoses a noção do dinheiro enquanto linguagem. Mas não o fiz, e preocupei-me exclusivamente com circunstâncias que me pareceram mais urgentes.
Até que, na quarta parte do manifesto Sobre a esquerda e as esquerdas, publicada no Passa Palavra em 18 de Maio de 2014 (aqui), comecei a mostrar algumas das virtualidades decorrentes da definição do dinheiro como linguagem. Depois de aplainar o caminho, estigmatizando — mais uma vez, e quantas seriam ainda necessárias! — a propensão da esquerda para adoptar a noção fascista de que existiria um capital especulativo oposto a um capital produtivo e que todo o crédito seria especulativo, eu entrei no âmago do problema. «Se pretendermos lutar contra o capitalismo sem correr o risco de cair no socialismo da miséria, a grande questão é: como pode instaurar-se uma organização política igualitária e comunitária numa sociedade e numa economia muito complexas, baseadas na divisão do trabalho e que já não permitem a rotatividade em todas as funções? Este tipo de sociedade não dispensa o mercado nem o dinheiro e exige uma coordenação».
Uma das mais funestas concepções que a esquerda herdou de O Capital é a assimilação do dinheiro ao mercado, que lhe serve para os recusar a ambos. Ora, como eu preveni naquele manifesto, «os mercados precederam de milénios o capitalismo e, além disso, não pressupõem necessariamente a existência de relações de exploração, como mostram os estudos históricos e antropológicos. […] Ao longo do tempo, os mercados têm-se revelado uma instituição plástica, adaptável e sempre em mutação […]». Exactamente o mesmo tem sucedido com o dinheiro. «O dinheiro coexistiu com os mais variados modos de produção, incluindo algumas sociedades sem exploração». Mencionei então as frustradas experiências utópicas de supressão do dinheiro, que na realidade provocaram a sua substituição por outras formas pecuniárias, tal como já havia exposto trinta anos antes, no artigo «O Dinheiro: da Reificação das Relações Sociais até o Fetichismo do Dinheiro» (aqui), e acrescentei que «outros casos extremos confirmam que nas sociedades modernas, sempre que a emissão central de dinheiro se torna insatisfatória, quer pela insuficiência do volume de dinheiro em circulação quer por uma acentuada e rápida perda de valor das unidades monetárias, surgem formas pecuniárias devidas à iniciativa dos particulares». E prossegui. «O dinheiro dá corpo a uma abstracção. Historicamente, nas sociedades em que o dinheiro teve relevância o pensamento abstracto ocupou um lugar importante na actividade intelectual. E numa sociedade evoluída como a de hoje, em que cabe a hegemonia ao raciocínio abstracto, o dinheiro permeia todas as relações. Mas de que modo o faz, esta é a questão, tal como é uma questão também a maneira como as abstracções se articulam e estruturam o pensamento. Assim como existiram e virão a existir diferentes sistemas de pensamento abstracto, também existiram e existirão diferentes formas de dinheiro. Pretender a abolição do dinheiro numa economia evoluída é uma utopia, porque isso implicaria a instauração de uma sociedade em que a abstracção não tivesse a primazia. O primitivismo económico seria acompanhado pelo primitivismo lógico».
A relação do dinheiro com a abstracção conduziu-me imediatamente à definição do dinheiro como linguagem. «Em qualquer das suas modalidades e em todos os sistemas económico-sociais em que vigorou, o dinheiro serviu e serve acima de tudo como transmissor de informação. A relação é muito estreita entre o dinheiro e a linguagem, e do estruturalismo linguístico podem extrair-se lições teóricas proveitosas para o estudo dos fenómenos pecuniários. Pretender que o dinheiro seria, por si só, um factor de reificação é como pretender que a linguagem seria obrigatoriamente um meio de dissimulação ou de distorção. A reificação não é gerada pelo mercado nem pelo dinheiro, mas pelas relações sociais estabelecidas nos processos de produção de bens e serviços, materiais e imateriais. Sistemas de trabalho igualitários determinarão a fundação de novos tipos de mercado nas relações entre os colectivos produtores e a criação de novas formas de dinheiro nas relações intercolectivas e interpessoais».
Nesta abertura para outras possibilidades históricas, a comparação com a linguagem foi um factor determinante. «Há uma notável afinidade entre a circulação do dinheiro e as redes electrónicas. Se o dinheiro serve de transmissor de informação e em boa medida deve ser concebido na perspectiva da linguagem, o mesmo sucede com as redes informáticas. Ora, se estas redes veiculam hoje uma recolha de informações que segue da periferia em direcção ao centro e de emanação de decisões que vai do centro para a periferia, elas têm condições técnicas para sustentar percursos inversos, em que instituições coordenadoras recebam as decisões emanadas da periferia, as articulem e as reenviem para a periferia, juntamente com novos fluxos de informação». Esta cadeia de raciocínios permitiu-me formular o horizonte mais longínquo que somos hoje capazes de esboçar. «Só assim poderá instaurar-se uma democraticidade que não coloque em risco a produtividade e sustente um socialismo da abundância».
Foi necessário passarem cinco anos para que no ensaio Anticapitalismo. Anti o quê?, publicado no Passa Palavra desde 21 de Agosto até 25 de Setembro de 2019, eu iniciasse um tratamento extensivo do dinheiro em relação íntima com a sua definição enquanto linguagem. «Reinam grandes confusões na esquerda acerca do mercado e do dinheiro», preveni a abrir a quinta parte desse ensaio (aqui). «Nunca existiram e não existem hoje sociedades inteiramente desprovidas de trocas, e a continuidade das trocas gera o mercado, mas são variadíssimas as formas assumidas pelos mercados». E depois de observar que, historicamente, «nem todas as formas de mercado exigem o dinheiro», considerei que «é importante discriminar os vários tipos de dinheiro que encontramos ao longo da história». Comecei pelos casos em que um dado artigo tanto pode cumprir funções pecuniárias especializadas como pode entrar na circulação pecuniária e sair dela para ser usado como bem de consumo ou animal de trabalho. Depois evoquei os casos em que o dinheiro é emitido centralizadamente, por um soberano ou um chefe local, ou, pelo contrário, é emitido descentralizadamente, por particulares. Em seguida distingui os casos em que o dinheiro ou tem um valor intrínseco, decorrente do artigo que lhe serve de suporte, ou é meramente fiduciário, com um valor proveniente de uma convenção aceite por toda a sociedade. Em quarto lugar, considerei que o dinheiro tanto pode ser objecto de circulação geral numa sociedade como pode circular apenas em grupos restritos. E concluí insistindo num aspecto fundamental, que «as categorias gerais mercado e dinheiro não definem, por si só, sociedades nem sistemas económicos. São plásticas, tendo cada sociedade os seus tipos de mercado e de dinheiro, que obedecem a regras distintas dos mercados e do dinheiro noutras sociedades e sistemas. Quem perora contra o mercado e o dinheiro julgando que assim põe em causa o capitalismo tudo o que consegue é estabelecer confusões». Não me parecendo suficiente, repeti. «Assim como não foi o dinheiro que provocou o capitalismo, também não é abolindo o dinheiro que se suprime o capitalismo».
A partir daqui, dei o salto para o núcleo do problema e afirmei que «as principais funções do dinheiro no capitalismo vão muito além da mera aquisição de mercadorias. O dinheiro no capitalismo é acima de tudo um veículo para a transmissão de informações e, como tal, ele é uma linguagem, e é-o na plena acepção do termo». A amplitude das funções pecuniárias no capitalismo explica-se pelo seu carácter de linguagem. «[…] o dinheiro, enquanto linguagem, além de ser instrumento de redes de cooperação, constitui um elo de ligação do presente ao futuro, uma forma de planificação, e é esta a função do crédito». Em suma, «o dinheiro converteu-se assim, de uma simples medida de valores, numa linguagem genérica». E aqui evoquei Jean Pierre Faye que, na linhagem de Roman Jakobson, nos permite formular a tese de que «a linguagem não se circunscreve ao plano das ideias, mas constitui a própria articulação das relações sociais, tanto das relações reais como das imaginárias».
Em seguida prossegui. «Vemos que neste modelo o dinheiro consiste numa modalidade da linguagem, e não estamos aqui longe do que afirmou Norbert Wiener, o fundador da cibernética, quando escreveu que “a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e dos recursos de comunicação que lhe correspondem”». Ora, na terceira parte deste ensaio (aqui) eu dissera, a propósito da informática: «[…] só raramente os trabalhadores têm conseguido manter-se à frente de uma luta, sem delegarem a sua condução às burocracias sindicais ou sem criarem outras burocracias, durante o tempo suficiente para que as novas relações sociais de trabalho possam materializar-se em esboços de uma nova tecnologia. Os casos mais importantes dizem agora respeito à inversão dos fluxos informáticos decisão / informações, já que a electrónica sustenta uma condição geral de produção indispensável à actual remodelação capitalista das relações de trabalho. Com efeito, só os fluxos decisão / informações prevalecentes na informática permitem que as empresas obtenham economias de escala independentemente da concentração física dos trabalhadores num mesmo local e mantenham a autoridade central da gestão apesar da dispersão física dos trabalhadores. É esse fluxo que sustenta a exploração na economia e a opressão no poder, por isso é compreensível que nas lutas em que os trabalhadores conseguiram afastar ou secundarizar as burocracias um dos objectivos tivesse sido a tentativa de inverter o sentido do fluxo». Se relermos esta passagem à luz de Wiener, por um lado, e de Faye, por outro, temos a chave das transformações que poderão ser operadas sobre o dinheiro num processo revolucionário contemporâneo. E a questão coloca-se agora com mais acuidade, porque o número crescente de trabalhadores que têm na internet a condição técnica da sua actividade, especialmente a camada mais precária, como os uberizados, confere uma nova urgência à possibilidade de inversão dos fluxos informáticos.
Seguindo neste caminho, pude encerrar o ensaio, na sexta parte (aqui), com uma crítica à «utopia de uma sociedade transparente», expondo a futilidade das tentativas de supressão do dinheiro. «Em resposta à utopia da abolição do dinheiro, o que sempre ocorreu foi a criação particular de dinheiro, porque o dinheiro é a insubstituível condição da plasticidade de uma sociedade complexa». Em suma, a aplicação ao dinheiro da perspectiva da linguagem permite uma compreensão lúcida dos processos revolucionários no capitalismo. «Uma sociedade sem dinheiro», concluí, «é como uma sociedade sem linguagem, um mito irrealizável, a não ser que se animalize a humanidade».
Glosei estas questões na segunda parte do ensaio São Marx, rogai por nós, publicada no Passa Palavra em 11 de Junho de 2020 (aqui), mas para não ser demasiado repetitivo vou restringir-me agora ao tema do dinheiro. «É através da cibernética que podemos ver a íntima ligação entre o dinheiro, na sua função de transmissor de informações e organizador de sistemas de troca, e as relações sociais de produção. A internet possibilita a fusão ou a conexão entre os meios de pagamento e as redes interbancárias, incluindo a criação bancária de dinheiro». Aqui citei Matthieu Favas em The Economist, 7 de Maio de 2020, que afirmara que «os sistemas de pagamento destinam-se mais a transferir informação do que dinheiro», e observei que «eu diria antes que o dinheiro consiste precisamente nessa informação». Depois de mencionar novamente Roman Jakobson e Jean Pierre Faye, escrevi: «O dinheiro exprime as relações sociais e, ao mesmo tempo, exerce um efeito de feedback. Nisto consiste a sua função articuladora e, tal como a linguagem, o dinheiro serve ainda para perverter a informação. Talvez seja mesmo a função mais comum das palavras, a de ocultar em vez de indicar, a tal ponto que o primeiro passo da análise crítica é o de, mediante palavras, passar além das palavras. No capitalismo o dinheiro, se serve para veicular as informações que estruturam a sociedade, serve igualmente para ocultar as relações de exploração». O ensaio São Marx, rogai por nós é, aliás, um exercício de análise crítica, procurando entender no dinheiro uma das características fundamentais da linguagem, que é a sua ambiguidade.
Depois de tudo isto, é curiosa a indignação de vários leitores quando publiquei no Passa Palavra, em 9 de Fevereiro de 2023, o artigo Capital fictício? (aqui), e tanto mais curiosa quanto eu já havia múltiplas vezes afirmado que aquele capital nada tem de fictício. Limitei-me a expor com concisão e um pouco de veemência algumas teses que vinha a desenvolver desde há muitos anos. «[…] um modo de produção cujas relações sociais são mediadas pela relação com o tempo de trabalho exige formas específicas de dinheiro, tão ilusórias ou reais como é ilusória ou real a sociedade capitalista. O dinheiro é indispensável à articulação das relações sociais no capitalismo, e quem o considerar em alguma medida ilusório terá de considerar ilusório também o próprio capitalismo».
Como a noção de capital fictício arrasta consigo a noção de capital especulativo e implica, portanto, uma crítica ao crédito, foi ali que me concentrei. «[…] basta mencionar o dinheiro para pressupor o crédito, que sempre surge quando na circulação pecuniária ocorrem dilações temporais, o que não pode deixar de suceder, dada a continuidade das sociedades. Assim, praticamente não existiu dinheiro sem ter existido crédito, e considerar como fictícios os mecanismos do crédito é um resultado da mesma ignorância que considera o dinheiro como ilusório e que reduz o capitalismo ao fabrico de bens palpáveis». Aliás, a questão do crédito é muitíssimo mais vasta do que o capitalismo, como evidenciam a história económica e a antropologia, e a concepção do dinheiro enquanto linguagem permite entender as dimensões do problema. «A linguagem não se limita a narrar, porque tem a capacidade de criar. Se ela servisse só para classificarmos e sistematizarmos o nosso conhecimento do presente não teria havido nenhuma alteração na história das sociedades, que se reduziria à repetição do idêntico, o que mostra que a importância decisiva da linguagem consiste em conceber futuros possíveis e em organizar o modo de os alcançar. A nossa linguagem caracteriza-se pela antecipação, e é exactamente isto que ocorre com o dinheiro, cuja circulação não só permite a durabilidade das relações presentes, mas constitui a ponte para relações futuras, previsíveis ou desejadas. Esta ligação do presente ao futuro cabe aos instrumentos pecuniários usados no crédito, precisamente aqueles que tanta gente nos meios de esquerda considera estultamente como capital fictício». Em suma, «enquanto antecipação do futuro, o crédito equivale à capacidade antecipadora da linguagem e, se ele fosse fictício, então a nossa linguagem sê-lo-ia também».
A indignação foi tanta e tantos os comentários que dois meses depois, em 13 de Abril de 2023, na primeira parte do artigo Respostas? Perguntas, publicado no Passa Palavra (aqui), decidi mostrar como todo o meu trabalho, não só de análise económica, mas também de historiografia, pode ser usado para fundamentar a crítica à noção de capital fictício. «Praticamente não houve sociedades sem dinheiro, quaisquer que fossem os seus suportes materiais […] Mas o estudo comparado serve para reduzir a complexidade a traços comuns, e vemos então que em qualquer das múltiplas formas que tem adoptado ao longo de milénios, o dinheiro é composto por sistemas de signos convencionais destinados a satisfazer simultaneamente duas funções: a de sinalizar e a de articular relações sociais. E conclui-se então que, definido como veículo de informação e agente de relacionamento, o dinheiro é uma modalidade de linguagem. É no quadro de uma teoria geral do dinheiro assim esboçada que podemos entender os mecanismos pecuniários específicos do capitalismo». Mas para quê tentar aqui resumir o artigo? Afinal, o que escrevi até agora neste ensaio é uma última tentativa de expor, com mais fôlego e maior minúcia, a coerência de uma longa pesquisa que me levou a adoptar a noção do dinheiro como linguagem.
Nos capítulos seguintes irei inverter o percurso e modificar a forma de apresentação, e tentarei indicar algumas vias que, partindo da linguagem, nos conduzem ao dinheiro.
O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o segundo capítulo, o terceiro capítulo, o quarto capítulo, o sexto capítulo, o sétimo capítulo, o oitavo capítulo e o nono capítulo.
Caro João,
A leitura de seus artigos me traz dúvidas e reflexões. Abaixo apresento uma dúvida que me surgiu ao lê-los.
Ao entender o dinheiro como linguagem e ao entender que esse instrumento auxilia na construção de novos futuros, posso afirmar que a mudança de um padrão monetário – nacional ou internacional – caracteriza uma transformação na forma como o futuro é concebido por capitalistas e gestores do Estado?
Caro Leonardo,
Em várias sociedades com um crescimento económico lento ou em que certas esferas de circulação pecuniária se reservavam aos aspectos mais estáveis da economia, nomeadamente a agricultura, o entesouramento era praticado pelas pessoas abastadas. Retiravam-se de circulação peças usadas como dinheiro, a cujo suporte se atribuía um valor intrínseco elevado, e guardavam-se, para que pudessem depois ser novamente usadas como dinheiro. Ao mesmo tempo, em actividades económicas com maior crescimento ou, pelo menos, com flutuações acentuadas, nomeadamente o comércio, recorria-se a formas de dinheiro fiduciárias ou quase-fiduciárias, que, sem valor intrínseco, não permitiam o entesouramento e serviam para pagamentos que pressupunham o recurso ao crédito.
Quando o capitalismo começou a desenvolver-se em alguns países europeus a partir do final do século dezoito, com a aceleração do crescimento e o aparecimento de ciclos económicos pronunciados, difundiu-se o sistema bancário, com novos tipos de emissão pecuniária ligados ao crédito. Dinheiro e crédito articularam-se intimamente, o que teve como consequência a dissolução do entesouramento. A linguagem da estabilidade foi então substituída por uma linguagem muito diferente, aquela usada pela Rainha do País das Maravilhas, quando explicava a Alice que era necessário correr para ficar no mesmo lugar.
Mas não generalizemos, porque na História é sempre muito arriscado generalizar sem previamente comparar. A História deve fazer-se por indução, nunca por dedução. Vejamos o caso de um tipo de dinheiro que foi usado nas Novas Hébridas para os pagamentos de maior prestígio, ou seja, para uma esfera de circulação pecuniária equivalente à do exemplo inicial, em que o entesouramento era realizado com tipos de dinheiro a cujo suporte se atribuía um elevado valor intrínseco. Nas Novas Hébridas os pagamentos de maior prestígio eram efectuados em porcos machos, não castrados e com as presas recurvadas, e eram precisamente estas presas que constituíam símbolos pecuniários. Independentemente do tamanho e da qualidade do animal, quanto mais longas fossem as suas presas, maior era o valor do porco enquanto dinheiro. Ora, o crédito era igualmente praticado neste tipo de dinheiro, medindo-se a taxa de juro pelo comprimento a que teriam crescido as presas durante o período do empréstimo e consistindo o pagamento da dívida na entrega ao credor de porcos com presas mais longas do que as dos porcos emprestados. Este exemplo das Novas Hébridas inseria-se num contexto muito vasto, em que se considerava que o poder de alguém seria tanto maior quanto mais duradouro tivesse sido o seu exercício, a ponto de algumas línguas africanas usarem a mesma palavra para designar um dom, a honra e o acréscimo da fortuna.
Comparando estes dois tipos de casos, vemos que no primeiro o poder correspondia a uma imobilização da fortuna, ou seja, um entesouramento que se opunha ao crédito, enquanto no segundo tipo de casos a acumulação de símbolos de riqueza era indissociável da noção de crédito, porque as presas são indissociáveis do seu próprio crescimento. A linguagem é um utensílio social tão plástico como é plástica a própria sociedade, e assim como não faltará linguagem quando for necessário exprimir alguma coisa, também não faltarão novas formas de dinheiro, quando se tornarem necessárias. E não é isto que está a suceder hoje, diante dos nossos olhos?
Caro João,
Obrigado pelo envio deste exemplo possuidor de tanta plasticidade. Certamente estamos a observar uma mudança na sociedade e no dinheiro diante de nossos olhos.
Seus artigos fornecem instrumentos para apreender tal mudança. Além disso, a forma como você os organizou até agora, reconstituindo o seu processo de compreensão do dinheiro como linguagem, ajuda a compreender que superar compreensões previamente estabelecidas é um trabalho imenso, lento e cheio de lapsos e desvios.
Por fim, se possível, você pode elaborar mais a sua afirmação de que “A História deve fazer-se por indução, nunca por dedução”?
Caro Leonardo,
No que se refere à História, tenho dito e repetido e tornado a repetir que a única forma de a aproximar de uma ciência é usando o método comparativo. Trata-se de estabelecer variantes, e com essas variantes definir um campo. A partir desse campo podemos estabelecer leis gerais que digam respeito àquele sistema. Depois, se descobrirmos novas variantes, ou elas se integram no campo já definido e, se isto suceder, servem-lhe de confirmação; ou não se integram, e temos então de modificar ou ampliar a definição do campo.
A maioria dos marxistas, porém, embora se reivindique do que denomina materialismo histórico, segue o percurso inverso, retira Marx da dinâmica histórica e procede por dedução. Partem de uma dada afirmação de Marx, que isolam do contexto empírico em que foi proferida, e deduzem daí as presumidas características da sociedade actual, em vez de se esforçarem primeiro por estabelecer empiricamente as variantes da sociedade actual e conceberem depois um sistema que as unifique, comparando-o então com a referida afirmação de Marx.
Mas hoje a hegemonia nos departamentos de história cabe aos identitários, que restauraram os velhos procedimentos do dogmatismo religioso. Para o identitarismo a história é exclusivamente uma lição de moral que serve para definir os bons e os maus, cabendo o Bem a uma dada identidade e ficando o resto relegado para o Mal. Para isso são excluídas todas as variantes que não correspondam à cartilha oficial de uma dada identidade, ou seja, a operação básica da historiografia, em vez de ser a de coligir, passa a ser a de expurgar.
Era isto que eu pretendia dizer quando escrevi que a História se deve fazer por indução.
O método comparativo sob a forma das variações concomitantes foi defendido por Durkheim em seu livro “As Regras do Método Sociológico”. Este método é, por sua vez, a adequação do método de investigação das relações sociais ao método das ciências naturais que é a da experimentação direta (por isso, o método comparativo seria chamado por Durkheim também de “método da experimentação indireta”).
Hoje em dia já não me surpreendo com João Bernardo defendendo este método positivista que foi criticado até mesmo pela limitada consciência burguesa, mas continuo, infelizmente, me surpreendendo com o seu contínuo combate ao marxismo ao atacar os supostos “marxistas”. Os supostos “marxistas” representados por João Bernardo possuem a grande especificidade de não utilizarem o método dialético ou o materialismo histórico, mas, ainda assim, como mágica – ou, melhor, como fantasia provida da imaginação -, continuam sendo marxistas.
Porém, eu compreendo: na impossibilidade de criticar o verdadeiro método dialético e o verdadeiro materialismo histórico, torna-se necessário criticar espantalhos a fim de defender suas ideias indefensáveis. A falsidade tende a ser simplificadora e, por isso, torna-se mais simples a própria crítica a ela. Na atualidade, me parece que o objetivo não é mais se apoiar em ombros de gigantes para enxergar além: basta indicar anões e dizer que estes são gigantes. E, apenas na imaginação, os gigantes se tornam anões e nossa visão já é necessariamente mais rica que a deles.
A comparação nunca será mais rica que a abstração. E isto pode ser verificado concretamente analisando o conteúdo das obras de Durkheim ou de um Serge Paugam e depois as de Marx e de um Nildo Viana.
Caro João,
Muito obrigado pela resposta.
Mateus, quem te mandou lembranças foi aquele seu amigo, o escocês verdadeiro.
Matheus, explique para nós: no que consiste o materialismo dialético?
Desafio ao Matheus: explique o materialismo dialético sem citar Nildo Viana
Até o Nildo é contra “materialismo dialético” po. Isso aí é deturpação stalinista.
*** *** ***
Notem que mateus disse “o verdadeiro método dialético” e não “materialismo dialético”. Isso faz toda diferença. Tem que questionar o que é o verdadeiro método dialético, mas materialismo dialético não foi colocado.
“Verdadeiro método dialético”, “verdadeiro marxismo”, “pseudomarxismo” … parecem um disco furado.
“O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação.”
(https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm)
“Síntese de múltiplas determinações”. Como conhecer as “múltiplas determinações” sem conhecer múltiplos casos, múltiplos contextos, múltiplas situações, múltiplas características, múltiplas relações, múltiplos sujeitos, múltiplos objetos que determinam-se reciprocamente no diverso, formando sua unidade, sua síntese? Mateus quer começar pelo final, quer o produzido antes da produção, quer chegar ao fim sem passar pelo início. É esse o conteúdo de sua “crítica”. Sigamos.