A política de transferência de renda aos estratos socialmente sucumbidos do proletariado é o máximo a que se propõe a burguesia para atenuar os efeitos sociais mais deletérios do capitalismo, a fim de não admitir a responsabilidade do capital pela pobreza, nem muito menos pôr em causa as necessidades da acumulação. Por Luiz Henrique Cunha
Desde antes da vigente crise do emprego da força de trabalho pelo capital, já instalada em todo o mundo há três décadas e com perspectivas crescentemente sombrias, que o capitalismo, ao longo de sua história, deixara patente sua incapacidade de utilizá-la de um modo socialmente útil, ainda que lucrasse com tal. E com o desmoronamento do padrão de emprego “fordista” que o capitalismo conseguira alcançar após a segunda guerra mundial, atualizou-se a anomalia que se acha instalada no DNA desse modo de produção: a de só gerar riqueza pela via da criação de pobreza em larga escala, desdobrando-a até níveis subumanos. Todo esse desenvolvimento social desigual está fundamentado no processo da acumulação do capital, cuja “lei absoluta” foi pela primeira vez descrita solidamente por Karl Marx.
A dimensão de um crescimento acelerado das multidões de pobres e famintos nos diferentes países da periferia capitalista e até do centro assustou na passada década de 90 o comando geral da burguesia internacional. Anos antes, no início de mais um espasmo na acumulação do capital, ela havia prescrito “planos de ajuste” aos seus governos nacionais (envolvendo redução drástica dos gastos sociais, privatização e vedação à ação econômica estatal), que culminaram na explosão do desemprego e da pobreza e miséria. Assim, rapidamente formataram-se recomendações de políticas públicas de transferência de renda, que foram assumidas pela ONU como os “Objetivos do Milênio”: diminuir pela metade até 2015 o número de miseráveis em cada país, consideradas aquelas famílias que disponham de menos de US$1,25 diários per capita (na avara contabilidade da tecnocracia capitalista, pobres não miseráveis formam uma faixa superior… com menos de US$2,00 diários per capita!).
Limites tão rebaixados (que é como a burguesia internacional “precifica” os índices vitais mínimos dos trabalhadores) certamente servirão para que vários governos capitalistas comemorem a superação da meta. Comparativamente, como veremos, o governo brasileiro considera como “linha da pobreza” o valor-limite de R$140,00 per capita mensais, ou cerca de US$2,60 diários.
A política de transferência de renda aos estratos socialmente sucumbidos do proletariado é o máximo a que se propõe a burguesia para atenuar os efeitos sociais mais deletérios do capitalismo, a fim de não admitir a responsabilidade do capital pela pobreza, nem muito menos pôr em causa as necessidades da acumulação. A ideologia que ela destila a toda a sociedade é que, pelo contrário, e a despeito do que expressa em contrário o processo real de valorização do capital verificado há décadas, só a livre acumulação do capital trará o subproduto da elevação econômica dos trabalhadores. Nem por uma fração de segundo a burguesia e seus governos vão admitir que a pobreza seja filha primeira da expropriação dos meios de vida dos produtores sociais, a começar pela terra. Tampouco esses proprietários privados dos meios sociais de produção vão reconhecer que a concorrência pela valorização dos seus capitais torne supérfluas massas de trabalhadores, que se veem bloqueadas do acesso à retribuição do trabalho no processo de acumulação. E seja dito que o salário, quando pago nessas circunstâncias, e ainda que expropriado de mais-valia, é o liame que atrela a renda do trabalhador ao carro da valorização do capital.
No Brasil, como a continuidade da acumulação socialmente predatória do regime capitalista não está em causa para o governo atual – assim como já não se colocava para seus antecessores -, trata-se então de combater suas consequências no campo social, resumidas no terror diário de fome e miséria que atormenta a maioria do proletariado brasileiro. Assim concebeu-se o programa Bolsa Família, que deseja ser a melhor resposta internacional no campo da transferência pública de renda, após as tímidas iniciativas do governo de Fernando Cardoso. Mas a despeito das intenções sociais do programa, o “público-alvo” carrega a pecha de ser visto não como aqueles cidadãos que o capital dispensou, mas como um pobre povo miserável a que se deva dar comida e complemento mínimo de renda porquanto não está à altura das necessidades do mercado de demanda capitalista do trabalho.
Os beneficiários do programa são os extremamente pobres, famílias vivenciando ou ameaçadas por déficit alimentar e fragilização dos seus laços, para as quais se definiu como linha de acesso a disponibilidade de um máximo de R$140,00 de renda per capita mensal. Ainda que esse seja um piso aviltado para um padrão mínimo de vida, os descartados do capital beneficiários do programa somam quase 12,5 milhões de famílias, que representam cerca de um quarto das famílias brasileiras. Esse contingente dos que não dispõem de renda sequer para aplacar a fome diária envolve principalmente as populações rurais e semiurbanas do Nordeste e Norte, embora seja eloquente nas aglomerações urbanas populares das regiões metropolitanas do Sudeste. Tal número já de si avassalador, e que denuncia a que quadro de aflição foi reduzido o proletariado brasileiro pelo sacrossanto capitalismo, esconde outra realidade cruel: as famílias também pobres mantidas rigidamente de fora do programa pelos vigilantes do orçamento público. Pode-se imaginar quanta privação (inclusive alimentação insuficiente) se aloja na ampla faixa de famílias com membros adultos recebendo de 1 a 2 salários mínimos (faxineiras, autônomos, biscateiros, informais e precários de todo o tipo), mas cuja renda per capita supere o teto de entrada no programa.
A política de transferência – temporária – de renda às famílias desses bolsões de pobreza calcula que ao término da mesma elas terão adquirido condições de se “emancipar” da bolsa, seja pela absorção em um emprego formal (para o qual deverão ser qualificadas) ou pela montagem de um negócio próprio (urbano ou rural), com crédito a juros especiais.
O sucesso dessa “emancipação econômica” fica entretanto na dependência da recriação de um padrão de acumulação intensivo de trabalho na economia capitalista brasileira. Esse desejo vai, no entanto, na contramão do processo atual do capitalismo mundial, pois o modus operandi clássico do capital para absorver força de trabalho excedente (seu exército industrial de reserva), via uma dinâmica de acumulação trabalho-intensiva, cede cada vez mais lugar à acumulação capital-intensiva. O resultado é o descarte crescente de segmentos da classe trabalhadora, lançados à precariedade social.
As necessidades que o capital tem atualmente para explorar trabalho no Brasil são satisfeitas grosso modo em dois níveis: por um estrato de ponta, composto pelo trabalhador dotado de qualificação específica para as atividades econômicas dinamizadas pelos impulsos do mercado mundial, as quais se desenrolam sob pressão de feroz concorrência internacional, com continuidade sempre incerta; e pelo estrato de massa, composto do trabalhador com qualificação mínima, absorvido pelas atividades intensivas de trabalho, como a da construção civil urbana e pesada, da agricultura e alimentação de exportação (atividades entretanto muitas vezes sazonais e em agudo processo de automação), da extração mineral, dos serviços auxiliares da atividade industrial (telecomunicações, transporte, comércio, limpeza etc.). Para as vagas sempre insuficientes nesse setor do emprego massivo é que vão se dirigir aqueles beneficiários profissionalmente qualificados do Bolsa Família, entrando em concorrência com os milhões de outros trabalhadores, pobres, mas não contemplados pelo programa, e que já dispõem de alguma experiência de assalariamento no “mercado de trabalho”.
A despeito desses pontos escuros no horizonte de sua política de transferência de renda, o governo social-liberal de Lula da Silva, mais efetivo na criação das condições de desenvolvimento do capital no país que seus antecessores neoliberais, apresenta o Bolsa Família como um exemplo exitoso de “distribuição de renda”, fator de “aquecimento” do mercado interno e indução aos pequenos negócios. É como se comemorasse a conquista de um capitalismo para todos. E fica estabelecido que se o pagamento dos juros da dívida pública deixar sobras, pode-se até pensar em flexibilizar-se o piso de acesso ao programa um pouco mais… É a vitória da política de “transferência de renda” sobre a política da redistribuição da renda nacional a favor do trabalho com ações incidentes sobre a riqueza e o patrimônio dos detentores do capital.
Não, o governo de Lula da Silva não sonha sonhos impossíveis, como o fim da exploração do trabalho; tem os pés na “realidade concreta”: batalha pela “emancipação econômica” dos pobres, ensina-os a ter zelo pelo dinheiro, a “adquirir uma consciência bancária”, como apregoa emocionado o ministro responsável pelo programa. Nesses tempos de esquerda absorvida, as palavras do ideário anticapitalista são apoderadas e redefinidas. Não nos assustemos, pois, se do meio da circunspecta intelectualidade socialista que apoia o governo ouvirmos um brado em estilo pedagógico contra os críticos radicais: “não se pode esperar que as gerações futuras adquiram consciência da necessidade e possibilidade de um novo regime social: trata-se de resgatar da pobreza extrema a geração atual!”.
Leia os demais textos do Especial Bolsa Família:
O que é o Programa Bolsa Família?
Programa Bolsa Família: resultados e objectivos
O Programa Bolsa Família e o clientelismo
É uma pena constatar essa realidade. Tenho familiar que depende dessa Bolsa, e a vejo como uma ajuda de custo muito importante para o seu desenvolvimento mínimo. Doi falar, mas dentro das condições que é esse sistema perverso nos possibilita e frente a realidade daqueles que precisam dessa miséria, antes ela do que nada.
Em curto espaço de tempo não consigo ver movimentos populares na sua essência que possam mudar essa dinâmica atual. Observo no brasileiro pobre (de modo geral) uma sensação de impotência frente as adversidades que o cotidiano lhe impõem. A consciência de classe não é escancarada, ela ocorre de forma sutil. E mesmo como educador vendo a realidade de meus alunos, principalmente o do ensiino médio que recebem esse recurso, quando tento discutir problemas parecidos com esse, existe uma falta de interesse por parte deles na busca de uma tomada de partido, de consciência e uma mudança de postura.
Sempre corro o risco de me tornar chato, enfadonho e daquele professor que só fala de pobreza (como se não bastasse a deles). Mas ainda assim tento… Mas duas aulas por semana não fariam mudança nem aqui nem na China (pra usar um dito popular)… Forte Abraço…
A crítica liberal de que estes programas tem caráter assitencialista, e que é melhor “ensinar a pescar do que dar o peixe” não está de toda errada, só precisa de um aprofundamento. O grande problema desta frase, tão falada em quaquer conversa de bar, é que os lugares onde se pode pescar (meios-de-produção) são todos propriedade-privada. A solução, não é ensinar a pescar (trabalhar), e sim permitir o trabalho (neste caso não alienado) para os desempregados, sub-empregados e os que já o realizem sob a forma alienada no capitalismo. Para isto, só realizando coletivizando a propriedade privada, e consequentemente mudando a forma de relação de produção, ou seja, a revolução.
sou estagiaria de serviço social seria bom se todos brasileiro tivesse oportunidade de ver este material
É interesse mensionar, como um país anunciado pelos governantes como em crescimento e progresso necessite dar o mínimo para a sua população marginalizados que beiram a miséria!que crescimento é este que não consegue fazer mínimamente o trabalhador conseguir se suster com o seu próprio trabalho? ou, mante-lo incluso no mercado? A questão é: o que precisa mudar não é a atenção melhor as necessidades da pobreza, e sim os condicionantes dela.concluo que se há necessidade de remediá-la então não se tem o interesse de erradicála de fato.
Todos os comentários tem grande relevância dentro do contexto, isso já é um bom sinal para chegarmos a estatos de uma sociedade civilizada e quem crítica o seu próprio meio…
Na minha analise, o texto é muito rico e faz com que paremos para analisarmos esse tipo de assistencia prestada pelo governo, de uma certa forma pra quem estar com fome, toda e qualquer ajuda é bem vinda; agora trasnsformação social só é possível com educação. Através dela o cidadão passa a ser sujeito de trasformação e passa de fato a se emancipar como um cidadão de direitos e deveres.(esta posição requer muita discurssão)