Medo, sonho, destino. Quem são as pessoas quem recebem o Bolsa Família? Como elas percebem o Programa? O que elas têm a dizer? Por Passa Palavra
Medo. Foi o que sempre sentiu Lindalva, com 39 anos, casada e mãe de três filhos, antes que o benefício fosse mesmo cortado, e sem nenhuma explicação. Logo com ela, que por mais de vinte anos trabalhou com carteira assinada e tudo mais. Foi a mesma sensação que fez com que Maria de Lourdes, 37 anos, casada e mãe de quatro filhos, se mudasse da favela da Mário Cardim, em São Paulo, para uma casa própria que conseguiu comprar em Itapecirica, região metropolitana de São Paulo. Ela temia que os filhos se envolvessem com a criminalidade e por diversas vezes teve a antiga casa invadida por policias que procuravam drogas. Com o “coração apertado” ela espera pelo dia de receber a bolsa. Vai saber o que reservaram para ela este mês: “Será que vai estar lá?” – pergunta-se.
Valéria, de 34 anos, solteira e mãe de duas meninas, depois do susto que levou ao ter sido cortada do programa, tomou a decisão de não se candidatar novamente ao recebimento da bolsa. Ela deixou de recebê-la há dois anos e suspeita que isso tenha a ver com o fato de ter sido contratada por uma OSCIP. É a segunda vez, em toda sua vida, que ela tem a carteira assinada e, entre uma ou outra, preferiu a regularidade do emprego às incertezas que acompanhavam o benefício.
Carteira assinada, bicos [biscates] e outras formas complementares de renda: declarar ou não declarar? Eis uma questão que aflige parte das famílias beneficiárias do programa. Ao contrário do que costumam afirmar os críticos do Bolsa Família, é bem provável que estas pessoas trabalhem mais do que confessam ao preencherem seus cadastros. Ou alguém acredita que é possível “pôr o burro na sombra” porque se está contando com 100, que seja 200, reais adicionais para ajudar nas despesas da casa?
Uma moradora da cidade Domitila, zona sul de São Paulo, usa uma expressão interessante para designar o proveito que tira desde quando passou a receber o benefício, há quase dois anos: “essa mixaria [ninharia]” – mais direto, impossível! É claro que ela não quer perder os R$33,00 mensais que ajudam a engordar o orçamento familiar, mas tem clareza de que isso não mudou em nada a sua vida. Por isso, medo de perder ela não tem; prefere confiar no suor do seu trabalho, sem o que – acredita ela – “nada [se] constrói”.
Já para Nazaré, com 32 anos, casada e com três filhos, medo é coisa do passado. É que ela conseguiu um emprego como faxineira recentemente e voltou a estudar. Hoje, ela pode comprar o material escolar das filhas e preparar-lhes um lanche para o recreio. Sim, é verdade que vez ou outra não dá para comprar “mistura [1]” – deixa escapar Maria de Lourdes. Mas o que se pode fazer? Além disso, com esse dinheirinho a mais é possível adquirir toalhas, travesseiros e até um colchão; enfim, coisinhas bobas, o que Lindalva chama de “necessidade de conforto”.
Mesmo destino não tiveram os pais dessa gente, pessoas da roça. Lindalva reclama que as condições de trabalho deles eram muito duras: braçais. Os de Nazaré deixaram o Ceará e tomaram rumo com os cinco filhos para São Paulo. A pobrezinha era pequena e costumava ficar trancada no barraco enquanto os pais saíam para trabalhar. Mas teriam eles orgulho da filha se a vissem hoje: após ter sido despejada da Favela do Gato, durante a gestão de Pitta, realizou um sonho quando conseguiu comprar uma casinha na Favela da Mário Cardim; a mesma de onde fugiu Maria de Lourdes com receio de que os filhos se perdessem nas drogas.
São mulheres que preferem olhar para o futuro, sonham com a casa própria, querem ver os filhos estudando para arranjarem um bom emprego e, quem sabe até, criarem um negócio próprio, ou simplesmente, como resumiu Nazaré, “subir na vida”. Ficar como está é o que lhes causa pavor.
Ah, sim! E há quem diga que o Bolsa Família serviria apenas para silenciar as indignações do povo e, conseqüentemente, esvaziar os movimentos sociais e os ânimos revolucionários. Pode ser. Mas isso não anula o fato de boa parte destas pessoas já terem tido algum tipo de experiência popular organizativa e dela não terem conseguido perceber quase nenhuma melhoria concreta das suas vidas. Como em qualquer outro contexto, há pessoas que se engajam mais e outras menos. Lindalva, por exemplo, diz que já participou de reuniões e manifestações para conseguir moradia, mas que isso só lhe deu “dor de cabeça”. Valéria também teve sua experiência e hoje acha que “essas coisas” só existem para “tirar dinheiro das pessoas”. Outra beneficiária do programa, moradora da periferia de uma cidade do interior de Minas Gerais, conta que chegou a participar de reuniões mensais em seu bairro e que lá discutiam questões de saúde, educação e habitação. No entanto, terminado o período eleitoral do município, estas reuniões, simples e misteriosamente, deixaram de acontecer. Então, que raios de esquerda é esta que não consegue ofertar outra coisa às pessoas senão cefaléia e desconfiança?
A propósito, desconfiança abunda por estas bandas. Maria, moradora de uma cidade do interior da Bahia, de 35 anos e mãe de uma menina, supõe que a maioria das pessoas que recebe a bolsa “não precisa tanto”. Mas ela mesma prefere esconder o emprego de caseiro que o marido tem em uma fazenda da região com medo de, por isso, sua família ser excluída do Programa. Valéria e Sandra (esta última, moradora da Vila Nova Galvão em São Paulo) chegam a conjeturar a possibilidade de o governo cessar a distribuição das bolsas porque muitas pessoas estariam mentindo para poder recebê-la. E como não poderia ser diferente, ante este tipo de apreensão, vigiam-se.
Eta vida miserável, meu deus. Miséria – de verdade – é assim: é em todos os sentidos, do estômago à fantasia. Pouco dela é bobagem. Escapam-lhes os reais critérios, as razões, mecanismos e os agentes de controle e fiscalização do Programa. Programa? É como se fossem geridos por entidades de outro mundo, almas de temperamento instável. E, igualmente às assombrações e os lugares desconhecidos, geram espanto, às vezes admiração, mas sobretudo medo. Passa Palavra
Nota:
[1] Nota ao leitor não-brasileiro: Sendo o arroz e o feijão a base da alimentação das camadas populares no Brasil, mistura é qualquer ingrediente suplementar que eventualmente se acrescente ao prato. Na maioria das vezes, e com alguma sorte, a mistura é qualquer pedaço de carne, mas pode também ser simplesmente um ovo.
Leia os demais textos do Especial Bolsa Família:
O que é o Programa Bolsa Família?
Transferências de renda e a realidade do capital
Programa Bolsa Família: resultados e objectivos
Acredito que por mais incoerente que seja esta distribuicao de renda,para alguns foi a salvacao em termos de serem de extrema pobreza,e o Governo já daá sinais para a porta de saída, o CRAS-Centro de Referncia da Assistencia Social, portanto quem sobreviver verá.