As notícias da morte de Bin Laden, do filho e dos netos de Kadhafi, os festejos duns e a apatia doutros, tornaram este dia negro, tão negro como os negros anos da minha infância no fascismo. Por Aldina Duarte

O fascismo roubou-me a primeira infância. Um dano irrecuperável que dificilmente se perdoa. A tristeza e a pobreza, vizinhas da miséria, inveteradas nos olhos pretos ou castanhos, sempre cansados e tristes, das mães, dos pais, das crianças, dos jovens e dos velhos, tudo era escuro, baço e ressequido, fosse qual fosse o mês do ano. Só nos olhos dos velhos havia o falso fulgor de quem alcançou um pouco de paz, sabendo que a morte se tornava mais próxima do que a vida. A maior parte acreditava que aos olhos de Deus eramos todos iguais, por isso, estar mais próximo da morte significava estar mais perto da dignidade que a vida lhes recusara. Olhos azuis ou verdes nunca os vi no meu bairro.

Refeições da família à mesa não me lembro, porque não havia comida para compor um prato quanto mais uma mesa; não me lembro de fazer anos [festejar o aniversário], nem ninguém da minha família, vizinhos ou colegas da escola primária, durante os meus primeiros sete anos; não havia banheira na casa dos pobres (bairros sociais), para não falar das barracas, onde nem uma sanita ou um lavatório havia; fruteira e mar, por exemplo, eram palavras abstractas; aos seis anos, eu tinha a chave de casa, tinha aulas e não tinha com quem ficar durante as tardes livres até à hora do jantar, quando a minha mãe voltava do trabalho.

“O pior” é que eu, à excepção dos meninos do meu bairro, como já só tinha mãe, o meu pai morrera na guerra colonial quando eu tinha dois anos, andava sempre com ela, vinte e quatro horas por dia, pelas casas dos ricos onde ela era criada de servir [faxineira], numa delas, cozinheira e costureira, nas outras. Eu via todos os dias a vida dos ricos e a vida dos pobres, o contraste era tão visível, que estas duas realidades juntas aos meus olhos, a partir dos quatro anos, eram como os livros didácticos infantis, onde hoje as crianças visualizam e aprendem os opostos, as formas e as cores. Os meninos do meu bairro não acreditavam em mim quando lhes falava das casas dos ricos, nem percebiam ao certo o que eu lhes contava, nunca tinham visto um frigorífico [geladeira] ou uma banheira, por exemplo.

Não havia dinheiro para comida, quanto mais para fazer várias viagens de transportes no mesmo dia, daí o aparentemente estranho e exagerado reconhecimento do povo a Mário Soares, pela criação do então famoso Passe Social, após o 25 de Abril [Revolução dos Cravos]. Andávamos quilómetros por toda a cidade, mal alimentados, mal dormidos e sempre humilhados. Muitos acreditaram que pertenciam à raça dos que nasciam para servir uma espécie superior, e que como não prestavam para mais nada deviam a sua existência aos seus patrões, que lhes diziam estas e outras brutalidades na cara. Sobreviviam, e agradeciam ao Deus por não pertencerem aos de má raça: os marginais ou os doentes mentais.

O 25 de Abril chegou, eu tinha só sete anos, a alegria apagou esta primeira infância como uma luz que entra pela janela aberta num quarto escuro. Eu acreditava que nós, eu e os meninos do meu bairro, iríamos ter tudo o que os meninos ricos tinham. Até fiquei contente por pensar que já podia ir para a mesma escola do Diogo, o meu primeiro amigo infantil, neto de um dos patrões da minha mãe, que passava o tempo na cozinha e nos jardins da casa a brincar comigo, porque os filhos dos empregados não podiam ir além da cozinha, lavandaria ou sala das costureiras. O Diogo lia-me histórias, emprestava-me brinquedos dele, jogávamos e passeávamos nos jardins, contra a vontade dos seus irmãos e da sua avó. Lembro-me da minha mãe a sorrir e de reparar numa ou outra gargalhada sua que até hoje acho contagiante e divertida. Lembro-me muito bem de chegar a casa e ficar estupefacta com um tabuleiro sobre a mesa da cozinha cheio de uvas, laranjas e peras. Passei a ficar na biblioteca municipal nos tempos livres, durante o inverno, e a acreditar que tudo o que vinha nos livros existia num mundo que eu havia de conhecer, ou na rua quando estava bom tempo.

Aos doze anos, irrompeu a memória daqueles negros anos e percebi que, também em mim, o fascismo deixara uma tristeza inveterada e inaceitável, no único espaço e no único tempo em que um ser humano pode experimentar e aprender a tão rica e singular alegria da primeira infância, entre tantas outras aprendizagens fundamentais para o futuro. Por essa altura, no liceu [ensino secundário], lia a Bíblia, Dostoievski, Dolto, Piaget, Eça de Queirós e Marx, ouvia a música de José Mário Branco, Fausto e Sérgio Godinho, e só me lembro de querer ser uma coisa na vida: cada vez melhor pessoa até ao fim da vida e nunca fazer igual ao que fizesse o inimigo.

Leia os outros episódios de Negros Tempos: 2ª Parte, 3ª Parte e 4ª Parte.

5 COMENTÁRIOS

  1. Bela descrição da vida dos meninos pobres, Aldina.
    Agora, é preciso não baixar os braços e não aceitar aquilo que a classe dominante acho é que o fatalismo, o determinismo social, o “cada macaco no seu galho”
    Um mundo melhor é possível. E isso não se alcança com lamentos, mas com consciência e luta.
    Como menino pobre que fui, como a Aldina, e como explorado que continuo a ser, não deixarei de continuar a lutar por um mundo novo…
    Um abraço
    Manuel Monteiro

  2. Quem nos tem governado estes 37 anos não teve a meninice sem banheira, caso contrário não tinham financiado tantas banheiras para deitar para o lixo.

  3. Aldina,

    Sou brasileira. Li seu texto e fiquei muito emocionada!

    abraços

    Marta

  4. Gostei de quase todo o texto excepto daquelas partes que servem para choramingar a morte dum fascista como o Bin Laden.

  5. estou a reviver a minha infância, acredite que não foi melhor, mas o pior de tudo era não sermos consideradas como seres humanos, os pobres não eram gente.

    Mas com força de vontade e muito trabalho consegui uma vida melhor, eu e muita gente, pois nessa altura nós tinhamos objectivos e vida e só pensavamos em ter uma vida melhor e poder ajudar os nossos pais e irmãos a melhorarem de vida.

    Agora está tudo aflito com a crise, mas os pobres sempre viveram na mais profundas das crises e souberam sempre dar a volta por cima.
    Não nos podemos deixar vencer, mas sim exigirmos que todos sejam responsabilizados pelo estado em que o pais se encontra e não foram os pobres de certeza

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