Errar é humano, não é profano como me quiseram fazer acreditar antes e depois do 25 de Abril. Por Aldina Duarte
A revolução com cinco anos e eu com doze, alguns acontecimentos causavam alguns sobressaltos na memória que dormitava sobre dores antigas. No primeiro ano de liceu [ensino médio] comecei a ouvir, regularmente, nos autocarros [ônibus] e na própria escola os primeiros discursos reaccionários, desde a revolução de 74. “Não aprendem nada nas escolas”, e “Ninguém quer trabalhar”, e “Os trabalhadores ocuparam as terras dos meus avós e cruzaram as nossas vacas de raça com uns bois quaisquer”, e “Os comunistas tentaram roubar-nos tudo”, e “ Eu tenho um busto do Salazar no hall da minha casa”…
O lema que errar era profano pautava o primeiro quarto de hora da manhã no começo da aula da segunda classe [segundo ano do ensino primário], a entrega dos ditados do dia anterior, por cada erro ortográfico uma reguada com a régua de cinquenta centímetros de comprimento, que garantia a devida distância entre alunas e professora, mais uns cinco de largura que asseguravam a pancada em toda a palma da mão de uma criança de sete ou oito anos, e cerca de dois centímetros de espessura para garantir a firmeza do embate. A partir de dez erros ortográficos, para além das reguadas, mais não sei quanto tempo virado para a parede com umas orelhas de burro. O pavor era tanto que só me lembro de decorar e esquecer-me de tudo a seguir, a cada ano que passava, apenas a curiosidade me mantinha o gosto de aprender coisas novas, apesar de tudo.
Dos meus colegas da primária e meus vizinhos, menos de metade estudaram para além do nono ano do liceu, a maior parte completou o segundo ano do ciclo preparatório (muitos desses acabaram por ir estudar à noite, depois de adultos, para fazerem o nono ano para conseguirem melhores empregos), e alguns ficaram com a quarta classe e foram trabalhar para as obras, para restaurantes, e ainda há os que se tornaram marginais.
Na terceira classe, depois do 25 de Abril, a professora era a mesma, já não nos batia mas ainda nos punha virados para a parede com as orelhas de burro, sendo que as famílias com isso não se importavam ou até achavam bem. Guardo na memória, até hoje, o dia em que a contínua da escola trouxe os mapas dos rios, das serras e das regiões de Portugal, e um deles ainda incluía as colónias, o comentário da professora: “só de pensar que tudo isto já foi nosso”. Lembro-me de pensar: “esta é fascista”. Ela acabou por se ir embora antes do ano terminar, nunca soube porquê.
Na igreja de Marvila [bairro popular de Lisboa], em época de eleições, o padre durante a homilia disse que era muito evidente que se atirássemos uma pedra com a mão direita ela alcançaria muito mais longe do que se usássemos a mão esquerda, e que estivéssemos atentos à seta virada para o céu no momento de votar [o partido de centro-direita, PSD, tem como símbolo três setas ascendentes], mais de metade das pessoas saiu da missa, e eu também. A partir desse dia recusei fazer o crisma e deixei de ser católica. Achando sempre que o cristianismo era uma doutrina mal utilizada pelo catolicismo, o que uns quatro anos mais tarde viria a acontecer-me com o marxismo e o poder soviético.
É verdade que a consciência, quer individual quer colectiva, não acompanhava o encantamento com a melhoria das condições de vida do povo em geral nos primeiros anos da revolução, o que é muito natural quando se nasceu e cresceu na pobreza e na miséria totais. E os capitalistas sabiam disso e tiveram a sensatez de se afastarem para nos deixarem festejar à vontade, sem perderem os seus objectivos de vista, o povo estava muito feliz e muito cansado de sofrimentos intoleráveis que queriam esquecer para aproveitar a boa nova da revolução. Os burgueses progressistas e bem intencionados, acredito que uma boa parte era mesmo pura nos seus objectivos, mas também achavam que a razão deles era total, não se questionavam nem pararam para aprender a conhecer o povo iliterato, pensavam saber tudo o que estava certo e errado e determinaram o bem a defender e o mal a combater por todos.
Em pouco tempo, muitos estavam a tratar da sua ascensão social, que essa coisa de educar e lutar pelo bem do povo não era nem nada fácil e muito menos rápida; afinal, os pobres que se amanhem. Os pobres de sempre começaram a ser seduzidos, e aparentemente “valorizados”: este é, para mim, o grande feito do capitalismo que nos dizia que todos somos capazes de ter uma boa vida e de formar famílias prósperas se trabalharmos com afinco e esperteza, se não perdermos tempo a protestar e a pensar em ideologias.
Mais tarde os banqueiros, refeitos dos seus sustos privados com a revolução dos cravos, com as suas fortunas recuperadas, alinharam com os diversos governos e vice-versa, fazendo as pessoas acreditarem que todos merecemos ser proprietários, emprestando dinheiro para a compra de casa, de carros, férias, para a criação de empresas, dificultando cada vez mais as possibilidades de aluguer de casa, desinvestindo nos diversos transportes públicos, no ensino público, na saúde e assim sucessivamente até aos dias de hoje!
Houve alguém que se enganou, e errar é humano, não é profano como me quiseram fazer acreditar antes e depois do 25 de Abril. A igualdade e a liberdade são um exercício de reflexão individual e colectiva, mas não pode nunca ser arrogante: a sensatez é o ponto de partida para a revolução profunda, diz o José Mário Branco, e a pobreza resolve-se com dinheiro e a miséria não, diz o João Bernardo.
Ilustrações: graffiti de Alexandre Farto
Leia os outros episódios de Negros Tempos: 1ª Parte, 2ª Parte e 3ª Parte.
Surpresa, fala em Marvila, o tal bairro pobre, sobretudo habitado por operariado, e que foi o meu habitat em criança e até ao início da adolescência. A memória dos seus “negros tempos” como já assinalei em comentário anterior é muito semelhante à minha. Só como achega, lembro-me, ainda cheia de vergonha pela sua existência, do imenso bairro de lata “bairro chinês” (porque se chamaria assim?), onde centenas e centenas de pessoas viviam em condições quase medievas.
Mas o que pretendo realçar desta vez são as suas alusões finais. A juventude intelectual anti-fascista e o pcp, (único partido organizado) pós 25 de abril, pensaram e agiram na convicção de que estavam a mudar o país, a afastar definitivamente a indecorosa classe dominadora até então, melhorando objectivamente e subjectivamente o modo vivencial da maioria da população. De facto de início assim parecia. É inesquecível a alegria e impetuosidade da ocupação dos bairros, das manifs. para pôr fim à desgraçada guerra colonial, ao fim da DGS, à libertação dos presos, à liberdade de imprensa, às sucessivas greves para melhores salários, direitos e saneamento de administrações coniventes com o fascismo, ocupação de terras,etc., etc.. Mas havia um senão ou mais, esta “vanguarda” pertencia, em grande parte, à burguesia (pequenina, assustadiça, timorata, etc. e tal) e quando vislumbrou a derrocada da gigante onda popular, afastou-se, esquecendo (também sabia pouco) do que a história e a própria vida ensina: se não vais ao fim das coisas, não terás a devida recompensa. Ficar a meio é sempre voltar a trás!
As suas memórias valem mais do que muitos artigos ou livros, pretensamente analíticos sobre os factos descritos. Está de parabéns!
Como vê Aldina errar é de facto humano. Mas já não é, tão humano, errar deliberadamente para que a miséria perdure, como a expolração, a autoridade sobre a contestação à miséria de forma hipócrita e cristã e que se sobreponham ao direito da dignidade humana. Esta “esquerda altruísta” a que está tão sentimentalmente próxima é no fundo tão canalha como aquela que a quis “obrigar” a fazer acreditar que errar NÃO é humano.
No humano, Aldina cabem todos os comportamentos que o mundo animal comporta. Além disso a ignorância e a má fé dos homens e mulheres acrescentam outros que a natureza animal estão longe de proceder.
Não acrescento mais nada, porque se assim fosse, isso seria pretender que a sua consciência ficasse de acordo com a minha.
Cante com a sua voz e que ela seja o grito estético e libertador que lhe quiser dar.
Mas fique descansada que não lhe peço nem exijo nada.
Errar deliberadamente não é erro é perversão.
E eu que li a chamada na home do site e deduzi que se trataria de alguma questão afrodescendente – mas errar é humano até neste título, q deve ser fruto deste histórico relatado ou melhor da história da humanidade.
Aldina,
Vejo que o que ocorreu nos comentários ao terceiro artigo se repete neste. Realmente, negros tempos, negríssimos, em que aquilo que passa por esquerda entroniza a hipocrisia ideológica do «politicamente correcto» e, à falta de conseguir mudar a realidade, exorcisma as palavras. Negros tempos, negros como as trevas.
Aldina, sobre a referencia que existe no Brasil sobre a palavra ´´negros´´ talvez nao te interesse tanto as implicacoes aqui desse dado, mas quando vamos ler o seu texto, é isso que a gente pensa… brancos tempos sempre foram brancos tempos pros brancos… Portugal como antigo explorar de escravos deveria repensar muita coisa porque ainda continua se aproveitando dos brancos tempos que ainda existem… mas resistiremos sempre! Axé!
Li não me recordo onde que nos Estados Unidos, no século XIX, havia seitas puritanas que cobriam com pano as pernas das mesas e das cadeiras, porque eram pernas, e o pudor exigia que as pernas estivesses vestidas. Este tipo de puritanismo, com as injustificadas analogias terminológicas que dele decorrem, impera hoje naquele delírio político a que se chama o «politicamente correcto». Os tempos são negros não por causa da taxa de melanina que exista na pele, mas por causa das trevas. O que não impede os prestidigitadores do dicionário de pretenderem fazer aos negros tempos o que os seus congéneres puritanos de outrora faziam às pernas dos móveis. Aos negros tempos não se opõem «tempos brancos», expressão que não existe nem é empregue, a não ser no norte da Rúsia, nas noites brancas, aqueles longos dias de sol que se prolongam pela noite dentro. Aos negros tempos opõe-se os tempos luminosos, porque é essa a referência, às trevas, aos ciclos do dia e da noite, da acção e do sono, da vida e da morte.
Denunciar as confusões verbais do «politicamente correcto» no plano lógico é fácil, porque elas são sustentadas não pela lógica mas pela hipocrisia moral do puritanismo. E, se a polémica nesse plano é fácil, ela falha o alvo também, porque o objectivo do «politicamente correcto» é outro e consiste em sustentar o multiculturalismo, as políticas identitárias e toda essa panóplia de teses e reivindicações que, através da conversão do cultural em biológico e através da tentativa de eternização das diferenças, beira o racismo e aquilo que eu tenho classificado como fascismo pós-fascista.
É assim que um dos comentadores salta da Aldina Duarte, nascida e criada no proletariado e excelente intérprete de um tipo de canção de raízes proletárias, para o passado escravista do reino de Portugal. E o que tem Aldina e o que temos nós a ver com isso? Será que os modos de produção passados entram nos genes? Se assim fosse, que catástrofe para os africanos, num continente onde proliferaram os reinos escravistas. E é precisamente a isto que levam o «politicamente correcto» e as políticas identitárias, à conversão do histórico em racial. A redução do dicionário aos termos autorizados tem esta consequência, entre todas a mais nefasta.
gente, quem é esse joao bernado? ser mais sectário impossível. Tirado do século XIX. já imagino ´´líder´´ (sem massas) macho autoritário.essa esquerda arrogante é foda, por pouco nao fusila quem opinou aqui. fui, esse bate-papo de aberto nao tem em nada, nossa, e o tamanho da resposta dele, ou vc nao é o autor do texto nao, relaxa, vai gastar o seu tempo nas ruas lutando e nao aqui massacrando, intelectual é de internet é foda também.
Obrigada, João Bernardo. Eu acredito que o conhecimento e o respeito para com o próximo é precisamente partilhar com honestidade as nossas convicções, não ser indiferente a ninguém. Porém, há algum tempo que noto que as palavras vão perdendo sentido, algumas morrem porque exigem pensamentos e reflexões mais profundos. O empobrecimento da língua é um sintoma de definhamento da nossa inteligência e da nossa sensibilidade. Restam os formalismos pouco rigorosos, ou vazios de todo: discutir é zangar, pensar é chatear, sentir é asnear.
Aprender com quem sabe é sempre um prazer intransponível. A autoria, no caso destes textos é irrelevante, mas ser confundida com alguém que pensa e escreve com a paixão, a sabedoria e a humanidade do João Bernardo torna o meu sono de hoje bem mais descansado. Fiquei muito curiosa em saber mais sobre os códigos morais do sec. XIX em geral, e vou saber. Até sempre. Aldina Duarte.