A intimidade e a privacidade pertença dos ricos, impróprias para os pobres. Por Aldina Duarte

Não me revejo nas pessoas pobres que atacam as pessoas ricas só por inveja. Mas consigo entendê-las melhor do que aquelas que desprezam as pessoas por serem pobres. No meu bairro as mulheres choravam e gritavam publicamente e os homens agrediam-se na rua. As crianças achavam normal uma coisa e assustavam-se com a outra. Ainda que a minha mãe me ensinasse a fechar a porta da rua e as janelas sempre que havia discussões, aquele barulho sem imagem, às vezes, tornava-se terrífico. A angústia do silêncio que se seguia, pior ainda. Enquanto não soubesse que estavam todos vivos não sossegava. E, à revelia da minha mãe, procurava sempre saber se estavam todos bem na medida do possível. Nunca me habituei à violência verbal e física. Apesar de ser constante e excessiva dentro e fora das casas. Ainda me lembro do som de um tiro, o único que ouvi até hoje, vindo da casa de uma das minhas amigas de infância. O pai era alcoólico e tinha uma arma, diariamente batia na mãe, até ao dia em que o filho adolescente, no corredor exterior do prédio, à frente dos vizinhos que nunca se quiseram meter no assunto, o agarrou e ameaçou, mostrando ser fisicamente mais forte e capaz de o matar se voltasse a fazer mal à mãe. A humilhação paralisou e calou o agressor até que morreu precocemente de cirrose e envergonhado para sempre.

Não me lembro de ver algum rico a chorar nem quando morria alguém amigo ou da família, nem a dar gargalhadas, verdade seja dita. Só os ouvia rir juntos de vez em quando numa sala de porta aberta e quando falavam entre si parecia que estavam sempre a rezar. Muitas vezes pensava que talvez não quisessem que os empregados os vissem fracos. Quando falavam com os empregados o tom das suas vozes era metálico e cortante, lembro-me bem porque era ameaçador como os gritos dos meus vizinhos. Era mais fácil abafar zangas e choros na casa dos ricos; o pé direito de cada andar era enorme, equivalente a quase dois andares do meu bairro, as paredes, as portadas e os reposteiros [cortinas estofadas] eram mesmo grossos, havia sempre divisões [cômodos] vazias, apesar de rigorosamente mobiladas, onde raramente alguém lá ia para além das criadas que as limpavam. Havia horários para a circulação dos empregados pela casa, interdita à maioria deles. A intimidade e a privacidade pertença dos ricos, impróprias para os pobres.

O pior de tudo é que veio a revolução e as pessoas da minha classe mantiveram a mentalidade que a vida antes do fascismo lhes incutira “à bruta”. Respeitar a vida íntima do nosso vizinho ou fazer-se respeitar na sua intimidade era sempre uma confusão. Uma guerra dura e muito feia, por vezes. A violência doméstica e a agressão sexual, entre marido e mulher, era audível e no limite visível, mas ninguém interferia: “entre marido e mulher ninguém mete a colher”. Entre pais e filhos igualmente. A má língua a que nunca achei graça nenhuma porque assisti às suas consequências horríveis: a minha amiga de doze anos condenada por quase todos a ser uma depravada porque mudava muito de namorado, a quem dava beijinhos à vista de todos, sem perceber porque é que o sexo era pecado, engravidou e com vergonha fez um aborto às escondidas, e morreu. A minha amiga cresceu a ver mãe e as outras mulheres a levarem tareias brutais descaradamente e a ouvir o pai no quarto ao lado a ter sexo com a mãe, às vezes a seguir à cena da pancada, e quando o seu corpo de menina-mulher começou a despertar apanhou uma tareia do pai apoiada pela mãe e pelo bairro inteiro.

Se as emoções espalhafatosas eram coisa de pobres, os sentimentos eram-nos absolutamente negados, até há bem pouco tempo. A depressão e o amor como a beleza e a contemplação são propriedade dos burgueses. Já ouvi isto da boca de pobres e ricos, de reaccionários e de progressistas. Sem teorizar, que não tenho recursos para isso. No meu bairro quando as pessoas eram mais sensíveis à beleza, à contemplação, às paixões, ao amor, eram fracas e tinham a mania que eram finas. Só se deprimia quem tinha falta de trabalho, ou era maricas [veado] sendo homem, ou preguiçosa e puta sendo mulher. Parece bizarro, mas houve quem acabasse na prisão, vagabundo ou mentalmente inválido à força de tanto contrariar sentimentos e experiências naturais da adolescência e da vida de um adulto. Isto também é fascismo, não ter direito a estar doente nem à saúde, como ser acompanhado por um psicólogo, antes ou durante uma depressão, quando for necessário, seja na adolescência ou mais tarde, em adulto, numa situação de desemprego, por exemplo. Estas “madurezas” [frescuras], como lhes oiço chamar, não são para gente de segunda, nascida e feita para aguentar e calar. E o pior é que muitos dos da minha classe, pelo menos até à minha idade, acreditam nestas e noutras abjecções equivalentes, tornando-se pessoas duma insensibilidade horrível ou em eternas “vítimas do sistema”.

Ilustrações: desenho de Stuart Carvalhais e fotografia de Luís Pavão.

Leia os outros episódios de Negros Tempos: 1ª Parte, 2ª Parte e 4ª Parte.

6 COMENTÁRIOS

  1. compañera, as expressoes ´tempos negros´, ´uma nuvem preta sobre nossas cabecas´´ nao poderiam ser racistas??? Legal seria a gente repensar o uso de expressoes como essas. Ou será que é um ´programa de índio´´, outra pérola da discriminacao racial que a gente fala e escreve sem perceber…um abraco

  2. Outra do «politicamente correcto», dos que fazem a revolução no dicionário. Escrevi um dia, repito agora, que assim como Orwell inventou o newspeak como a linguagem dos vitoriosos, este newspeak de novo tipo é a linguagem dos derrotados, que se rodeiam de um biombo de palavras, para que a realidade não lhes fira a vista.
    Negros tempos, não só os do salazarismo, mas negros tempos estes que vivemos agora, da hipocrisia ideológica.

  3. Algumas pessoas nao dao ´opiniao´, falam ´a verdade´. Assim que ´a verdade´ foi dita. Amém! Podemos até rastrear talvez, sim talvez, me reservo a dúvida, rastros de colonialismos nessas opinioes… Viva Fanon!

  4. Negros Tempos:
    Que recebem a luz e não a reflectem; sombrios; tristes; infelizes; mofinos; fúnebres, tétricos; nefandos.

    Negro que recebe a luz e não a reflecte, nefando (torpe, execrável, contrário à natureza) os significados mais exactos neste caso.

  5. Ainda não li o 1º 2 º mas irei ler de certeza. Porquê? porque estes”negros, negros sim, tempos” me comoveram pela acutilância e sensibilidade da descrição do que era viver e crescer num bairro pobre/operário algures em Portugal, durante os negros anos do fascismo. Foi também a minha experiência de começo de vida até aos 13 anos num bairro pobre/operário de Lisboa: Marvila. Obrigada pela memória.

  6. Será que este tempo, exprimem, de facto, os “negros tempos”? Ou estaremos no tempo da grande epopeia? Temos hoje, pela 1ª vez na História, a grande síntese de Ulisses, Spartacus, Danton, Zapata, Lenine, Stalin, Ho Chi-Min, Guevara, Bin Laden, etc. etc.

    Os paladinos da retórica, da propaganda, “os críticos da crítica crítica” já não fazem parte da luta pela conquista da felicidade e do bem estar da humanidade. A verdade baseada nos factos é indestrutível e invencível enquanto que os apologistas da desgraça e detractores da verdade ficam esmagados na fúria torrencial do mar revolto. Parabéns Aldina pela palavra, música e pala voz.

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