Por João Valente Aguiar
1.
Há uns meses, o José Nuno Matos teve a amabilidade de ler um texto meu sobre as potencialidades de fascização inscritas na ideologia e na organização do Partido Comunista Português (PCP) e ainda teve a paciência de escrever uma réplica. Pois bem, agora é a minha vez de escrever uma tréplica. Respondo com atraso, mas como os aspectos nacionalistas que ambos criticamos nos respectivos textos estão infelizmente para durar, creio que o regresso à temática do nacionalismo à esquerda continua a ter importância política e teórica.
Assim, neste artigo focar-me-ei em dois pontos fundamentais. Na primeira parte abordarei um aspecto secundário no artigo do José Nuno Matos, mas que me parece muito importante: a génese histórica do nacionalismo existente no PCP, encetado no período da sua reorganização. Na segunda parte abordarei a questão da organização sindical e partidária ligada ao PCP, das suas forças e fraquezas no actual contexto. Nesse segundo vector em discussão, procurarei demonstrar como as manifestações convocadas pela esquerda nacionalista — PCP e Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) — enfraquecem os vínculos organizativos entre os trabalhadores e os transformam numa grande massa de indivíduos atomizados. Ou seja, o que parece ser um exemplo de agregação entre trabalhadores é, na realidade, um processo colectivo de fragmentação da classe trabalhadora. Em suma, as iniciativas de protesto convocadas pela esquerda nacionalista replicam a estrutura organizacional inerente ao conceito de nação. No final da segunda parte procederei a uma comparação com a situação brasileira recente, que demonstra inequivocamente os efeitos perniciosos a prazo provocados pelo nacionalismo.
Mas antes de avançar para os dois vectores fundamentais quero lembrar algumas das ligações entre o fascismo, o nacionalismo e a esquerda e como o fascismo se constituiu como um «nacionalismo de base proletária» (Bernardo 2003: 217).
2.
Muitos à esquerda têm-se sentido melindrados com as análises que eu e vários outros companheiros temos desenvolvido a propósito das suas posições políticas. Ora, como tive oportunidade de afirmar aqui «o sucesso prático do capitalismo em colocar centenas de milhões de trabalhadores a executar as suas tarefas de produção de mais-valia para os capitalistas depende em boa parte do sucesso ideológico de uma absorção incontestada da comunhão de cada trabalhador com o “seu” país». Isto quer dizer que qualquer colocação dos problemas dos trabalhadores como se de problemas nacionais se tratassem resulta sempre na integração das lutas sociais dos trabalhadores para a remodelação e revigoramento das modalidades de dominação do trabalho pelo capital. «A nação é uma comunidade estritamente político-ideológica que mascara as dinâmicas mais duráveis do capitalismo ao agregar ideologicamente trabalhadores e patrões de um mesmo território político-administrativo. De facto, o sentimento de pertença nacional a uma comunidade política pretensamente administrada pelo contributo laboral e eleitoral de todos, e onde o povo de uma nação supostamente tomaria os destinos nas suas mãos, constitui o campo comum dos nacionalismos» (idem).
Chame-se nacionalismo ou patriotismo, mais importante do que os termos são os conceitos subjacentes. E nesse aspecto existe um campo comum de partilha de vectores estruturantes entre sectores da esquerda nacionalista e sectores nacionalistas da direita mais extrema e que são visíveis: a) na transformação da luta de classes numa luta entre nações; b) na divisão nacional dos trabalhadores europeus; c) e na aliança nacional entre trabalhadores e sectores capitalistas. Ora, esses vectores resultam numa coligação de temas entre a nação e a classe, e é a partir daqui que o fascismo adquire um dinamismo e uma plasticidade que lhe permite surgir em cenários diversos e com actores que certamente nem se consideram fascistas. Esse é o seu maior perigo, como o recente caso brasileiro demonstra.
Bardéche, um fascista lúcido como poucos (se é que tal combinação de palavras faz algum sentido…), tratou de lembrar logo no início dos anos 60 que existiriam já então «milhares de homens que são fascistas sem o saber». O fascista francês foi ainda mais longe e com um pragmatismo conceptual apenas bizarro à primeira vista, afirmou que «o próprio termo fascismo há-de perecer (…)». De que importa o termo se o conceito (e a realidade que o conceito pretende definir) – «que importa a palavra?» – pois «com outro nome, com outro rosto e decerto sem nada que seja a projecção do passado, imagem de um filho que não reconheceremos, a ordem de Esparta renascerá» (Bardèche citado em Bernardo 2003: 831). Como por sua vez acrescenta Bernardo, «os grandes temas do fascismo, desarticulados do seu referencial mais explícito, penetraram todo o espectro de opiniões e comportamentos da sociedade contemporânea, não só da direita e da esquerda, mas mesmo daqueles, e são a maioria, que julgam professar nenhumas ideias políticas. E certamente, nos seus termos estritos, essas ideias não são políticas, porque este é um fascismo sem nome. Mas não corresponderá ele, por isso mesmo, à essência do fascismo?» (idem: 831).
Leio isto e penso sempre na quantidade de alarvidades que pululam em blogues, caixas de comentários em jornais, artigos de opinião, comentários televisivos e cartazes em manifestações, considerando a Alemanha e elementos capitalistas provenientes do estrangeiro como os maquiavélicos culpados da actual situação de crise económica. E quando ouço os mesmos que colocam as raízes de uma crise económica numa clivagem entre nações ou na tese delirante de que a crise económica apenas derivaria da corrupção, lembro-me sempre de como é possível a maioria da esquerda nunca abordar a crise no seu plano socioeconómico específico e assim deixar as dinâmicas capitalistas da exploração totalmente ocultas. Isso significa que se a crítica política da esquerda não se dirige a qualquer aspecto estrutural do capitalismo, então qualquer luta que possa impulsionar também não colocaria em causa qualquer domínio do capitalismo. E aqui a circulação entre a esquerda nacionalista e a direita mais reaccionária transpõe-se do seu campo comum ideológico (o nacionalismo) para o plano político-prático: a revolta dentro da ordem.
«Nenhum fascismo se limitou a ser uma resposta da ordem à revolução. Todos eles foram, antes de mais, uma revolta dentro da ordem, e por isso começaram por procurar na esquerda inspiração que permitisse renovar a direita, ao mesmo tempo que transportaram para a esquerda alguns dos temas característicos da direita» (Bernardo 2003: 204): capital financeiro parasitário, nacionalismo, corrupção, soberania nacional.
3.
Relativamente ao PCP, o José Nuno Matos defende a tese de que este partido político seria nacionalista fundamentalmente por motivos eleitoralistas. «A retórica nacionalista e populista perfilhada pelo PCP e outras forças de esquerda reflete, na nossa interpretação, a posição de defesa a que a estas organizações se viram forçadas a recuar. A falência dos seus mitos levou à adoção de um mito que, originalmente, não é o seu mas que, em nome do seu sucesso eleitoral, bem pode ser o seu».
Será assim? Pelo contrário, defenderei que o PCP é nacionalista desde a sua génese. Nomeadamente desde a sua reorganização de 1940-41, a verdadeira fundação do PCP conforme o conhecemos ainda hoje. Neste aspecto não parece ser aleatório o facto de o PCP se ter tornado nacionalista precisamente durante o período imediatamente seguinte ao apogeu do fascismo português e precisamente durante o período de conflagração dos fascismos à escala europeia. Também não é de desprezar a orientação geral dos Partidos Comunistas no quadro histórico das derrotas operárias europeias que permearam o arco 1916-23.
4.
Referindo-me ao quadro específico português, o PCP foi desde a sua reorganização de 1940-41 um partido com uma aposta em apelos patriótico-nacionalistas. A palavra de ordem da “unidade dos portugueses honrados” é um exemplo paradigmático do nacionalismo congénito do PCP. Colocando a unidade de trabalhadores e de sectores liberais da burguesia portuguesa como principal objectivo político, o PCP definiu desde então o quadro por onde o seu nacionalismo floresceu. Definida logo em 1943, no seu III Congresso (1º ilegal), esta abordagem dirigia-se claramente «a todos os patriotas e portugueses honrados» (Cunhal 2007: 212):
«Política de união, leal e sincera, a “mão estendida” a todas as forças progressistas e patrióticas para lutar contra a fome, a opressão e a traição fascista, para derrubar o governo fascista de Salazar e instaurar um governo democrático de Unidade Nacional – esta é a nossa política. O Partido Comunista não poupará fadigas e sacrifícios para tornar um facto a união da Nação Portuguesa na luta pelo Pão, pela Liberdade e pela Independência.
O Partido Comunista, tendo em vista a criação dum potente movimento de Unidade Nacional para o derrubamento do fascismo que traiu Portugal, que traiu os interesses do Povo e da Nação, estende lealmente a mão a todos os que queiram lutar sinceramente pela grande causa que é a causa de Portugal. Não nos anima nenhum propósito que o nosso Partido não tenha tornado claro. Não nos animam ressentimentos de qualquer espécie. Só uma exigência fazemos: que em todos os que se unem a nós no movimento de Unidade Nacional exista a mesma vontade de lutar unidos até à vitória» (idem) [itálicos da minha autoria].
Portanto, de acordo com o informe de Álvaro Cunhal apresentado ao III Congresso do PCP, nada é mais importante para o seu projecto político do que o restabelecimento da unidade nacional usurpada pelo fascismo. Para o PCP, o fascismo seria condenável acima de tudo por não ser fiel à nação e ao seu povo… Esta crítica de que o fascismo salazarista seria insuficientemente patriótico foi recorrente ao longo de toda a história subsequente do PCP. Três anos mais tarde, no Congresso partidário seguinte, Cunhal volta a lembrar que «é na luta contra o fascismo que se está estabelecendo a União Nacional. É na luta contra o fascismo que a família portuguesa se reconcilia e ganha forças para libertar Portugal da tirania e edificar um Portugal democrático, próspero e independente» (idem: 467).
O mais relevante na argumentação de Cunhal é que o regime fascista dividiria a «família portuguesa» e que estaria ao serviço do obscurantismo dos monopólios portugueses e estrangeiros. Assim, tratar-se-ia de devolver Portugal ao povo português. Um povo português onde a classe trabalhadora não teria interesses políticos próprios para além das recorrentes reivindicações salariais imediatas. Ou seja, a classe trabalhadora veria os seus interesses concretizados e cumpridos dentro de uma unidade nacional de trabalhadores e de sectores não-monopolistas das classes capitalistas.
5.
O propósito de unidade nacional delineado pelo PCP é, aliás, simétrico ao que o regime fascista defendia do outro lado do espectro político. Repare-se que toda a argumentação política utilizada pelo PCP era decalcada dos discursos do regime. Enquanto o Estado Novo fascista proclamava que os comunistas eram traidores à pátria, o PCP devolvia o argumento. Enquanto o Estado Novo dizia estar a cumprir a unidade da nação portuguesa, o PCP que só ele e outros sectores poderiam levar a cabo esse projecto. Não quero com isto afirmar que o PCP e o regime fossem gémeos políticos (que não o eram), mas que a argumentação política utilizada pela própria oposição comunista não rompia em nada com o nacionalismo veiculado pelo regime.
Aliás, o PCP defendia a unidade nacional e o resgate da nação pelos portugueses honrados a tal ponto que essa política unitária até poderia contemplar membros da Legião Portuguesa que rejeitassem uma conexão mais íntima com a Alemanha nazi. Mas vejamos o que Cunhal escreveu sobre o assunto:
«O nosso Partido não deve desinteressar-se dessas dissenções que opõem, dentro da Legião, os elementos vendidos à Alemanha aos elementos que são contrários à traição do comando da Legião. É nosso dever, camaradas, aprofundar essas dissenções, atraindo os patriotas que sejam membros da Legião ao movimento de Unidade Nacional. Dois objectivos devemos procurar alcançar com essa política. Por um lado, engrossar o movimento de Unidade Nacional antifascista com novos participantes, mesmo que a sua participação seja “temporária, oscilante, condicional, pouco sólida e pouco segura”. Por outro lado, desagregar a Legião como tropa de choque do fascismo.
Mas que fique bem claro. De momento, nós não procuramos plataformas, nem acordos, com tais legionários. O que nós procuramos é atraí-los às mais variadas lutas contra a política de traição do governo quinta-colunista de Salazar e da sua tropa de confiança, a Legião, à luta contra o comando hitleriano da própria Legião, à luta pelo desmascaramento dos manejos de traição e espionagem da Legião» (idem: 211-212).
Desta citação de Cunhal retiro duas conclusões fundamentais. Primeiro, a Legião seria uma instituição passível de ser influenciada pelo movimento nacional antifascista de modo a captar fascistas patriotas… No afã de salvar a nação da divisão que o regime fascista protagonizava, o PCP apelava a fascistas pertencentes a uma organização análoga às SA ou às MSVN italianas para que se juntassem à autêntica Unidade Nacional… Quando o conceito de nação constitui o eixo central da política de uma organização de esquerda, facilmente se pode chegar a desejos de coligações com elementos fascistas. Sempre em nome do superior interesse da Nação.
Neste aspecto, quando Álvaro Cunhal «estende lealmente a mão a todos os que queiram lutar sinceramente pela grande causa que é a causa de Portugal» (idem: 212), como é possível alguém garantir que esse primado nacionalista não pode deslizar para um nacionalismo ainda mais agressivo? Onde está a fronteira entre nacionalismos e patriotismos? Quando o PCP defende ainda hoje «uma nova política que seja capaz de libertar Portugal da dependência e da submissão», onde está a fronteira entre a pretensa bonomia patriótica e o nacionalismo? Está-se perante duas realidades distintas ou sucederá que a diferença entre os nacionalismos será muito mais de grau do que de substância? Como tenho escrito várias vezes, a colocação da nação no centro programático dos discursos e das práticas do PCP leva a que esse partido inclua na sua matriz fundacional um claro vector nacionalista.
Sem dúvida, o nacionalismo salazarista era mais essencialista, mais colonialista e mais biologizante do que o preconizado pelo PCP. Basta lembrar que Salazar, num discurso a 28 de Abril de 1941, definia a nação a partir dos «membros solidários de uma comunidade que se funda no mesmo sangue» (Salazar 2010: 65). Mas nesse mesmo discurso o ditador fascista afirma também que o objectivo da unidade da nação portuguesa se expressaria a partir de um «elo de solidariedade que devia prender-nos como as pedras de um edifício – a sermos finalmente perante o mundo todos como um só» (idem). Ora, se é inquestionável que existem nacionalismos mais essencialistas e agressivos, ou que até se convertem num racismo puro como o caso extremo hitleriano, o seu fundo substantivo e transversal de partida encontra-se nessa tese da constituição de uma comunidade nacional coesa e una. Não se trata de estabelecer mecanicamente a equivalência entre ideologias, protagonistas e organizações distintos, mas de identificar os traços comuns que permitem a penetração de temas nacionalistas no seio da classe trabalhadora. Aliás, cabe registar que, se existem óbvias diferenças entre o nacionalismo salazarista e o cunhalista, também não é menos verdade que a ausência de qualquer reflexão sistemática de Cunhal e do PCP sobre o tema da nação é demonstrativo da incorporação totalmente acrítica dos temas patrióticos e nacionalistas. Ontem como hoje, o nacionalismo e os temas da pátria e da soberania da comunidade nacional são o senso comum de todo o cidadão e de todas as organizações políticas da esquerda à direita. Se este não é um primeiro e fundamental ponto de partida potencial para o fascismo, então não sei qual outro poderia ser.
Há precisamente 60 anos, alguém proferiu as seguintes palavras: «por mim continuo convencido de que a Nação é a fórmula de organização das sociedades humanas que melhor corresponde ao seu estado actual e ainda por muitos séculos no futuro, e de que melhores e mais rápidos resultados se obteriam da estreita cooperação entre as nações que da sua fusão ou confusão». Quando o PCP defende uma Europa de Estados livres e independentes, em que isso se distingue da noção da «estreita cooperação entre as nações»? Quantos dos que hoje participam em organizações de esquerda não concordariam integralmente com a citação anterior? Sim, quase todos concordariam com a necessidade da nação que Salazar (2010: 227) apresenta aqui. A nação é a cortina ideológica atrás da qual se escondem os processos de remodelação das hierarquias capitalistas. A nação é a cortina ideológica que esconde a construção de capitalismos nacionais, atrasados e politicamente ainda mais autoritários e repressores. Idiotas os que continuam a pregar a edificação de um capitalismo nacional como se de um projecto de libertação se tratasse. Ou se calhar nem serão assim tão idiotas, na medida em que, no caso da vitória de um projecto nacionalista, espera-lhes um lugar de poder no aparelho de Estado.
6.
Assim, nos anos 40, todo o raciocínio do PCP e de Álvaro Cunhal dirigia-se directamente para a temática da reconstrução nacional e da pátria portuguesa, onde a classe trabalhadora deixava de ter uma autonomia política própria. De facto, no quadro do nacionalismo do PCP, a classe trabalhadora era simplesmente o dínamo que rebentaria a armadura fascista e regeneraria a organização capitalista em Portugal sob comando das forças políticas e cívicas de “portugueses honrados”. Também aqui se reproduzia a estrutura de pensamento e de acção nacionalistas. Sabendo que o fascismo se caracterizou por utilizar camadas da classe trabalhadora em prol de uma reorganização capitalista da ordem vigente, o PCP acabaria por partilhar o mesmo princípio político: o recurso à classe trabalhadora para remodelar as hierarquias do Estado e encetar um novo processo de desenvolvimento do capitalismo nacional.
Por conseguinte, no referente à classe trabalhadora, importa relembrar a forma como o Partido Comunista visava a transformação da classe numa massa:
«Depois de passar de objecto produtivo a sujeito social, a classe operária era agora transformada em objecto de um processo político em que o partido, definindo-se como a vanguarda do objecto, determinava um “interesse” que afirmava racionalmente aferido pela objectividade da sua ciência política. Seja quando defendeu os “interesses nacionais” contra os interesses das classes, o “interesse da classe operária” contra os interesses dos operários ou, ainda o “interesse da luta de classes” contra os interesses por que lutavam as classes, o sujeito partidário apresentou-se sempre em nome do interesse do objecto» (Neves 2008: 94-95).
Identificado e concretizado o seu vanguardismo, expresso numa assimilação das teses do VII Congresso do Comintern, o PCP podia então partir para a integração das lutas sociais operárias que levasse à (re)construção da lusitana nação proletária. Por outras palavras, no PCP pós-1941 a sua direcção nunca teve qualquer desejo de desenvolver uma luta da classe trabalhadora em termos classistas. Pelo contrário, a luta operária estava e sempre esteve ao serviço da regeneração da nação portuguesa.
«A relação entre a classe operária e a nação portuguesa só poderia porém estabelecer-se através de um intermediário. Alguém que transferisse a energia do operário para a nação, alguém que pusesse homens sem raça a trabalhar por amor à terra. Ora, para este papel não haveria ninguém mais bem colocado do que o partido reorganizado. Tal como a nação, ele dependia da classe operária pois sem ela não passaria de mais um grupúsculo sectário; estava portanto destinado a ser-lhe fiel, era o seu representante natural. Tal como a nação portuguesa não passaria de uma abstracção metafísica sem o labor operário a substanciar economicamente a sua soberania política, a direcção política partidária não passaria de mais um intento idealista sem a crítica operária a substanciar socialmente a estratégia política do partido. Assim, ao partido reorganizado competiu gerir com precisão as energias do movimento operário, de forma a alimentar o vigor da nação portuguesa. Esta tornou-se a principal tarefa do partido: correlacionar, com a perícia técnica adequada, classe operária e nação portuguesa. E daqui resultaram as duas faces do processo de nacionalização da classe operária: a nação portuguesa integrou o movimento operário no seu seio e a energia deste passou a ser regulada em prol da vitalidade do corpo nacional» (Neves 2008: 102-103).
Como conclui o presciente historiador que tenho vindo a seguir,
«a luta de classes acabava integrada na narrativa fundadora da autodeterminação nacional, definindo-se o dinamismo nacionalista como o principal garante anti-imperialista» (idem: 164).
Por conseguinte, o nacionalismo do PCP vai muito para além de uma consigna eleitoralista. Ele é parte constitutiva e central da sua matriz política.
Bibliografia
BERNARDO, João (2003) – Labirintos do fascismo. Porto: Afrontamento
CUNHAL, Álvaro (2007 [1943]) – Unidade da Nação Portuguesa na Luta pelo Pão, pela Liberdade e pela Independência. In Obras escolhidas – Tomo I. Lisboa: Edições Avante, p. 145-235
CUNHAL, Álvaro (2007 [1946]) – O caminho para o derrubamento do fascismo. In Obras escolhidas – Tomo I. Lisboa: Edições Avante, p. 369-536
NEVES, José (2008) – Comunismo e nacionalismo em Portugal. Lisboa: Tinta da China
SALAZAR, António de Oliveira (2010) – Pensamento e doutrina política. 3ª ed. Lisboa: Verbo
Caríssimo,
a melhor maneira de prestar homenagem à inteligência e à inspiração crítica desta primeira parte do teu ensaio consiste em formular algumas ideias interrogativas que me ocorrem ao lê-lo.
1. Não te parece possível que o “patriotismo de esquerda” seja hoje, apesar de tudo, mais visível dado o enfraquecimento relativo da vertente “internacionalista”, consistente na proclamação da fidelidade à União Soviética e aos seus interesses de potência, após o desaparecimento daquela – e dado, por outro lado, o fim, no que a Portugal diz respeito, da questão colonial?
2. Seria importante vincar ao mesmo tempo que o “nacionalismo” que demonstras, como, embora menos altissonante, uma vez que o sol do “socialismo real” se extinguiu, o pólo “internacionalista” persiste nas concepções geoestratégicas do PCP, que, embora menos imeditamente manifestas, alimentam, afinal, a sua táctica “nacionalista”. Por exemplo, a insistência cada vez mais exasperada na saída da zona-euro e na desagregação da UE parecem-me sinais claros da actualidade que as considerações geoestratégicas conservam. O PCP sabe que nem a “restauração da soberania” nem a “independência nacional” bastam para tornar verosímil em Portugal – ou a partir de situações comparáveis noutros países – o triunfo do seu modelo de sociedade e de Estado, pelo que não pode deixar de ter como objectivo fundamental a criação de condições que permitam a reemergência de um “campo socialista”. O tema da solidariedade com as nações que lutam contra o “imperialismo” dos EUA e da UE é revelador a este respeito. O que é anti-americano ou anti-europeu é bom. E por isso é preciso difundir a ideia de que é impossível democratizar a UE ou a sociedade norte.americana, transformar no seu terreno as relações de forças, porque só do exterior poderão ser mudadas.
3. A questão do “fascismo sem nome” é complexa. Sem dúvida, Bardèche tem razão a seu modo quando diz que boa parte das concepções do fascismo são adoptadas por gente que ignora a origem das que proclama e correspondem àquelas. Continua, no entanto, a ser difícil, senão impossível, conceber um movimento de tipo fascista que não reclame um nome e algumas fórmulas ideológicas tornando-os objectos sagrados, consagrando-os por meio de um culto ritualizado e explícito distintivo, apresentado como alternativa e superação perante todas as outras posições políticas. É claro que o nome sagrado pode não ser “fascismo”, e o credo proposto como verdade salvífica e única pode não se confessar “fascista” (ou até dizer-se “antifascista”). Mas um e outro terão de estar presentes quando emerge um movimento de tipo fascista, uma vez que são um dos seus elementos constituintes necessários. Seria necessário analisar tudo isto com mais tempo. Mas creio que, se a gestação do fascismo pode ser silenciosa e dissimulada, o seu desenvolvimento posterior não pode avançar sem declaração e exasperação identitárias explícitas.
Um abraço
msp
«A nação é uma comunidade estritamente político-ideológica que mascara as dinâmicas mais duráveis do capitalismo ao agregar ideologicamente trabalhadores e patrões de um mesmo território político-administrativo. De facto, o sentimento de pertença nacional a uma comunidade política pretensamente administrada pelo contributo laboral e eleitoral de todos, e onde o povo de uma nação supostamente tomaria os destinos nas suas mãos, constitui o campo comum dos nacionalismos»
– nada disso. O patriotismo entre os trabalhadores significa que os trabalhadores são mais do que bestas de carga dos capitalistas e de esquerdistas manhosos como vocês – significa que os trabalhadores têm outros interesses para além dos interesses ligados à sua condição de trabalhadores. Por isso também os trabalhadores são fervorosos sportinguistas, benfiquistas ou portistas e por isso também vibram com coisas inúteis como o futebol e os jogos da selecção nacional por exemplo (e chamo inútil não em sentido perjorativo, eu vibro também com futebol, mas no sentido de que nada de concreto se produz ali e é tudo quase puro gozo levado muito a sério).
Para vocês os trabalhadores são uma espécie de cyborgs, programados apenas para a política e em estado de mobilização permamente.
É incrível como não há o mínimo de bom senso nas vossas posições; não há sabedoria nenhuma.
Caríssimo,
obrigado pela tua paciência e pelos teus preciosos comentários. Sobre os pontos que abordas.
1) Sim, é possível que o desaparecimento da URSS possa ampliar o discurso nacionalista dentro do PCP. Contudo, creio que esse aspecto convive com outros dois. Primeiro, a consolidação nacionalista do PCP nos anos 40 ocorreu precisamente num tempo onde a URSS se afirmou no panorama internacional como a pátria do socialismo. Portanto, uma coisa não implica necessariamente a exclusão da outra. Em segundo lugar, creio que a crise do euro exacerbou os discursos nacionalistas. Eles sempre estiveram presentes na história recente do PCP mas creio que se exponenciaram no actual contexto, onde a demagogia anti-europeia tem terreno para actuar.
2) A afirmação nacionalista do PCP ocorre em dois planos. Primeiro, no plano mais óbvio: o da independência nacional, etc. E depois no plano da tese da “amizade e da colaboração livre entre todas as nações”. Por sua vez, este segundo plano desdobra-se em dois. Num primeiro momento, isso significa que a desagregação da UE é vista como um passo relevante para o retorno (a meu ver estritamente ilusório e ideológico – o que é ainda mais perigoso) a um capitalismo de “nações independentes” e assentes no proteccionismo económico. A tese implícita é que a esmagadora maioria das necessidades de uma população seriam satisfeitas a partir da produção nacional. Portanto, o “internacionalismo” do PC é estritamente uma soma de nacionalismos. Num segundo momento, o projecto nacional preconizado pelo PCP articular-se-ia (se concretizado, o que não me parece muito possível) com outros regimes que o PC vê como amigos, progressistas e até como pretensamente anti-sistémicos. Por exemplo, no blog de um reputado economista e dirigente do PCP (http://anonimosecxxi.blogspot.pt/2013/06/registo-de-dias-de-agora.html) os chamados países emergentes são vistos como forças anti-imperialistas, como se eles não fossem novos imperialismos… Ou como se fossem algo de muito distinto do restante capitalismo, quando de facto representam a ponta-de-lança do desenvolvimento dos princípios de organização toyotistas em novos e enormes mercados. E, pior de tudo, quando países como a China são apresentados como uma panaceia simultaneamente anti-imperialista e de tábua de salvação económica. Como se grandes grupos capitalistas – privados e estatais – chineses (ou outros) quisessem saber de Portugal fora de um contexto de integração económica à escala global. Eventualmente o PCP esperará que os camaradas de Pequim, de Havana ou de Pyongyang o auxiliem economicamente. Se há quem ache que a actual crise se resolveria com a prisão de centenas de políticos, porque um Portugal “socialista” não poderia aprender com aqueles magníficos exemplos e regenerar a economia da nação a partir da prisão massiva ou do trabalho prisional? Não foram assim que começaram e floresceram os planos quinquenais?
Felizmente parece-me improvável a ascensão do PC ao poder. O que não lhe retira contornos de perigosidade, na medida em que não existe nenhuma consciência na cabeça daquela gente de que as suas teses e as suas práticas nacionalistas só servem para que, num cenário de agravamento da crise económica e política, a demagogia da extrema-direita possa florescer.
3) Posso estar errado mas que me lembre foi o fascismo italiano quem mais se reivindicou explícita e propriamente de uma natureza fascista. Mesmo que não tenha sido o único, a questão vai muito para além do termo. Ou seja, a maioria dos fascismos assumem-se acima de tudo como projectos políticos de salvação/regeneração nacional. Este é sempre o seu grande leitmotiv e o grande mobilizador de massas. Creio que o exemplo brasileiro (que abordarei ao de leve na segunda parte do artigo) demonstra isso mesmo: bandeiras e cânticos nacionais, discurso do “gigante que acordou” do sono que os corruptos e os plutocratas açambarcaram, etc. Ou o socialismo do século XXI chavista que é um exemplar possível de um fascismo tropical. O lado facial pode variar e até se pode afirmar socialista, nacional, etc. Mas o seu fundo parece assentar sempre na mobilização do tal nacionalismo de base proletária. O que quer dizer que algumas genéricas palavras de ordem socializantes são afogadas na corrente da salvação da pátria.
Um abraço!
Miguel,
outra nota que me esqueci de abordar no meu comentário anterior especificamente sobre o ponto 2.
A geoestratégia permeia totalmente a ideologia nacionalista do PC. É ela que legitima as teses delirantes da defesa da desagregação da UEM. O espantoso dessa gente é que muito falam dos efeitos imediatos que a queda da URSS originou na queda da esperança média de vida, etc. (Como se antes do próprio fim da URSS ela fosse propriamente muito elevada, mas essa é outra história…). Mas no caso da UEM, onde um ocaso seria muitíssimo mais devastador, já deixam o juízo racional de lado. Aliás, o caso da URSS em comparação com a UEM é interessante. Primeiro, porque foi a muito maior internacionalização do capitalismo ocidental que lhe permitiu dar um salto tecnológico e organizacional inovador e elevar a produtividade a níveis muito superiores aos do capitalismo de estado soviético. Foi essa internacionalização que lhe permitiu forjar o toyotismo enquanto o mundo socialista nunca passou do fordismo. Fordismo esse que era uma modalidade de organização da produção muitíssimo mais retrógrada e alienante do que os sectores mais qualificados, criativos e melhor remunerados do capitalismo actual. O que não iliba em nada as contradições actuais do capitalismo hoje vigente, mas entre dois capitalismos a esquerda parece proceder a uma escolha. E, pior de tudo, a modalidade que escolhe e defende abnegadamente é a pior delas… Portanto, o pessoal à esquerda que defende o nacionalismo esquece totalmente um dos factores mais relevantes que levou à desaceleração e posterior queda do projecto “soviético”. Nesse sentido, talvez a desagregação da UEM seja vista como uma espécie de vingança por aquela gente.
Em segundo lugar, na sua fase final, a desarticulação da URSS foi fomentada pela eclosão de nacionalismos que se foram desenvolvendo. Mas a sua desarticulação resultou numa difusão nacionalista colossal e com conflitos de tal ordem que ainda hoje permanecem feridas abertas. Ora, quem garante que algo semelhante não pudesse ocorrer no caso da desagregação da UEM? De facto, o caso de uma desagregação da UEM seria ainda pior na medida em que os seus efeitos contaminariam toda a economia mundial. Eu sou marxista (nomeadamente ao nível analítico) mas desconfio e desprezo os marxistas mecânicos que equiparam as crises económicas a contextos de irrupção revolucionária e libertadora. Se assim fosse 1929 – e o que se lhe seguiu – teria sido exactamente o seu oposto.
Por outro lado, o PC não tem qualquer problema em se aliar a qualquer regime anti-americano. Mas isso não é de hoje. Já os primeiros bolcheviques enalteceram e fizeram acordos com o Ataturk, deixando os seus camaradas a apodrecer nas prisões. Tudo em nome da preservação da pátria do socialismo.
Abraço
O título do artigo – sobretudo, valham as idôneas aspas – é quase uma sinopse histórica do nacional-bolchevismo, esse precursor, rival e desafeto ciumento do fascismo, já nos tempos gloriosos(?) de Lênin.
Caro Ulisses,
Sim quase que se poderia falar de um nacional-bolchevismo. Digamos que algumas das características que mais tarde o Otto Ruhle definiu sobre a semelhança entre o bolchevismo e o fascismo se aplicam aqui.
A expressão entre aspas é do livro “Labirintos do fascismo” do João Bernardo conforme vem referido no ponto 11 da segunda parte do artigo a ser publicado em breve.
Por último, à hora em que escrevo ocorre a demissão do tecnocrata mais influente do actual governo português: o ministro das finanças. Ao terror do ataque aos direitos dos trabalhadores em Portugal em contexto soma-se a possibilidade de a prazo se realizar um processo eleitoral. E se se lembrar que as sondagens (creio que no Brasil são denominadas de enquetes) dão a possibilidade de se colocar um governo de esquerda com a presença possível dos leninistas portugueses, então percebe-se que fazem todo o sentido as críticas que neste espaço se têm feito ao nacionalismo e aos perigos que comporta. Perigo que se ancora numa tentativa explícita dos nacionalistas em criarem uma solução ainda mais ditatorial do que a actual. Sem auto-organização dos trabalhadores o cenário será ainda mais perigoso.
É preciso passar pela camada de bullshit do artigo e ir ao osso da questão. A que servem estas ideias? É simples, serve o governismo actual, inclusive a versão PS que é mais do mesmo. Esta conversa é todo um alibi para o PS e o PSD.
Se mais 50 anos de austeridade vier da UE mais 50 anos haverão os passa-palavra de dizer que sem o Euro seria ainda pior.
E depois, como se sabe, o PCP não defende a saída da UE, ou seja, o PCP não confunde a UE com o euro como alguns trafulhas tentam fazer crer.
Certamente que o campo de tiro de Butovo era muito confortável… Dizem os 20 mil fuzilados que as balas ali faziam cócegas.
Ou que as filas ao frio com senhas de racionamento eram excelentes momentos de convívio do proletariado russo. Pão durinho, pão durinho, era tão bom…
E esses precursores dos modernos SPA’s que foram as colónias termais dos gulags? Ui, um mimo. Aquilo é que era vida.
Caro João Valente:
Consta que Clemenceau teria dito: “O nacionalismo é a última trincheira dos canalhas.”
Mas isso foi antes de ele próprio acana[lha]cionalistar-se ministerialmente – et pour cause…
O resto é amálgama jesuítico-bolchevique P’C’Pista, à guisa de argumento.
Este assunto é complexo pois importa distinguir quem o discute com seriedade…