Por Passa Palavra
1.
As recentes demissões no governo português do ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar e do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas abriram um cenário possível de queda do actual executivo PSD/CDS. Neste cenário a esquerda parlamentar, as centrais sindicais e os movimentos sociais dos Indignados e do Que Se Lixe A Troika clamam em uníssono por eleições legislativas antecipadas.
Entretanto, à hora em que publicamos este artigo, e contra as probabilidades descritas pelos comentadores televisivos, o governo ainda não caiu. Para já, os dois partidos da coligação de direita parece que vão entabular conversações e as probabilidades de uma queda do actual executivo aparenta estar neste momento fora do baralho.
2.
Para o Passa Palavra não é a queda ou a manutenção de um governo que interessa discutir isoladamente. O destino de um governo, seja ele qual for, só tem interesse para a classe trabalhadora se representar um avanço nas lutas sociais autónomas da classe. Ora, relativamente a esta questão, uma queda do actual executivo aparenta ser um tanto ou quanto irrelevante. Aliás, inversamente à maioria das organizações de esquerda portuguesas, defendemos a ideia de que a chamada crise no interior do executivo de Passos Coelho ocorreu única e exclusivamente dentro das classes dominantes e não resultou de qualquer mobilização nas ruas.
De facto, é uma profunda ilusão pensar que as actuais fricções entre o CDS e o PSD tiveram origem nas lutas recentes em Portugal. O único acontecimento de massas dos últimos dois anos que colocou problemas de legitimidade à governação PSD/CDS foram as manifestações de 15 de Setembro de 2012 contra a aplicação da Taxa Social Única (TSU). Nessa altura, o descontentamento foi transversal a grande parte dos trabalhadores e esta justa insatisfação teve um tal impacto que obrigou o governo e a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) a recuarem com a proposta inicial. Se bem que a greve no setor da educação contribuiu para desgastar a imagem do ministro Nuno Crato, tido como independente e técnico, não podemos afirmar que as demissões tenham a sua origem num poder das ruas.
Senão vejamos. Em retrospectiva só a manifestação de 2 de Março destoa do panorama absolutamente pobre e deprimente das lutas em 2013. Descontando esse caso isolado, as manifestações sindicais da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), o Primeiro de Maio deste ano, a manifestação convocada por movimentos sociais para 1 de Junho e a última greve geral de 27 de Junho foram momentos sem uma expressão significativa e que de maneira nenhuma conseguiram extravasar os participantes mais ou menos habituais dos eventos convocados pelas esquerdas portuguesas. Os exemplos mais demonstrativos da baixa intensidade das lutas sociais em Portugal encontram-se nas duas irrisórias manifestações que os Precários Inflexíveis (leia-se Bloco de Esquerda) e o Partido Comunista Português (PCP) convocaram separadamente nos últimos dias a exigir eleições antecipadas. Nenhuma delas ultrapassou o milhar de participantes, conforme o próprio PCP assume (vd. “Mais de um milhar no desfile do PCP a exigir a convocação de eleições” no seu site), e não se vislumbrou nenhuma participação popular fora dos círculos militantes e simpatizantes da esquerda. Uma manifestação como a de 15 de Setembro de 2012 poderia colocar problemas à legitimidade do actual governo que tem atacado violentamente os direitos, empregos e rendimentos dos trabalhadores. Todavia, nada de sequer aparentado ocorreu e a população trabalhadora manteve-se apática.
A esquerda, em vez de perspectivar a apatia dos trabalhadores como um péssimo sinal de que o processo político está totalmente nas mãos dos capitalistas, prefere lançar foguetes para ver se engana uns quantos incautos. Em resumo, a esquerda não reflecte adequadamente sobre os contornos objectivos de cada conjuntura e coloca os seus desejos à frente da realidade. Desgraçados os trabalhadores quando vivem em contextos em que à exploração desenfreada dos capitalistas se soma o delírio voluntarista da esquerda.
3.
O facto da maioria da esquerda não reflectir racionalmente sobre os mecanismos que ditaram a actual crise governativa ajuda a compreender que ela se revele incapaz de tentar mobilizar os trabalhadores contra o governo e contra a troika. Como temos escrito nalguns textos, é inaceitável que a esquerda confunda sistematicamente as raízes estruturais e socioeconómicas da actual crise económica e financeira europeia com uma perspectiva moralista.
Dizemos moralista, porque toda a argumentação da esmagadora maioria da esquerda – dos partidos aos movimentos – coloca a raiz da austeridade na obstinação em tratar os assuntos económicos como matérias de confisco ou de saque, numa vontade de poder da direita e num pretenso carácter malévolo do governo. Esta transformação da economia capitalista em vontades políticas conflituantes entre o governo e a oposição é preocupante. É-o porque o foco das críticas baseia-se num conjunto de lugares comuns. E é sempre a partir da difusão de lugares comuns cristalizados na mente das pessoas que lutas, activistas ou temas são convertidos e apropriados por movimentos conservadores ou fascistas. Exemplos de lugares comuns podem ser encontrados em atitudes como a psicologização das práticas capitalistas (veja aqui), a substituição da racionalidade por um voluntarismo quase soreliano e o entendimento dos problemas sociais e económicos como se derivassem da geoestratégia da opressão de uma nação sobre outra.
4.
Más análises políticas não resultam apenas em maus discursos políticos. São também péssimos pontos de partida para a acção política.
Quando a esquerda limita o seu alvo à constituição de um governo de esquerda e, acima de tudo, quando considera essa via como possível de reverter o quadro de austeridade está a ser demagógica. Nada temos contra o alívio das condições de vida dos trabalhadores. Mas é ilusório pretender que um governo de esquerda, por si só, será a variável independente que irá reverter a austeridade e trará o crescimento económico, o emprego e a melhoria da situação dos trabalhadores. A demagogia não existe no vazio. Ela é expressão dos interesses dos candidatos a gestores que pululam à esquerda.
Mas discutamos brevemente o que realmente significaria um governo de esquerda. E aqui duas questões se levantam.
Em primeiro lugar, como é que o conjunto da esquerda à esquerda do PS pensa poder constituir governo? No actual cenário parlamentar português só é possível constituir governo integrando o PS num governo. Ora, como este partido considera que o Memorando de Entendimento com a troika é para cumprir e que a austeridade vai continuar, como é que a esquerda lidará com esta questão?
Em segundo lugar, mesmo que fosse possível criar um governo empenhado na reversão da austeridade, como seria isso possível a partir de um único país, ainda por cima quando o Estado português não tem meios de se autofinanciar? E aqui entra o nó górdio do nacionalismo, para o qual o Passa Palavra não se tem cansado de chamar a atenção. Uma economia minúscula, endividada e pouco produtiva como a portuguesa não conseguiria lidar com a pressão das instituições europeias e escapar à austeridade. Qual o caminho desse governo português de esquerda? Ou se renderia aos termos do possível e se limitaria a negociar pequenas moderações à austeridade e, nessa situação, muito pouco se distinguiria do PS. Ou tentaria uma fuga em frente e o abandono da zona euro surgiria como o horizonte a considerar. Ora, como procurámos repetidamente demonstrar em vários artigos publicados neste espaço (aqui, aqui, aqui e aqui), uma saída do euro representaria um autêntico desastre económico e social para as condições de vida dos trabalhadores, agravando muitíssimo a austeridade. E, por inerência, representaria o funeral de qualquer veleidade autonomista da classe trabalhadora por anos e anos.
É por isso que o Passa Palavra tem criticado o nacionalismo que grassa à esquerda e que se constitui numa falsa alternativa à austeridade. Apesar de o nacionalismo e de o desejo de chegar a lugares de poder no aparelho de Estado não serem totalmente coincidentes, defendemos que muito dificilmente um existe sem o outro. Aliás, não é aleatório o facto de grande parte da esquerda enveredar por vias políticas nacionalistas como a defesa do abandono do euro e, ao mesmo tempo, colocar o centro das decisões políticas na única instância a que estes candidatos a gestores podem almejar: o governo nacional.
O seu objectivo político máximo – um governo de esquerda – tem muito mais de sintoma das limitações nacionalistas do que de solução dos efeitos da austeridade. E é precisamente num contexto histórico em que o capitalismo se encontra transnacionalizado e em que os factores transnacionais são muitíssimo mais determinantes do que os nacionais, que a maioria da esquerda não defende a internacionalização das lutas porque este objectivo colide com a sua idiossincrasia nacionalista.
5.
Não há que ter medo da realidade. Derrotar um governo é sempre positivo nos instantes seguintes à sua queda. Mas após os dez segundos iniciais de felicidade, se não houver lucidez e espírito crítico e se essa queda não derivar de lutas massivas dos trabalhadores, então as mesmas práticas, as mesmas políticas e os mesmos princípios de organização da vida em sociedade reproduzir-se-ão no governo seguinte. Derrotar um governo e colocar um outro governo, que de esquerda só levará o nome e fornecerá um novo fôlego de legitimidade à continuação da austeridade, servirá a prazo para desanimar milhares e milhares de trabalhadores e de activistas que colocaram as suas melhores energias e expectativas numa falsa solução.
A aposta da luta política contra o actual governo dos capitalistas não é errada por criticar a austeridade. A panaceia da batalha eleitoral para a formação de um governo de esquerda é um erro por não ver a austeridade como continuação da exploração económica por meios políticos e fiscais. O problema de fundo não é a austeridade, é a exploração. E, de imediato, é errado dar a prioridade à luta eleitoral relativamente à construção de um movimento de base.
A este título, conforme descrevemos na segunda secção deste artigo, são colossais as diferenças com o Movimento Passe Livre, um movimento social alicerçado em relações horizontais e no questionamento directo de um assunto concreto que tanto afecta a vida da classe trabalhadora. E que ao mesmo tempo é também uma bandeira de luta que atinge um aspecto estrutural do capitalismo: a sua política de urbanização e de fragmentação espacial da classe trabalhadora.
Neste sentido, jogar toda a luta política no destino que se dê ao actual governo é uma aposta errada, porque se insere unicamente num desejo de renovação das elites no interior da classe dominante. São ingénuos os que crêem que um qualquer governo de esquerda poderá sequer minorar a austeridade. Só um vasto movimento internacional de base, auto-organizado pelos trabalhadores em torno das suas necessidades prementes e concretas, poderá criar condições para uma real alternativa emancipatória.
As ilustrações reproduzem quadros de Gabriel von Max.
SEJA QUAL FOR O PAÍS, SÓ TEREMOS A VERDADEIRA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, LIBERDADE COM DIGNIDADE, EDUCAÇÃO ,
SAÚDE DE VERDADE, SEGURANÇA, ENFIM, UMA SOCIEDADE JUSTA, QUANDO PODEREMOS DE FATO , FAZER A REVOLUÇÃO SOCIALISTA MUNDIAL. NÃO É POSSÍVEL PAÍSES ISOLADAMENTE CONQUISTAR TAL SONHADA LIBERDADE.
A REVOLUÇÃO TEM QUE SER MUNDIAL. OS POVOS SÃO SEMPRE MASSACRADOS SE O PAIS NÃO FOR NO MÍNIMO, PSEUDO SOCIALISTA, POIS SEMPRE O IMPERIALISMO SELVAGEM, ESTARÁ NO COMANDO DO MUNDO.