O pós-modernismo deve ser visto como a inversão da última das Teses sobre Feurbach. Por João Bernardo

II

7.

Existe outra esquerda, que hoje tem o ascendente e se define como pós-moderna.

O pós-modernismo generalizou a noção de narrativa. A realidade é assimilada pelo discurso sobre a realidade. O que passa a ter importância é o controlo sobre o discurso, substituindo a acção sobre o real. Esta concepção tem a sua expressão prática — ou, mais exactamente, de negação da prática — na redução da política às redes sociais, enquanto disputa de narrativas.

O enclausuramento no quadro virtual lança raízes muito antes do aparecimento da internet. Os chefes fascistas concebiam a política como uma encenação e Salazar falou por todos eles ao pretender que «politicamente, só existe o que o público sabe que existe» e que «politicamente tudo o que parece é». Do outro lado da barricada, George Orwell preocupou-se, tanto no Homage to Catalonia como em vários artigos, com a possibilidade de uma vitória absoluta do franquismo entronizar como verdadeira a ficção de que o levantamento dos generais se fizera porque os soviéticos estariam a enviar tropas para Espanha. Assim, deduziu Orwell, um triunfo político poderia tornar verdadeiro um facto falso. É nesta perspectiva da realidade virtual que devemos interpretar o newspeak do Nineteen Eighty-Four, a matriz do politicamente correcto. Do mesmo modo, Gore Vidal, no final do Empire, imaginou Hearst, num encontro com Theodore Roosevelt, a vangloriar-se de que, se com os seus jornais inventava o país e o país acabava por ser tal como o inventara, então não precisaria de tomar o poder político, porque ele mesmo criaria a imagem daqueles que seriam eleitos.

Esta noção de narrativa adquiriu com o pós-modernismo um estatuto de fundamento epistemológico. Negando pertinência à avaliação da distância entre a realidade e uma narrativa da realidade e pensando que a realidade é um constructo, reduz-se a realidade, ou pelo menos a realidade perceptível, ao discurso sobre a realidade. Mas a realidade pode desenvolver-se de maneira oposta à narrativa, que fica então convertida numa falsa consciência. Esta discrepância é tão antiga como a história da humanidade e prova-se materialmente em sítios arqueológicos onde a reconstrução da vida quotidiana difere da sua representação nas pinturas murais ou nos relevos, assim como decorações figurativas em vasos de cerâmica puderam sofrer transformações que não indicam nenhuma alteração correspondente nos costumes. Do mesmo modo, as grandes gestas heróicas que alguns povos durante séculos consideraram como espelhos da sua história narram feitos e situações que jamais ocorreram. Ora, o facto de aqueles povos não só aceitarem a pertinência de tais representações mas até se mirarem a si próprios com esses olhos não impediu que a realidade social e a realidade material obedecessem a outras leis e se transformassem segundo outra dinâmica. O maior interesse de cada narrativa reside na distância que a separa, ou não a separa, da realidade. A narrativa válida é aquela que toma essa distância como objecto de reflexão.

Ou então, é válida também a narrativa feita para dentro, sem expressão pública. Não são apenas os achados arqueológicos e a épica arcaica a mostrar que a vida prática podia não corresponder às narrativas plásticas. Quando se dispõe de documentação, a análise dos regimes modernos com uma censura mais rigorosa, quer os fascismos quer o stalinismo, revela que, apesar dos receios de Orwell, a vida quotidiana não era absorvida pela narrativa oficial. Dois celebrados chefes do fascismo de massas perceberam este risco. «Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia», explicou Hitler. «As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas». Outro irrefreável demagogo, Juan Perón, tentou explicar aos patrões reunidos na Bolsa do Comércio de Buenos Aires em Agosto de 1944 que «a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são, sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas em todos os domínios». Estes dois chefes do fascismo mostraram-se bastante mais cépticos do que os pós-modernistas quanto à possibilidade de assegurar o controlo básico da realidade mediante o controlo no plano da narrativa. Teve razão Karl Jaspers quando, depois da guerra, classificou «o silêncio» como «o último recurso de quem se encontra reduzido à impotência» e adiantou que «se dissimula o silêncio para reflectir na maneira como se poderia restabelecer a situação».

A apatia política actual e o aparente desinteresse, que muitos consideram como uma postura alienada, talvez revele, pelo contrário, a fuga do plano das narrativas públicas e a passagem para outro plano mais fundamental, para o qual a esquerda pós-moderna se encontra — felizmente — despreparada.

8.

O pós-modernismo exige a conversão do newspeak em politicamente correcto porque o seu apêndice multiculturalista constitui uma colossal hipocrisia, que para se disfarçar requer o puritanismo da linguagem.

a. Os multiculturalistas esquecem, ou pretendem fazer esquecer, que as culturas e identidades étnicas foram, todas elas, originariamente exclusivistas e cada uma nasceu da assimilação e liquidação de outras anteriores.

Essa situação não se alterou. Os multiculturalistas passam por cima da questão fundamental, a do necessário antagonismo entre umas e outras identidades e umas e outras culturas. Nem o verniz do politicamente correcto consegue disfarçar o carácter inconciliável de culturas ou identidades que o multiculturalismo apresenta como igualmente respeitáveis, por exemplo a homossexualidade masculina e as culturas populares, que em muitos casos incluem um componente de homofobia. Mais drasticamente ainda, a hostilidade manifestada contra os homossexuais por culturas tradicionais da África reflecte-se na legislação repressiva adoptada por alguns governos africanos. Como harmonizar a apologia do movimento negro e a apologia do movimento gay? O multiculturalismo não consegue também dar conta do choque entre o feminismo, por um lado, e, por outro, identidades enaltecidas por se apresentarem como antieurocêntricas, nomeadamente o islamismo e numerosas culturas tradicionais. Não falta quem seja activamente feminista na universidade que frequenta mas aceite sem tugir nem mugir a subserviência tradicional das mulheres em povos índios. O que os multiculturalistas pretendem apresentar como um necessário mosaico de identidades e culturas é, na prática, um indispensável choque de identidades e culturas.

b. Nesta perspectiva, as denúncias de eurocentrismo são uma falsidade e um anacronismo. Em primeiro lugar, são uma falsidade porque as raízes greco-romanas da cultura ocidental nunca foram europeias mas fundamentalmente mediterrânicas, localizadas tanto no sul da Europa como na Anatólia, no Levante e no norte da África, e estendendo-se depois mais longe a oriente na época helenística e no auge do império romano. A cultura greco-romana resultou de uma fusão de todas estas proveniências. Em segundo lugar, o presumido eurocentrismo é um anacronismo porque no século XIX o capitalismo assimilou e extinguiu a diversidade de culturas distintas existentes no continente europeu para formar uma nova cultura única, que nunca foi exclusivamente europeia.

Ao longo da história, só o capitalismo se mostrou capaz de admitir a multiplicidade de origens culturais como um factor constitutivo permanente. O teste decisivo consiste na formação das vanguardas artísticas, que são a ponta de lança da cultura. Ao mesmo tempo que estas vanguardas foram influenciadas pelos novos meios técnicos e aprenderam a usá-los, especialmente a fotografia e os efeitos da velocidade, assimilaram também as lições estéticas provenientes de outras culturas. Não se tratou de influências superficiais nem de modas, mas de uma contribuição que implicou alterações de estrutura. Na segunda metade do século XIX os pintores europeus começaram a interessar-se pela arte japonesa, nomeadamente o colorido e o tipo de perspectiva, que deixaram fortes traços nos impressionistas e em alguns pós-impressionistas. Em seguida, desde a primeira década do século XX, com os cubistas e os expressionistas, incluindo o equivalente parisiense do expressionismo, foi avassaladora a influência das esculturas e das máscaras africanas, tanto na organização dos planos como na inversão da noção de espaço vazio e cheio na escultura. Mesmo os construtivistas, cuja linguagem estética emanou directamente das técnicas industriais, fundiram-na com a disposição de planos característica das máscaras africanas. Ao mesmo tempo, um jovem escultor francês radicado em Londres aprendeu também a lição sintética da escultura maya, enquanto um pouco mais tarde certa pintura abstracta gerada no funcionalismo construtivista incorporou igualmente a lição mesoamericana. Só a pintura aborígene australiana foi assimilada tardiamente, já quando o século XX ia adiantado. Todas estas lições passaram a fazer parte integrante de uma arte moderna que não deve definir-se por qualquer localização geográfica mas apenas pela situação temporal, a arte universal da sociedade global em que vivemos. Não foi uma cultura europeia que se expandiu, foi uma pluralidade de culturas de origem diversa que se fundiu para criar a cultura mundial da nossa época.

Para mais, note-se que esta miscigenação impulsionadora da nova cultura capitalista não ocorreu nas colónias ou nos espaços colonizados, onde os colonos sempre se revelaram exclusivistas, por uma necessária afirmação de identidade num meio em que constituíam uma reduzida minoria. Foi nas metrópoles que se gerou e desenvolveu a cultura capitalista mundialmente integradora; e mais tarde, à medida que o capitalismo se expandiu, as populações colonizadas absorveram de volta aquela cultura e deram-lhe novos desenvolvimentos, conjugando a irradiação das metrópoles com as iniciativas locais. A formação dos modernismos na América Latina é um bom exemplo deste vaivém fecundo.

c. O tipo de feminismo que hoje está na moda confunde as oposições de classe sob o pretexto da identidade biológica. Dando à noção de patriarcal uma extensão refutada pelo estudo das diferentes estruturas familiares ao longo da história e, em cada sociedade, nos vários estratos sociais, esse feminismo em voga recusa ou secundariza a noção de modo de produção e combate o projecto de uma cultura unificada de classe.

De maneira equivalente, o movimento negro esconde as clivagens sociais e políticas existentes entre os negros, ou pelo menos tenta atenuá-las, projectando para um plano supranacional os piores efeitos do nacionalismo. O movimento negro serve agora de legitimação ideológica à ascensão de novas elites, tal como a négritude serviu, há várias décadas atrás, para legitimar a ascensão da nova elite política nas antigas colónias francesas. No dia em que surja um movimento negro que critique a formação de elites negras e as relações de desigualdade e exploração entre negros com a mesma veemência com que critica o racismo antinegro, então esse movimento passará a fazer parte constitutiva do processo geral de renovação da classe trabalhadora.

Mas esse dia ainda não chegou, e a tal ponto o politicamente correcto habituou a esquerda actual a confinar-se ao mundo do vocabulário, que evoca um «feminismo de classe» ou um «movimento étnico de classe», como se bastasse a junção dos nomes para ser possível efectuar na prática a articulação de realidades sociais antagónicas. É o pensamento mágico transportado para o plano da política.

Tudo somado, os multiculturalistas propõem-se preservar apenas identidades e culturas já estabelecidas e recusam a priori uma cultura em processo de construção, a de uma classe trabalhadora mundial e unificada. Eles conseguem fazer pouco ou quase nada, mas conseguem impedir muito. É esta a sua utilidade histórica para o capitalismo actual. O multiculturalismo é o sucedâneo do nacionalismo na época da globalização.

d. Uma renovada identidade da classe trabalhadora, que leve em conta a pluralidade de origens culturais, de preferências sexuais e de características étnicas, não corresponde a adoptar o multiculturalismo no âmbito dos confrontos entre classes sociais. Trata-se de combater o multiculturalismo, tomando as mesmas matérias-primas culturais que ele pretende congelar no estado actual e na fragmentação geográfica, e construir com elas algo de muito diferente ou oposto, uma realidade nova e mundialmente integradora. É a luta do futuro contra a conversão do presente num mosaico de tradições.

9.

O pós-modernismo deve ser visto como a inversão da última das Teses sobre Feurbach. Transformar o mundo é considerado pelo pós-modernismo como um projecto totalitário e centrado no sujeito — para mais um sujeito histórico — que quer modelar tudo à sua imagem. Mesmo interpretar o mundo é considerado perigoso, já que poderá ter algum efeito sobre a prática. A grande narrativa é odiada e substituída pela proliferação de narrativas multifacetadas.

A única visão do mundo que o pós-modernismo admite é fragmentada e descritiva, o que garante que seja inócua. Sendo descritiva, passa-se da interpretação para a transposição, imunizando o objecto de sofrer qualquer interferência do sujeito e, portanto, deixando-o sem modificação. E, sendo fragmentada, não se corre o risco de um discurso global, que inspire um projecto global também, tido por isso como totalitário. Ora, só um projecto global pode opor-se à globalidade do existente.

10.

Sem a ambição de transformar o mundo fica votada ao fracasso a busca de uma acção revolucionária. A última das Teses sobre Feuerbach é uma apologia da razão instrumental. Ora, a recusa da razão instrumental é o cerne e o resumo do pós-modernismo.

A negação da razão instrumental nasceu na extrema-direita germânica na transição do século XVIII para o século XIX, caracterizou a extrema-direita europeia ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX e foi transportada para a esquerda pela Escola de Frankfurt, especialmente pela crítica de Adorno e Horkheimer ao Iluminismo. A negação da razão instrumental é o fundamento do pós-modernismo, que se opõe a ultrapassar a filosofia rumo a uma transformação do mundo.

Permeando todo o espectro político e convertida num lugar-comum dos nossos dias, a negação da razão instrumental serve para legitimar a barbárie ecologista, que pretende regressar a tecnologias e níveis de produtividade pré-capitalistas, e constitui o fundamento filosófico de uma nova versão do socialismo da miséria. Por isso a crítica à ecologia constitui o alvo indispensável de uma renovação do pensamento e da prática políticas.

Recorrer à razão instrumental é simplesmente aceitar que uma actividade prática, prosseguida em condições definidas rigorosamente, tenha um valor demonstrativo no plano ideológico. Ou seja, é aceitar que as principais questões ideológicas se resolvem fora da ideologia e que o objectivo último da actividade ideológica é exterior à ideologia. Contra o irracionalismo filosófico, trata-se de recorrer à racionalidade de uma prática rigorosa. Na sua crítica ao Iluminismo, Adorno e Horkheimer consideraram negativamente qualquer prova pela experiência laboratorial e pelos resultados práticos porque, implicando um domínio sobre a natureza, a consideraram totalitária. Mas afirmar que o êxito prático é contrário à perspectiva crítica não leva longe. Ao conhecido postulado de um dos pontífices do pós-modernismo, de que não existe nada exterior ao texto, a razão instrumental caracteriza-se por, em última instância, invalidar ou confirmar o texto fora do texto.

A razão instrumental é a arquitecta das grandes transformações e tem uma das suas demonstrações práticas nos processos revolucionários.

11.

A razão instrumental é um utensílio intelectual e passou a fazer parte das tecnologias intelectuais que lhe sucederam.

Do mesmo modo a escrita nasceu em sociedades hierarquizadas, cuja elite dispunha de uma acumulação de bens suficientemente volumosa para exigir registos duráveis. Foi para isso que surgiu a escrita, originariamente uma técnica destinada a consolidar a riqueza e o poder. A partir do momento em que foi criada, no entanto, a escrita pôde ampliar muito o escopo dos registos e converteu-se num instrumento lógico do pensamento, determinando o desenvolvimento de raciocínios sequenciais, com todas as consequências que daí advêm. Ninguém hoje dispensa a escrita, usada mesmo pelas pessoas contrárias à acumulação de poder e de fortunas e até por quem prefere os raciocínios cíclicos aos sequenciais.

O mesmo se passa com a razão instrumental. Tanto os pensadores e políticos de extrema-direita que primeiro concentraram nela o seu furor como os universitários que seguem as pegadas da Escola de Frankfurt e os filósofos pós-modernos tiveram e têm de recorrer à razão instrumental para assegurar a sua sobrevivência prática numa sociedade em que a actividade produtiva pressupõe a ciência e em que todo o sistema é regido pela crescente divisão do trabalho. O que sucede hoje aos críticos da razão instrumental é que as suas elaborações intelectuais são descoladas do meio prático em que se inserem, o que aliás explica o carácter especulativo e o estilo difuso dessas elaborações. Trata-se ainda de uma modalidade de falsa consciência.

12.

O pós-modernismo não se limita a ser um projecto filosófico, ou talvez nem sequer o seja fundamentalmente, e a este respeito é necessário considerar o equivalente à low art.

A literatura de auto-ajuda é a única que muitas pessoas lêem, tanto mais que a própria religião passou a ser entendida como uma auto-ajuda. Aliás, no estilo e na diagramação os manuais de auto-ajuda obedecem ao modelo dos velhos catecismos, que eram a low art da teologia. E os manuais de formação para profissionais qualificados seguem igualmente o padrão da auto-ajuda. Com o mesmo efeito, as revistas de modas e as páginas dedicadas às celebridades oferecem exemplos de vida garantidos pelo sucesso. A fragmentação dos noticiários na televisão e nos jornais destinados ao consumo popular destrói qualquer possibilidade de uma narrativa integrada ou sequer provida de sequência temporal. A arquitectura interior dos centros comerciais, onde muitas pessoas gastam a maior parte dos lazeres, constitui uma encenação da fragmentação e da mutabilidade e parece conferir ao pós-modernismo uma garantia material. Tudo isto e muito mais é a low art do pós-modernismo, sem a qual ele não teria conseguido abarcar o círculo do horizonte.

A hegemonia alcançada pela indústria cultural de massas fez com que o universo estético dos revolucionários passasse a ser definido pela low art do pós-modernismo. Aquela arte que antes era ou desejava ser não só a arte da revolução como uma arte revolucionária foi esquecida. E como o carácter de qualquer expressão estética é definido pela sua forma, a submissão à indústria cultural de massas atinge o ponto extremo nas composições musicais em que o texto se pretende revolucionário enquanto a forma obedece aos padrões da banalidade comercial. Esta tensão resultante de um conteúdo impedido de se expressar por uma forma que lhe é contrária revela o pauperismo ideológico e cultural da esquerda. Hoje, neste campo, o principal inimigo é o lugar-comum.

Referências

A primeira frase citada de Salazar foi proferida no discurso em que deu posse a António Ferro como director do Secretariado da Propaganda Nacional, a 26 de Outubro de 1933, e a segunda frase foi proferida no discurso por ocasião da tomada de posse dos novos dirigentes da União Nacional, em 22 de Março de 1938, encontrando-se ambas em João Ameal (org.) Anais da Revolução Nacional, [s. l.]: Majesta, 1956, respectivamente no vol. III, pág. 263 e no vol. IV, pág. 222. Estas duas frases foram repetidas por Salazar, praticamente sem alterações, no discurso de 26 de Fevereiro de 1940, citado em João Ameal, op. cit., vol. V, págs. 71 e 72. As declarações de Hitler vêm citadas em Hermann Rauschning, Hitler m’a dit. Confidences du Führer sur son Plan de Conquête du Monde, Paris: Coopération, 1939, pág. 238. Recentemente, na sequência de uma obra de Wolfgang Hanel, vários historiadores puseram em dúvida os relatos de Rauschning. Penso que Hugh Trevor-Roper formulou bem o problema ao escrever, no prefácio a Hitler’s Table Talk, 1941-1944. His Private Conversations, Nova Iorque: Enigma, 2000, pág. x: «Rauschning pode ter ocasionalmente cedido a tentações jornalísticas, mas teve oportunidade de registar as conversas de Hitler e o teor geral desses registos antecipa com demasiada exactidão declarações posteriores de Hitler para que o possamos pôr de lado como uma falsificação». Com efeito, é muito possível que não encontremos transcrições literais no livro de Rauschning, o que se percebe pela própria forma como está construído, mas trata-se da expressão do pensamento de Hitler no estilo que lhe era habitual. A melhor validação daquela obra reside no facto de as suas revelações corresponderem exactamente aos acontecimentos posteriores à publicação e terem sido confirmadas pela documentação relativa às ideias expressas por Hitler e por outros dignitários nazis, tanto mais que muitas das declarações divulgadas por Rauschning não eram conhecidas na época. A citação de Perón encontra-se em Hugo del Campo, Sindicalismo y Peronismo. Los Comienzos de un Vínculo Perdurable, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 1983, págs. 152-153. As frases citadas de Karl Jaspers estão no seu livro La Culpabilité Allemande, Paris: Les Amis des Éditions de Minuit, 1948, pág. 205.

Este Manifesto foi publicado em quatro partes. A 1ª parte incide sobretudo na velha esquerda. Esta 2ª parte diz respeito à esquerda pós-moderna. A 3ª parte versa questões organizacionais. Finalmente, a 4ª parte trata do horizonte económico do anticapitalismo. Todas as partes foram reunidas aqui.

Na janela de destaques e nos thumbnails reproduzem-se obras de Ellsworth Kelly.

38 COMENTÁRIOS

  1. Caro João,

    não tenho tempo aqui para entrar em grandes comentários a estas duas primeiras partes do teu manifesto. Mas produziste — ou estás a produzir — com elas uma reflexão absolutamente excepcional, e que seria urgente difundir mais amplamente. E é com a mais viva satisfação que te vejo demonstrares, com um brilho e uma agilidade da inteligência que me são, hélas, inacessíveis, como o rótulo de “esquerda” perdeu todo o carácter distintivo, e se tornou, nãõ só insuficiente, mas equívoco e mistificador quando se trata de significar e comunicar uma alternativa democrática ao capitalismo e à dominação hierárquica.

    Abraço

    miguel serras pereira

  2. Okay, Prof. João. Mais uma vez, muito instigante.

    Mas me tire uma dúvida: como a esquerda pode fazer a mediação com essas pautas fragmentadas que pululam: questão negra, questão indígena, quilombola, questão de gênero, questão ecológica.
    O primeiro passo seria buscar um fundamento classista (se é que é possível) em cada uma delas?

    Ou deveríamos negar essas questões (que a esquerda pós-moderna – e também a clássica -abraçaram com toda força)? Aliás, essa negação seria adequada do ponto de vista político?

    Abraço

  3. “Jogar fora o bebê com a água do banho” é, como todos sabemos, um clichê, e dos mais desgastados pelo uso. Mas nem por isso deixa de ter utilidade, e por isso vou valer-me dele, aqui.

    Por mais que haja o risco de cometer injustiças e gerar mal-entendidos (“está simplificando em excesso”, “existem exceções” etc.) em meio a um pequeno comentário, me parece que, visto em seu conjunto – ou seja, atendo-me ao seu efeito geral e de longo prazo -, o chamado “pós-modernismo” e seus desdobramentos, a partir de um mal-estar muitas vezes totalmente compreensível (perante as ortodoxias do marxismo e até do anarquismo clássico, perante a rigidez de certas abordagens, perante a escassez de considerações mais profundas de determinados tipos de opressão e determinadas agendas de luta, perante o excesso de otimismo relativamente à ciência e à tecnologia moderna, e por aí vai), terminaram por produzir uma série de inversões que, efetivamente, possui um caráter politicamente um tanto paralisante e, em parte, até desmobilizador, em última análise. Não que não se produza mais nenhuma “agitação”; porém, cada vez menos se vê como dessa “agitação” possa decorrer uma mudança sócio-espacial profunda, ampla e duradoura, em sentido emancipatório.

    A crítica da pobreza transforma-se, pelo receio de ofender a dignidade dos pobres, em uma crítica envergonhada e parcial das injustiças e em uma espécie de elogio estetizante da “cultura da pobreza”. Como se a denúncia objetiva da objetividade da falta de saneamento básico, de privações diversas etc. tivesse, necessariamente, que ser interpretada como uma desqualificação elitista, arrogante e hierárquica dos trabalhadores pobres e de suas vidas, enquanto tais.

    A entronização da ciência transforma-se, por conta e na base de uma crítica parcialmente fundamentada mas míope e obscurantista, em uma espécie de demonização indiscriminada da ciência. (Isso quando não se parte, em alguns casos especialmente caricaturais, para desqualificações apriorísticas de esforços e criações intelectuais e “teóricas” em geral.) O mesmo se pode dizer da “herança ocidental”, com muitos esquecendo de que todo um conjunto de valores emancipatórios (tanto quanto valores heterônomos e liberticidas) tiveram seu berço na história grega e européia dos últimos dois mil e quinhentos, três mil anos. E o mesmo se pode dizer, claro, da tecnologia, em que críticas justas e fundamentadas à “positividade intrínseca” da tecnologia capitalista (ou mesmo ao mito da neutralidade tecnológica) se convertem em objeções – às vezes furiosas – à tecnologia moderna em geral, no que se resvala para posições (frequentemente incoerentes e superficiais ao extremo) no estilo “anarcoprimitivismo”.

    “Revolução”, termo usado e abusado, foi destronado em favor de “revolta”, assim como “utopia” simplesmente deu lugar, em alguns casos, a “heterotopia”. (Para um exemplo ilustre de ambos os deslocamentos, queira o leitor recorrer a Foucault, autor que é um manancial extraordinário de insights interessantes, inspiração positiva, ambiguidades e ambivalências.)

    Quanto à ideia-ferramenta da “totalidade”, como poderia ela sobreviver, em meio a um mundo fragmentado e do qual o discurso “pós-moderno” típico é uma espécie de reflexo apenas parcialmente e aparentemente crítico? Em uma “sociedade do espetáculo”, também o ativismo se converte, muitas vezes, claro, em um espetáculo, daí decorrendo a maré montante de narcisismo midiático e estetizante (não raro individualista e tipicamente de “classe média”) em meio a certos protestos – sem prejuízo, que fique claro, para a justeza da indignação, e a despeito da complexidade das lutas, que vão, via de regra, muito além disso.

    Converso e colaboro, com muita freqUência, com jovens (e vários não tão jovens) que foram intelectual e politicamente socializados já em meio ao “pós-modernismo”, e vejo que muitos deles – os mais sensíveis e inteligentes entre eles – apresentam sinceridade de propósitos e também bons argumentos no que se refere às ortodoxias e às limitações das esquerdas de décadas atrás. Mas me aflige ver que, por razões diversas, não admitem que a “antítese” não é mais promissora que a “tese”, muito embora seja muito mais bem “adaptada” aos nossos tempos de fragmentação, confusão e “intransparência”. À “rigidez” de uma interpretação que recusam, opõem um relativismo não raro extremado (e ingênuo) que, simpático e charmoso, ao mesmo tempo desarma e paralisa. As angústias desses interlocutores sérios – eles existem – devem ser levadas a sério, mas o diálogo, muitas vezes, esbarra com a intransigência do suposto “novo” que, perante tudo o que pareça “velho”, não está disposto a fazer o esforço da autocrítica ou da consideração séria do argumento divergente (que nem sempre é “ortodoxo”!) Constato: nada mais sectário, às vezes, que um relativista extremado…

  4. Nordestino,
    Ponho de parte a ecologia, por motivos que expliquei em livros e artigos e que acabei por sintetizar numa série de oito artigos publicada neste site. O primeiro encontra-se aqui e os outros estão linkados no final. Quanto ao resto, não podemos negar essas questões, já que elas existem e são realmente questões. Foi o que pretendi expressar no § 8.d quando escrevi que devemos tomar «as mesmas matérias-primas culturais» que o multiculturalismo usa. Mas como poderemos unificar essas «pautas fragmentadas»? Não sei e creio que ninguém sabe, porque essa é a história em curso, que estamos a fazer. Conseguiremos fazê-lo? Na história não há garantias prévias nem existem companhias de seguros do destino histórico. É esta a grande disputa que está no centro da luta de classes. Mas se não conseguirmos essa unificação, então não conseguiremos acabar com os regimes de exploração e constituir uma Humanidade.

    Marcelo,
    A crítica a esse «elogio estetizante da “cultura da pobreza”», para empregar as suas palavras, está no cerne de tudo o que escrevi contra a ecologia e contra aquilo que classifico como socialismo da miséria. E é pior ainda, porque quando ouço aqueles ritmos paupérrimos, repetitivos e enfadonhos que hoje passam por música de protesto e me lembro que Anton Webern compunha obras cuja primeira audição cabia a corais de operários socialistas, apercebo-me do estado de degradação a que se chegou.

  5. Frantz Fanon, de dentro do movimento negro, já denunciava o perigo do multiculturalismo e das “novas elites” no poder.

    A respeito do multiculturalismo:

    A necessidade de apelar em graus diferentes à adesão, à colaboração do autóctone, modifica as relações num sentido menos brutal, mais cambiado, mais “culto”. Aliás, não é raro ver surgir neste estágio uma ideologia “democrática e humana”. O empreendimento comercial de sujeição, de destruição cultural, cede progressivamente o passo a uma mistificação verbal.
    O interesse desta evolução está em que o racismo é tomado como tema de meditação, algumas vezes até como técnica publicitária.
    É assim que o blues, “lamento dos escravos negros”, é apresentado à admiração dos opressores. É um pouco de opressão estilizada que agrada ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem racismo não haveria blues. O fim do racismo seria o toque de finados da grande música negra… (“Racismo e Cultura”, manifesto lido por Fanon no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1956, na Sorbonne)

    A respeito das novas elites (no caso, as das recém-nascidas nações africanas de meados do século XX):

    A burguesia nacional que toma o poder no fim do regime colonial, é uma burguesia subdesenvolvida. Os quadros universitários e mercantis que constituem a fração mais esclarecida do novo Estado caracterizam-se na verdade por seu número reduzido, por sua concentração na capital, pelo tipo de suas atividades: negócios, explorações agrícolas, profissões liberais. No seio dessa burguesia nacional não se encontram nem industriais nem grupos financeiros. A burguesia nacional dos países subdesenvolvidos não se orienta para a produção, a invenção, a construção, o trabalho. Está inteiramente canalizada para as atividades de tipo intermediário. Estar no circuito, na mamata, parece ser sua vocação profunda. A burguesia nacional tem uma psicologia de homem de negócios e não de capitães de indústria. (Fanon, Os Condenados da Terra, 1968, p. 124)

    A burguesia nacional descobre para si a missão histórica de servir de intermediária. Como vemos, não se trata de uma vocação de transformar a nação, mas prosaicamente de servir de correia de transmissão a um capitalismo encurralado na dissimulação e que ostenta hoje a máscara neocolonialista. A burguesia nacional vai deleitar-se, sem complexos e com toda dignidade, no papel de procuradora da burguesia ocidental. Esse papel lucrativo, essa função de biscateiro, essa estreiteza de vistas, essa ausência de ambição simbolizam a incapacidade da burguesia nacional para desempenhar seu papel histórico de burguesia. O aspecto dinâmico e pioneiro, o aspecto inventivo e descobridor de mundos, que se nota em toda burguesia nacional está aqui lamentavelmente ausente. No espírito da burguesia nacional dos países coloniais predomina o espírito de fruição. É que no plano psicológico ela se identifica com a burguesia ocidental, da qual sugou todos os ensinamentos. Segue a burguesia ocidental em seu lado negativo e decadente sem ter transposto as primeiras etapas de exploração e invenção que são em todo o caso uma propriedade dessa burguesia ocidental. [..] Em seu aspecto decadente, a burguesia nacional será consideravelmente ajudada pelas burguesias ocidentais que se apresentam como turistas enamorados do exotismo, das caçadas, dos cassinos. A burguesia nacional organiza centros de repouso e recreação, lugares de divertimento da burguesia ocidental. Essa atividade tomará o nome de turismo e será equiparada a uma indústria nacional. Se se deseja uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de parties para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que se passou na América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são estigmas dessa depravação da burguesia nacional. Porque não tem ideias, porque está encerrada em si mesma, separada do povo, minada por sua incapacidade congênita para pensar no conjunto dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional assumirá o papel de gerente das empresas do Ocidente e praticamente converterá seu país em lupanar da Europa. (Fanon, Os Condenados da Terra, 1968, p. 127-128)

    Talvez seja por estas e por outras que Fanon continua sendo um incômodo até hoje, seja qual fôr a perspectiva que se adote.

  6. A meu ver, o uso do conceito de nação e nacionalismo por Fanon, conceito recorrente nos seus textos, vem como alicerce da estratégia de luta anticolonial: se o inimigo, o colono, se apresentava como nação, Fanon opunha a perspectiva de uma nova nação.

  7. Caro João,

    Penso que o texto ganharia em nomear mais explicitamente aquilo que critica. Assim de repente fico com a ideia que remeteste tudo e todos para uma nebulosa indista a que chamas “esquerda pós-moderna”, cuja fisionomia e contornos é difícil de identificar para lá dos termos que empregas para a descrever. Reconheço no teu texto Lyotard (as narrativas) e Barthes (nada fora do texto), que citas sem nomear e de uma forma que me parece um pouco apressada. Aliás, o teu texto sugere um contacto em segunda mão com algumas das ideias que critica.

    As minhas dúvidas fundamentais dizem respeito à tua utilização de um conceito como o de “falsa consciência”. Fica por explicar o que seria a “verdadeira consciência” e quem estaria em condições de a identificar.

    Penso que o esforço para em cada momento definir o que é verdadeiro e falso integra um combate entre diferentes narrativas sobre o real e não resulta de um qualquer exame “objectivo” da realidade.
    Não sei se isso fará de mim parte da esquerda pós-moderna, mas não me passa minimamente despercebido que entre a realidade e os discursos que elaboramos acerca da realidade existe sempre uma distância, que essa distância só pode ser identificada discursivamente e que é essa prática constante, de exigência em relação a nós próprios e aos nossos esforços para compreender os fenómenos, que pode produzir algum tipo de teoria útil para os combates do nosso tempo. Parece-me que a tua formulação na tese 7 corresponde precisamente a este ponto de vista e contrasta um pouco com as críticas que formulas anteriormente: “O maior interesse de cada narrativa reside na distância que a separa, ou não a separa, da realidade. A narrativa válida é aquela que toma essa distância como objecto de reflexão.”

    Aliás, quando identificas nas posturas alegadamente “alienadas” a possibilidade de um gesto emancipatório não te encontras muito longe do pensamento de alguém como Deleuze e Foucault. O que não é bom nem mau, apenas sugere que os fenómenos sociais são frequentemente objecto de juízos semelhantes, elaborados em termos distintos mas que remetem para o mesmo significado.

    Permite-me que te diga ainda que a “apatia” não repousa menos nas narrativas do que a simpatia ou a antipatia. Os enunciados formam discursos e os discursos dão forma a narrativas: é a atenção a esses processos que nos permite problematizá-lo sem ser aprisionados por eles, identificando as estratégias de dominação e de emancipação que os atravessam, os efeitos de poder que produzem, a forma como nos imaginamos (será possível conhecermo-nos a nós próprios senão por via da ficção ?) e como reproduzimos certos comportamentos, relações e raciocínios enquanto “naturais”.

    Na tua tese 8 fico com a ideia de que a) contradiz b). Ou seja, se a cultura «ocidental» resulta de diversas formas de contaminação, apropriação e hibridez, então as diferenças (ou choques) entre culturas dificilmente serão inconciliáveis. Penso também que algo como “a cultura negra” ou “a cultura gay” só se pode apresentar como bloco monolítico visto de fora e de longe, porque um olhar mais atento e familiarizado não deixará de descortinar as lutas, negociações, alianças e resistências que percorrem qualquer uma delas. Haverá homossexuais racistas e negros homofóbicos, mas nada disso é fatal e tudo me parece aliás bastante mais fluído do que a tua descrição sugere. Nem todo o multiculturalismo (ou o que é frequentemente nomeado enquanto tal) caminha em direcção ao politicamente correcto e é preciso dizer que o politicamente correcto assentou em tempos, precisamente, no pressuposto de que existiria uma linha clara e visível entre o civilizado e o incivilizado. O problema reside sempre em quem traça essa linha, com que objectivos e através de que métodos.

    O que escreves sobre a “razão instrumental” também se me afigura problemático. O que nós utilizamos também nos molda, não se trata de uma relação que corra apenas num sentido e todos os instrumentos transportam consigo um conjunto de possibilidades que não são completamente determinadas por quem os emprega. Sei que não desconheces isto, até porque já li coisas escritas por ti que vão neste sentido. Mas então fico sem compreender muito bem o que queres dizer e peço-te que o expliques um pouco mais detalhadamente.

    Finalmente, penso que o teu cepticismo estético em relação ao hip-hop é sobretudo geracional. Nota que o Adorno dizia qualquer coisa semelhante acerca do Jazz.

    O resto das tuas observações acerca da necessidade de uma classe trabalhadora formada à escala mundial parecem-me bem vistas e talvez devessem ser mais acentuadamente colocadas no centro da nossa discussão. A luta continua.

  8. Ricardo,
    O meu «cepticismo estético em relação ao hip-hop», tal como a outras modalidades musicais com o mesmo défice de valor estético, não se deve ao facto de eu ser velho. Ainda na noite deste sábado me contei entre as — infelizmente não tão numerosas quanto deviam — pessoas que aplaudiram entusiasticamente de pé uma obra de Luís Tinoco, como sempre me entusiasmei pela música do meu tempo, daquele que em cada ano de muitos anos tem sido o meu tempo. E o mesmo quanto às artes plásticas. Aliás, considero que desde que o conceptualismo tomou conta das artes plásticas, o melhor da estética contemporânea, onde ela é realmente criativa e inovadora, reside na música. Mas receio seriamente que tu não conheças a música de vanguarda que fazem aqueles que têm a tua idade ou são mais novos do que tu.
    Quanto às outras questões, não me cabe a mim responder mas aos leitores comparar, excepto no que escreveste acerca da razão instrumental, que me parece resultar de uma leitura ainda mais apressada do que a que fizeste para o resto do texto.

  9. Não te chamei velho, apenas te dei o exemplo de alguém que, confrontado com uma estética que lhe era pouco familiar, a desqualificou como uma evidência da barbárie. O teu gesto parece-me semelhante ao de Adorno.
    Eu desconheço efectivamente a música de vanguarda, ela diz-me tanto a mim como a ti a música produzida noutros contextos sociais e espaciais. Penso que será uma questão de familiaridade e empatia com determinadas experiências.
    Voltarei a ler o texto de forma menos apressada, mas fico surpreendido que consideres que não te cabe responder.

  10. Ricardo,

    abordando apenas o tema do pós-modernismo, na medida em que é um tema que me é caro. Não creio que o texto do João Bernardo não tenha nomeado «mais explicitamente aquilo que critica». Se fosse um ensaio com um estilo mais académico, e não um manifesto, é óbvio que a citação de autores ou de exemplos mais específicos faria sentido. Contudo, os traços gerais que o texto menciona são, grosso modo, precisamente as traves-mestras do pós-modernismo. E aqui essas traves-mestras tanto dizem respeito ao que escrevem/escreveram a generalidade dos autores que se reivindicam do pós-modernismo, como à realidade cultural e ideológica do pós-modernismo. Aliás, nem percebo porque reduzes o pós-modernismo a autores e ao que eles terão ou não escrito, quando do que se trata, pelo menos da forma como vejo, é de uma lógica cultural/ideológica que recobre diversas áreas da produção cultural/ideológica das últimas décadas. O exemplo que o texto dá dos shoppings é precisamente o resultado do impacto de uma ideologia na configuração de um dos principais espaços de sociabilidades no toyotismo.

    Num outro âmbito, o texto aborda a questão da transformação da realidade num texto e que a realidade seria sempre uma construção simbólica/narrativa. Se a realidade não existe enquanto uma entidade a ser perscrutada pelos humanos, mas enquanto um caleidoscópio de múltiplos discursos, então surgem duas consequências. Por um lado, a ciência é só mais um discurso dentre outros. Ora, o ecologismo vai procurar legitimação neste ponto em específico. A ciência moderna, a indústria, etc. não seriam mais do que construção simbólicas/discursivas, pelo que, para a maioria dos ecologistas, os ataques à agro-indústria se centram na rejeição dos OGM’s, nas técnicas modernas agrícolas, etc. e passem para as teses do “regresso à natureza” ou do primitivismo tecnológico. Por outro lado, uma outra consequência genérica do pós-modernismo é que se a realidade não existe per si mas é resultado de uma apropriação discursiva, então o relativismo absoluto impera. É daqui que o multiculturalismo retira todas as suas implicações práticas. Na apostasia da diferença, desvela-se a cristalização das desigualdades.

  11. JVA,
    a distinção entre uma condição pós-moderna que todos partilhamos (ou seja, a lógica cultural/ideológica que referes) e um conjunto de postulados concretos defendidos em textos, tomadas de posição etc., é precisamente aquilo que sinto ficar pouco claro neste manifesto.
    O ponto não é que não exista uma “realidade” e que por isso tudo seria relativo. Trata-se mais de aceitar que não acedemos a essa realidade senão através de um conjunto de mediações, das quais os discursos e as narrativas são uma componente incontornável. Nota que quando dizes que a realidade é uma entidade a ser perscrutada pelos humanos estás a empregar uma figura de estilo, uma vez que a realidade só existe enquanto totalidade e é fisicamente impossível a um ser humano apreendê-la enquanto tal. Um olhar atento e rigoroso aos procedimentos através dos quais perscrutamos isto e aquilo é por isso condição necessária de um conhecimento materialista. De resto, as narrativas e os discursos são tão reais como outra coisa qualquer.

  12. Sobre essa discussão de “realidade”, “grandes narrativas”, “relativismo”, eu gosto muito da posição dos pragmatistas,como Donald Davidsson, por exemplo.
    De certa forma a ideia de grande narrativa, de acesso a uma realidade universal e objetiva, e o relativismo e subjetivismo relacionados ao que se costuma chamar de pós-moderno, são as duas faces da mesma moeda. Quando tenta-se compensar os problema de um, cai-se no outro. Os pragmatistas quastionam os dois fazendo perguntas diferentes.
    Eles diriam que não há mediações pelas quais percebemos ou representamos o real. Não vemos o mundo através dos nossos olhos, ou da nossa linguagem, mas com os nossos olhos e a nossa linguagem. Cai-se num relativismo por isso? Não se o que se busca não é a verdade ou um real, mas o que é verdadeiro (em determinados contextos e circunstancias), e o que é verdadeiro a partir da utilidade para os objetivos e interesses que se tem. Tal qual os modelos nas ciencias naturais. Modelos não são representações da realidade, são instrumentos para lidar com o mundo a partir de propósitos que temos. A prática é o critério da verdade. Vejo uma cadeira na minha frente, a pessoa do meu lado diz que a cadeira não existe. Ela anda, bate com o joelho na cadeira e se machuca. Isso basta. Para o propósito de não se machucar a afirmação de que há uma cadeira é verdadeira.
    Talvez as pessoas estejam adotando com maior frequencia visões de mundo “pós-modernas” por elas se adequarem melhor às suas experiencias vividas e objetivos hoje em dia. Pelo menos em parte.

  13. Caro Ricardo,

    1. Começarei por uma observação sobre as “narrativas”, as “práticas discursivas” e a “linguagem”, a propósito da seguinte afirmação tua: “Penso que o esforço para em cada momento definir o que é verdadeiro e falso integra um combate entre diferentes narrativas sobre o real e não resulta de um qualquer exame ‘objectivo’ da realidade”. Pois bem, chames-lhe ou não “objectivo”, parece-me que o “combate entre diferentes narrativas sobre o real” exige um simultâneo confronto com — ou referência a — este último. É verdade que tanto o enunciado “os porcos são mamíferos” como o enunciado “os porcos são aves de arribação” só através da linguagem podem confrontar-se, mas é igualmente verdade que não podem confrontar-se e decidir-se só através dela. Isto é assim, porque embora toda a nossa concepção do real e toda a nossa produção de realidades de várias ordens a partir do real passem pela linguagem, nem uma nem outra são apenas linguagem. A própria linguagem, por outro lado, nasce de um corpo a corpo da realidade humana, que nesse corpo a corpo adquire um seu modo de ser distintivo, com a paisagem da realidade em que ela se inscreve, e que a linguagem — e o tipo de acção que desencadeia — transforma não só ao nível da “representação”, mas na sua “substância”. Assim, abreviando muito, se a realidade “objectiva” não seria a mesma sem a linguagem, se a linguagem transforma a realidade do real, a contrapartida é que se deixar de se confrontar com o que não é ela, se substituir ao corpo ao corpo o ensimesmamento puramente “interior”, a própria linguagem se auto-destruirá, enclausurada e asfixiada pelo mau infinito que, à força de funcionar no vazio, a torna como que autista e também vazia. Em meu entender, é qualquer coisa como este “autismo” e recuo da razão e da linguagem promovidos pela cena cultural dominante que o João Bernardo tem em vista na sua crítica — o que faz com que as tuas objecções nesta matéria me pareçam deslocadas.

    2. Independentemente de se lhe chamar “esquerda pós-moderna” ou de se propor outro nome para aquilo a que o João Bernardo assim designa, parece-me difícil negar que o seu ensaio-manifesto identifica tendências e movimentos que são outros tantos obstáculos maiores aos objectivos que com ele, no final do teu comentário, reconheces partilhar. Aqui, mais do que o nome, ainda que podendo eventualmente levar à discussão sobre o nome, o que me parece fundamental é a destruição empreendida pelo João dos ídolos a cuja adoração boa parte do que se apresenta como esquerda sucumbiu, desistindo de facto de lutar por uma alternativa à divisão do trabalho do trabalho político dominante e ao governo da sociedade pelo poder hierárquico e classista vigente.
    Em muito do que escreveu, Richard Rorty avalizou em grande medida a regressão cultural dos tempos que correm e aquilo a que Castoriadis chamava a “ascensão da insignificância”. No entanto, deixou-nos aqui e ali algumas observações particularmente certeiras sobre a “esquerda cultural” e o ultra-esquerdismo de parte do mandarinato dos “estudos culturais”. Acontece que ontem, depois da discussão que sobre mesmo ensaio-manifesto mantive no Vias de Facto com o João Bernardo, me lembrei de uma sua observação particularmente pertinente. Rorty explica algures — e não posso dar-te a referência porque cito de memória — que, ao ouvir os debates refinadíssimos da esquerda cultural americana, ficava com a impressão de que os seus porta-vozes, bem vistas as coisas, pura e simplesmente não queriam o poder. É, com efeito, o que se passa com a esquerda cujos expoentes passam o tempo a denunciar a insuficiência da subversão alheia e esconjuram por todos os meios a questão do poder político e da transformação do seu exercício, que tendem a considerar sempre como tarefa maléfica e inferior, ao mesmo tempo que, saibam-no ou não, acabam por legitimar qualquer coisa como esse Estado “tutelar”, receado por Tocqueville, que garanta cada vez mais direitos e discriminações positivas cada vez mais particulares por identidades culturais, sexuais ou sei lá eu que mais, cada vez mais numerosas e atomizadas — não se dando sequer conta de que esse crescimento desmesurado da tutela do Estado contradiz a outra grande alternativa a que a resistência ao poder enquanto poder os conduz: a reivindicação liberal mais ou menos implícita e mais ou menos remaquilhada do Estado mínimo como condição da “cultura de si”.
    Em suma, quando tu próprio reconheces que não podemos considerar cada cultura ou identidade como um “bloco monolítico”, não se vê bem o que podes opor à crítica do multiculturalismo do João, tendo sobretudo em conta a dimensão programática com que ele a remata e que não vejo por que motivo não subscreverias: trata-se de “tomando as mesmas matérias-primas culturais que ele [multiculturalismo] pretende congelar no estado actual e na fragmentação geográfica, e construir com elas algo de muito diferente ou oposto, uma realidade nova e mundialmente integradora. É a luta do futuro contra a conversão do presente num mosaico de tradições”.

    3. Assim, tendo eu próprio interpelado o João Bernardo sobre alguns pontos importantes do seu texto (as minhas observações e as réplicas do João podem ser lidas no Vias — http://viasfacto.blogspot.pt/2014/05/joao-bernardo-sobre-esquerda-e-as_5.html e http://viasfacto.blogspot.pt/2014/05/replica-do-joao-bernardo-ao-post-joao.html — pelo que não as retomo aqui), o que me parece é que, alegando a inadequação do termo “esquerda pós-moderna”, esqueces ou subestimas as realidades a que o João a refere e o enorme alcance político da sua avaliação das mesmas, sobretudo para quem, como é explicitamente o teu caso, visa os mesmos objectivos de transformação radical das relações de poder da economia política dominante.

    Um abraço para ti

    msp

  14. Ricardo,

    ninguém diz que os discursos não são reais. Aliás, creio que a referência do texto à falsa consciência veicula precisamente o “poder” que determinadas narrativas têm na manutenção do estado de coisas. A questão está no que as narrativas pretendem operar sobre o real. No caso do pós-modernismo, o relativismo e a redução da realidade à mera proliferação de discursos abrem portas para o ecologismo e para o multiculturalismo, tal como procurei sintetizar no comentário anterior.

    Portanto, o centro da crítica ao pós-modernismo está nesse procedimento de transformar a realidade numa proliferação de narrativas. Ora, isto tem consequências muito vastas e que não se resume aos tópicos do ecologismo e do multiculturalismo da esquerda pós-moderna. Isso tem implicações no facto de a esquerda dos dias de hoje, tanto a esquerda antiga como a pós-moderna, se marimbarem para a economia e discutirem o capitalismo na base do que determinados gurus dizem. Não por acaso, a redução do debate político e crítico do capitalismo ao elencar de princípios apriorísticos e de meras discussões especulativas comunica com a lógica cultural do pós-modernismo de um modo perverso.

    E digo perverso propositadamente porque, hoje em dia, aprende-se mais de economia a ler os capitalistas do que os economistas da esquerda que pura e simplesmente mascaram as suas intenções políticas nacionalistas e proto-fascistas sob a capa da sua expertise académica e da teia de relações políticas, institucionais e de amizade que vai desenvolvendo em seu redor.

    E aqui chego à interpretação/conclusão que me ocorre ao ler estas duas partes do texto do João Bernardo: a maioria da esquerda de hoje é mais reaccionária, mais nacionalista e retrógrada do que a classe dominante. Em países em que a extrema-direita é residual, como é o caso português, são determinados sectores da esquerda quem mais propagam as mistificações nacionalistas, ecologistas e estatistas. Ora, se esta esquerda só serve para manter os trabalhadores fragmentados em nações, orientações sexuais ou etnias, porque raio é que a pouca esquerda que não vai nessas ondas anda sempre com paninhos quentes de ferir susceptibilidades? Em suma, não tenho dúvidas de que a crítica dessa coisa que se vai chamando de esquerda será condição imprescindível em futuras lutas sociais. Tão imprescindível como a crítica dos actuais dominantes. A maioria da esquerda que se considera anticapitalista ou antineoliberal é parte intrínseca do problema e não da solução.

  15. Deixo de lado, por ignorância da minha própria lavra, a interessante discussão estabelecida entre o Ricardo Noronha e o João Valente Aguiar.

    Gostaria, por ora, de conversar sobre o último parágrafo desta segunda parte. Tão intrigante quanto o abandono do estudo crítico da realidade econômica mundial contemporânea por parte da “velha” e da “nova” esquerda, é a demissão das tentativas de criação artística e reflexão estética por parte desses setores políticos e sociais esquerdistas.

    Sendo mais claro: quase todos os vídeos que assistimos dos movimentos populares e lutas populares no Brasil (e, arrisco dizer, essa tendência ultrapassa fronteiras) estão pautados por aquela concepção de fundo tão bem expressa pelo texto do João Bernardo. É só apertar o play dos vídeos de lutas e movimentos aqui postados no Passa Palavra e em outros sites. Noves fora, os vídeos partem exatamente da premissa de que o tema e o conteúdo do vídeo é o que importam – que isso, por si só, contribui para expressar e avançar na luta revolucionária. Daí que, sinceramente, com uma forma tão miserável de se expressar tal conteúdo, fica quase impossível assistirmos a esses vídeos sem sermos obrigados – em atividades de formação ou momentos de divulgação das lutas.

    Por esse motivo, anoto sempre no meu caderninho as indicações do João Bernardo e de outras pessoas aqui no site. Preciso, de verdade, continuar minha alfabetização estética. Além de um horizonte econômico do anticapitalismo, precisamos também de perspectivas interessadas nas vanguardas artísticas e rupturas nas formas de apreensão, leitura e representação da realidade. Ou, então, o mundo fica muito chato – pobre, miserável, esteticamente ecológico e correto.

    Por favor, conte-nos mais sobre os nosso contemporâneos nas artes em geral. São mais novos que eu, com certeza – já que fui formado em uma esquerda que deixa de lado a questão estética (deixa de lado, dizendo que tudo é conteúdo). O caderninho está em minhas mãos.

  16. Exílio Mondrian,
    Na passada sexta-feira morreu Rui-Mário Gonçalves. Na notícia que lhe dedicou, o Público recordou declarações suas numa entrevista concedida em 1997 à Antena 2: «A arte é geralmente a primeira reveladora das transformações que a humanidade deseja. Não é a política. A boa política é aquela que serve os verdadeiros anseios da Humanidade, e esses verdadeiros anseios são expressos na melhor arte».
    A grande tragédia da esquerda nas últimas décadas é a cisão entre a vanguarda política e a vanguarda estética. A banalidade estética da esquerda actual — e as excepções são tão raras que em nada alteram a situação — revela que essa esquerda, por mais revolucionária que se proclame, é incapaz de lançar a imaginação para além do lugar-comum fornecido pela indústria cultural de massas. Se a arte, como disse o Rui-Mário Gonçalves, é a primeira reveladora das transformações que a humanidade deseja, então temos de concluir que a esquerda hoje existente, com a sub-arte que difunde, não deseja nenhuma transformação radical.

  17. Miguel, o problema não é se determinar a natureza de um porco é uma tarefa exclusivamente linguística ou algo mais do que isso. Trata-se mais de conceber que a partir de um enunciado tão simples e rigoroso como “o porco é um mamífero” existe um conjunto infinito de narrativas possíveis: o porco é um mamífero que não se deve comer porque é sujo, o porco é um mamífero saboroso e nutritivo a partir do qual se podem fazer enchidos que duram o ano todo, o porco é um mamífero que se alimenta sobretudo de bolotas, o porco é um mamífero capaz de mastigar e digerir virtualmente qualquer matéria orgânica, etc, etc.
    Dizer que há várias doenças associadas à ingestão de carne suína é tão verdadeiro, à partida, como dizer que se pode comer carne suína uma vida inteira e não ficar doente por causa disso. Dizer que os porcos são óptimos animais de estimação é tão verdadeiro como dizer que eles são bons acima de tudo para comer.
    E isto aceitando os termos que tu propões para a discussão, porque se formos para outros mais complexos verás que tudo se torna muito mais interessante.
    Por exemplo, não é falso afirmar que a cidadania é, historicamente, o nome para a construção de uma determinada subjectividade política concebida sob a égide da soberania, que constitui uma pedra angular da grande narrativa liberal, que dissimula um amplo conjunto de desiguladades e assimetrias de poder, para além de constituir outras tantas.
    Ou ainda que a esquerda é, historicamente, uma categoria associada à ideia de representação, cuja genealogia remonta à revolução francesa, cuja evolução se caracterizou por uma cooptação cada vez mais evidente para a esfera da governamentalidade, cujo terreno político essencial é o da recuperação dos conflitos sociais e da conciliação entre exploradores e explorados à custa dos segundos. E assim sucessivamente.

  18. Os dois últimos parágrafos do Ricardo são muito interessantes e assino-os por baixo. Só tenho pena que neste tipo de discussões não se desenvolvam esses enunciados mais genéricos sobre a esquerda e não se retirem as consequências práticas de a esquerda ser hoje, na sua maioria e em quase todas as correntes anti-qualquer coisa, um espaço preferencial para expandir os mecanismos de dominação política para dentro da classe trabalhadora. Mas se calhar estou enganado e mais vale a esquerda ser toda amiga, pois à boa maneira do dualismo escolástico, só a troika é que é má e a esquerda é toda ela boa e camarada. Pena que os poucos sectores lúcidos da esquerda tratem o resto da esquerda como se fossem apenas irmãos desavindos e não como um sector politicamente pernicioso (porque mais nacionalista, mais estatista e mais irracionalista). Entre dois males de que serve escolher um deles, ainda por cima um que é potencialmente mais perigoso…

  19. Ricardo,

    nada do que dizes, e muito bem, invalida — antes confirma — 1. que nem todas as narrativas se equivalem ou são igualmente válidas, 2, que os critérios de avaliação não podem dispensar a referência (aquilo a propósito de que o discurso se faz, e que, ainda que seja discursivamente que o visamos e distinguimos, temos de saber distinguir do discurso).
    Alegra-me, embora já, no fundo, o esperasse, que me concedas que acertei no essencial. O que terias feito mais facilmente ainda tomando por objecto o confronto das duas narrativas sobre os porcos que propus e que, ao contrário, dos exemplos que dás não são igualmente verdadeiras.
    De qualquer modo, a minha objecção principal ao que escreveste, hélas, mantém-se, uma vez que não te ocupas dela, nem me dás qualquer indício que me permita saber se a aceitas ou se a recusas, até que ponto ou sob que ressalvas. Essa objecção ou reparo era, se bem te lembras, que “alegando a inadequação do termo “esquerda pós-moderna”, esqueces ou subestimas as realidades a que o João a refere e o enorme alcance político da sua avaliação das mesmas, sobretudo para quem, como é explicitamente o teu caso, visa os mesmos objectivos de transformação radical das relações de poder da economia política dominante”. Mas sei que, directa ou indirectamente, voltaremos a ela um destes dias, uma vez que não é verosímil que a continuação da luta não nos imponha fazê-lo.

    Abraço para ti

    miguel

  20. Continuo a achar de boa qualidade a discussão estabelecida entre o João Valente Aguiar, Ricardo Noronha e o Miguel Serras Pereira. Os comentários estão de sendo de grande valia e ensinamento. Com efeito, as considerações de João Valente sobre a esquerda toda unida e amiga (mesmo que com suas milhares de rusgas internas e pequenas disputas de poder) como algo pernicioso – já que deixa de lado importantes críticas de concepções e práticas totalmente antagônicas no seio desses mesmos setores de esquerda – não poderiam ser mais certeiras. Infelizmente.

    De resto, João Bernardo – e os demais que estão a ler esse comentário – as observações de Rui-Mário Gonçalves sobre a arte são de um lucidez admirável. Mais uma vez (e quantas forem necessárias) muito obrigado por essa nova indicação. Além disso, estou de pleno com o vosso diagnóstico, João Bernardo, a respeito da tendência de a imaginação política (e estética) da esquerda não superar os limites propagandísticos e do senso comum. Duro dizer isso, mas: melhor mesmo que a vanguarda estética se mantenha hoje distante dessas máquinas de moer pensamentos que só querem agitação e propaganda.

    Acho, inclusive e retomando as considerações de João Valente Aguiar, que a vanguarda política deveria também manter distância desses setores hegemônicos da esquerda – voltando, assim, suas atenções para as mobilizações autônomas das lutas sociais e também para a sensibilidade estética da produção artística de vanguarda atual.

  21. Gostei muito do texto. Acho que agora eu sei, definitivamente, o que é esquerda pós-moderna. Mas queria reclamar, como outros, da falta de didatismo em parte do texto do João, como é costume em sua escrita. Certas passagens são absolutamente inacessíveis aos não eruditos.

    Abraços!

  22. Só mais uma achega. Num texto publicado neste espaço (http://passapalavra.info/2014/04/94117) e que tive oportunidade de ler neste início de noite diz-se a certa altura:

    «É de facto espantoso como os que mais criticam a financeirização, e se baseiam na tese de que a agiotagem estaria a sugar a riqueza da economia produtiva, são exactamente os mesmos que se propõem resolver problemas económicos estruturais relativos aos mecanismos da extracção da mais-valia meramente a partir de mecanismos financeiros e monetários».

    De facto, se os leitores repararem, enquanto a maioria dos economistas da esquerda portuguesa discutem o euro – como se bastasse ao Estado imprimir papel para solucionar tudo – os membros da classe dominante pensam na produtividade enquanto mola dinamizadora do crescimento económico. http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/pires_de_lima_defende_que_a_falta_de_produtividade_nao_e_culpa_dos_trabalhadores.html

    Quando existe maior lucidez analítica em vários gestores do que na maioria da esquerda, esse é um péssimo sinal para essa esquerda. Enquanto essa esquerda descarrega litros de tinta a defender estatismos estéreis e nacionalismos delirantes contra a finança internacional, os capitalistas vão operando, de forma gradual mas consciente e consistente, a remodelação dos mecanismos de produção de valor económico. Ou dito de outra maneira, enquanto a esquerda faz colóquios e organiza dossiers contra a razão instrumental, a classe dominante utiliza a racionalidade para redesenhar as instituições económicas, as relações de trabalho e, com isso, alargar as oportunidades de negócio. Enquanto os capitalistas têm a sageza de utilizar a inteligência humana para expandir a mais-valia, a esquerda acha que essa coisa de pensar e de utilizar a ciência é tão relativo como outro qualquer discurso…

    Mas enfim. Como disse o João Bernardo na primeira parte deste artigo «por que motivo continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?».

  23. Só mais uma alfinetada. Falou-se acima da maior ou menor inutilidade de se mencionar autores. Por acaso, há um que valerá a pena lembrar: Michel Foucault. Se a obra dele tem interesse no desvendar da capacidade de disseminação do poder a inúmeras esferas, a verdade é que a ausência de critério na definição do que é específico de cada campo fez com que, por exemplo, a análise da construção da disciplina médica fosse equiparada à formação dos sistemas prisionais, à economia moderna, etc. Ora, se o princípio que governa cada um dos campos sociais é o mesmo, e se a génese de cada um corresponderia a uma mera ramificação de um processo mais vasto de organização da obediência dos corpos, então a ciência seria tão parte constitutiva desse sistema como o sistema prisional. Neste relativismo estruturalmente análogo ao que organiza o pós-modernismo, a ciência torna-se, deste modo, num discurso no mesmo plano opressor de outras esferas. Daí até considerar a ciência (e a racionalidade) como um discurso como os outros é só um breve salto.

    Ressalto apenas que não se trata de desligar a conexão mútua entre a ciência moderna com a expansão do capitalismo. Todavia, para o pós-modernismo a ciência é acima de tudo um discurso produtor de disciplina social, enquanto no meu entender, ela é um espaço de produção de conhecimento e de utilização e expansão da racionalidade. Que ela seja um florescente espaço para se fazer negócios, isso não significa que este processo lhe seja imanente. No capitalismo a ciência ou, para dar outro exemplo, a cultura não são destruídas. Pelo contrário, tanto a produção de conhecimento sistemático e sistematizado, como a produção de sentido são espaços florescentes de se poderem desenvolver mais e mais oportunidades de negócio. O que implica manter os princípios internos da ciência (da cultura, etc.) intactos. A transformação dos objectos científicos e culturais em mercadorias advém da reconfiguração da massa humana nesses sectores em força de trabalho produtora de mais-valia, não da ciência em si mesma. Por conseguinte, quando em determinadas situações se dá prioridade a um determinado tipo de medicamento ou de investigação o problema não está na ciência e na racionalidade. Na verdade, quando tal sucede isso deve-se unicamente ao mecanismo económico da criação da procura pela produção, da criação de um mercado pelas empresas. Não é por isso de espantar que a esquerda mais acirradamente ecologista quando vê um caso destes acaba por preferir atacar a ciência e não os mecanismos económicos subjacentes. Também por aqui essa esquerda tem um papel relevante para o capitalismo, já que fomenta e divulga uma noção unicamente virada para a omissão do primado da economia nas sociedades contemporâneas. No universo histórico em que a economia reina, a esquerda pós-moderna trata de desviar as atenções para um outro lado… E é da omissão do primado da economia (e da produção do poder a partir da exploração) que surge o “contributo” da esquerda pós-moderna.

  24. Acho que se os autores têm já o privilégio de se expressar nos artigos, devem deixar os comentários para os leitores. Mas não resisto a fazer um balanço. A frase que destaquei nesta 2ª parte acusa os pós-modernistas de terem invertido a última das Teses sobre Feuerbach. Para quem não esteja familiarizado com o marxismo, essa décima primeira tese afirma que até então os filósofos se haviam limitado a interpretar o mundo, enquanto o necessário é transformá-lo. Ora, não é sugestivo que, apesar de este meu Manifesto visar as condições da transformação prática, a sucessão de comentários tenha acabado por incidir no plano epistemológico? Não bastará isto para recordar como o ambiente pós-moderno nos aprisiona a todos e nos estiola? E, no entanto, não foi há uma enormidade de anos-luz que Henri Lefebvre se insurgiu contra a tradição filosófica que considera o conhecimento como um problema e afirmou que ele é um facto, e um facto prático. As raízes da décima primeira tese já se encontram em Fichte, para quem o conhecimento era um processo ilimitado, uma tarefa humana, o que invalidava o cepticismo. Entendido não como reflexo ou como correspondência imediata mas como busca permanente de um resultado, o conhecimento foi transposto pela praxis marxista do plano fichteano de processo intelectual para o plano de uma actuação material. «O pensamento é uma actividade; pensar é agir», definiu o marxista britânico T. A. Jackson. Mas o ponto de partida da crítica ao cepticismo permaneceu idêntico em Marx como em Fichte, a certeza proporcionada por um conhecimento que se confunde com a acção e que é interminável como a acção. Sair da epistemologia.

  25. me parece ser últil analisar a ideologia pos-moderna por meio do trabalho imaterial desenvolvido nos departamentos universitarios de humanidades. Pois aqueles que estão acostumados a passar anos e anos produzindo pouco mais do que “narrativas”, “interpretações” e “sentidos” novos que tem seu valor medido estritamente por meio de um título hierarquico ou pela quantidade de citações que seu paper consegue colher, certamente não é de se estranhar que desenvolvam certa desconfiança com relação a aqueles outros que dizem ser o pensamento algo que deve insidir na realidade. Imaginem tudo o que eles têm a perder a partir do momento em que o pensar não é mais domesticável através de giros linguísticos que tornem as coisas politicamente corretas!
    É como o pescador que quando acordou viu que seu barco havia se transformado em uma sereia: o primeiro pensamento que lhe atravessou é que ele havia perdido seu ganha-pão.

  26. JB cochilou: ano-luz não é medida de tempo. É bem verdade que, nos – saudosos (?) – tempos do PCP, ele já sabia disso…
    Hoje, dialetiza raposa e porco-espinho: dá nó em pingo d’água e rasteira em cobra.

  27. […] Lo más importante inmediatamente era que teníamos que vérnoslas con un movimiento revolucionario que no planteaba una dimensión clasista, que expresaba muy claramente, pues, la exigencia indicada en Origine et fonction de la forme parti: una revolución a título humano.
    […] Podía considerarse, además, que la no afirmación de un punto de partida clasista se desarrollaba dentro de la dinámica de la revolución, ya que K. Marx había insistido a menudo en que el objetivo de ésta era la supresión del proletariado, por lo que la madurez del movimiento que nació en mayo del 68 debía afirmarse en la medida en que la negación del proletariado se iría imponiendo cada vez más. Así, lo que yo consideré que debía de poner en primer plano no era la autonomía del proletariado, de la que tanto hablaba Potere Operaio, por ejemplo, sino su negación.

    (escrito em 1976…)

    Alguns anos depois, um poeta avisava : defende-te a dentes da vida proletaria (aristocratica, burguesa).

  28. O texto acima reproduzido revela a incompreensão não só da dinâmica das lutas sociais no capitalismo mas, especificamente, daquilo que se passou em França debaixo dos olhos de quem o escreveu. O célebre Maio de 68 não se limitou a uma revolta estudantil nem ocorreu só em Maio. Ocorreu ao longo dos meses de Maio e Junho e consistiu numa revolta estudantil seguida da maior greve geral da história da França. E até a revolta estudantil deve entender-se no contexto, então mundial, de um movimento contestatário de estudantes no que era a primeira geração de uma universidade de massas, destinada a formar trabalhadores qualificados, e não já uma universidade de elite, vocacionada exclusivamente para formar membros das classes dominantes. Contrariamente às lucubrações de Jacques Camatte (penso que foi ele o autor do texto), o tema do Maio de 68 é a luta da classe trabalhadora e a tentativa de afirmar, nessa luta, a autonomia da classe. O leitor que esteja interessado em conhecer a minha análise, devidamente documentada, acerca deste assunto pode ler aqui o artigo «Estudantes e trabalhadores no Maio de 68» publicado em Lutas Sociais, nº 19-20, 2007-2008, do Núcleo de Estudos de ideologias e Lutas Sociais da PUC-SP.

  29. Eis o (pseudo)paradoxo: pensar&agir classista [“afirmar… a autonomia da classe”] e atualizar a tese ‘aclassista’ da necessária autossupressão comunista do proletariado.
    Kaironomia e teleonomia intromisturadas, em recíproca pressuposição – arte da guerra de classes…

  30. KAIRONOMIA: PassaPalavra &…

    TELEONOMIA: Auto-organizado em partido histórico mundial, o proletariado abole o capital, destrói o estado e se dissolve na livre federação das comunas.

  31. Pra galera do Movimento Negro ver qual é:

    Esse ano, pela primeira vez na vida, encontrei pra trabalhar uma escola na qual as chefias são pretas. É preta a gerente escolar, a diretora, a vice diretora, a coordenadora. De cara, fiquei feliz porque quase não há diretoras negras nas escolas públicas. Seguem os dias….justamente essa escola chefiada por mulheres pretas é a escola com maior rigor e disciplina sobre os professores que já encontrei. Nem merenda os professores podem comer. E há cobranças várias. O que eu imaginei, de início, ser um reino da liberdade, é justamente a maior disciplina de trabalho que já encontrei. Elas rancam o couro dos professores e para os alunos também é linha dura total.

    De um lado, fico feliz de ver pretas mulheres na direção. Mas de outro, é cobrança atrás de cobrança. Se eu sobreviver a essas chefes pretas, acho que encaro qualquer trabalho depois.

  32. Comentando a ascensão conjunta, de um lado, das teorias que afirmam ser o pensamento científico moderno um construto social e cultural do Ocidente e, de outro, dos revivalistas religiosos que começaram a dominar a política em várias regiões do mundo não-ocidental, Meera Nanda afirmou que “enquanto a esquerda indiana se ocupava elaborando teorias sobre a ‘descolonização do conhecimento’, as forças revivalistas hindus conseguiram realmente descolonizar a matemática e a história da ciência. Nos estados em que subiram ao poder, os partidos revivalistas decretaram a substituição da matemática moderna por uma versão visivelmente fraudulenta da ‘matemática védica’. Do mesmo modo, conseguiram revisar a história da ciência e da tecnologia, com o objetivo de nela incorporar elementos mais nacionalistas. Mas foi este um caso leve de reenfeitiçamento, quando comparado com a situação do Paquistão, onde o clero tem muito mais voz sobre o será ensinado, e como – incluindo, segundo o físico Pervez Hoodbhoy, regras sobre previsões meteorológicas e astronômicas” (Meera Nanda. Contra a destruição/desconstrução da ciência. In: Ellen Meiksins Wood & John Bellamy Foster (orgs.). Em defesa da História: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 98-99). Em outro trecho, a autora afirma que “instalados com todo conforto nas academias, os críticos da ciência no Ocidente tendem a aplaudir os esforços de movimentos nativos de ciência no ex-mundo colonial para produzir […] ‘conhecimentos situados’ – como, por exemplo, ciência ‘islâmica’, matemática ‘védica’, ciência ‘indiana’, ciência ‘das mulheres do Terceiro Mundo’ etc. […] Mas se examinarmos a história concreta de movimentos sociais que procuram estimular e implementar a ciência e a tecnologia culturalmente ‘autênticas’, emerge um quadro muito diferente e muito mais preocupante. Em seu melhor aspecto, os movimento nativos de ciência geraram agitação neopopulista, antimodernização e antiestado, dirigida indiscriminadamente contra as instituições e ideologias modernas do Terceiro Mundo (como na Índia); e, no pior, conjugaram forças com fundamentalistas religiosos, como na maioria dos países islâmicos (e até certo ponto, pelo menos indiretamente, também na Índia). Realmente, torna-se cada vez mais difícil discernir grandes diferenças entre as posições dos críticos religiosos (em geral, da direita) e seculares (geralmente da esquerda) da ciência, tecnologia e modernidade na Índia e em outros países do Terceiro Mundo (op. cit., p. 86-87)”. E afirma, mais à frente, que “o clima intelectual em muitos países não-ocidentais […] não é ‘particularmente propício ao pensamento livre e à ciência’ (p. 99)”. É curioso que sejamos obrigados (nós, que somos estudantes universitários) a aturar, a toda hora, professores universitários que criticam o marxismo em favor da “descolonização do conhecimento”, o que é visto na academia como o que há de mais à esquerda na atualidade, ao mesmo tempo em que o discurso da “descolonização do conhecimento” é utilizado em ex-colônias, por forças políticas reacionárias, nacionalistas e tradicionalistas, para legitimar a supressão das liberdade de pensamento e produção científica, entre outras.

  33. Fagner Enrique,
    Agora que Narendra Modi e o partido hinduísta Bharatiya Janata estão a governar a Índia, um dos principais capitalismos emergentes, que se destaca pelo elevado nível tecnológico dos serviços electrónicos, será interessante ver como conseguirão conciliar o crescimento económico com os mitos do revivalismo hindu. Mas as ameaças decorrentes do pós-modernismo, do multiculturalismo e da noção de que a ciência seria um constructo não se fazem sentir apenas no plano intelectual. Exactamente três semanas antes da publicação desta 2ª parte do meu Manifesto, a organização islâmica Boko Haram, conhecida pelos massacres que comete, raptou mais de duzentas meninas de uma escola secundária em Chibok, no nordeste da Nigéria, declarando que as tinha tornado escravas e as ia vender em países vizinhos. Aliás, não tive conhecimento de que quer no Brasil quer em Portugal os movimentos feministas tivessem organizado concentrações de protesto contra esta escravização massiva de jovens do sexo feminino. Será pelo facto de a atrocidade ter sido cometida por uma organização, além de africana, declaradamente hostil ao eurocentrismo? É que, para quem não o saiba, o nome Boko Haram significa aproximadamente que a educação introduzida pelos colonizadores britânicos, ou seja, a educação de origem ocidental, é um pecado (quanto à complexidade desta tradução, ver aqui). Talvez agora se entenda melhor o motivo por que a escravização da totalidade das alunas de uma escola preocupou pouco aquilo que hoje se chama esquerda. É que os jihadistas do Boko Haram são, afinal, gloriosos combatentes do multiculturalismo.

  34. Fagner Enrique,
    Esqueci-me ontem de acrescentar uma coisa. Uma crítica séria ao multiculturalismo poderia começar pela polémica — convertida depois numa franca oposição — entre Cheikh Anta Diop e Léopold Senghor. De um lado uma actividade científica e o esforço por erguer as bases de uma história científica da África, do outro os mitos da négritude, um movimento antecessor do multiculturalismo. Os leitores que estiverem interessados na crítica ao multiculturalismo não deveriam deixar de estudar a figura Cheikh Anta Diop e a sua obra.

  35. Caro João Bernardo,

    Você teria um link para este texto seu?
    BERNARDO, João. Aridez e Futilidade: Parábola da mais –valia absoluta e da mais-valia relativa. Revista Educação & Sociedade, nº 51, ano XVI, 1995.

    Ficaria grato.

    Seus livros e textos sempre me provocam dores de cabeça (no bom sentido). Eles me fazem retomar reflexões e posições, muitas vezes mudando-as de direção. Exemplo: como eu pensava o artesão e a “virtuose” daquele trabalho; você me fez perceber que idealizava, que exagerei na “autonomia”, que “tirava poesia do passado”, que não se defende retomada de formas arcaicas de exploração, mesmo que pareçam “libertárias” – não são. Agradeço-lhe por isso.

    Abraço.
    Marcos Antônio.

  36. Marcos Antônio,
    Procurei e encontrei o artigo reproduzido aqui.
    Quanto ao sistema artesanal, os muitos anos que dediquei ao estudo do regime senhorial serviram-me, entre outras coisas, para perder quaisquer ilusões que ainda pudesse ter sobre a capacidade do artesão de controlar o seu processo de trabalho e os instrumentos que usava. O que hoje muita gente de esquerda — tanto de linhagem marxista como anarquista — diz sobre este assunto nada tem a ver com a história e vem em linha recta dos mitos do romantismo alemão. Quando os leio, mais parece que estou a ler Novalis.
    Um abraço.

  37. Caro João Bernardo,

    Grato pelo texto.

    Como se não bastassem as dores de cabeça intelectuais, agora está a me proporcionar algumas dores de cabeça musicais (também no bom sentido).

    Fiz algumas composições musicais, ainda não bem gravadas. Estou acertando isso com minha banda. Minhas letras são, quem sabe, revolucionárias; já com minha guitarra, quando ligada, só consigo tirar dela o “bom e velho rock ‘n’ roll”, ou o “Heavy Metal”. Não há esteticamente nada fundamentalmente novo, a não ser dentro do estilo (ou seja, não seria tão novo). Tento usar todas as técnicas que aprendi e que estou a aprender, mas minha criação passa por estruturas já criadas. Fica até difícil imaginar ou tocar algo de fato novo, numa forma nova. Enfim, eis a vida como anda e sabe-se lá o que virá doravante. Mas desejo que seja com a guitarra inclusa (ao menos por enquanto).

    Abraço.
    Marcos Antônio.

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