O governo está aproveitando os acontecimentos recentes para invocar o perigo da direita e reforçar o lado esquerdo da governação. Por Passa Palavra

Passados dez dias sobre a Revolta dos Coxinhas (leia aqui e aqui), parece-nos possível traçar um balanço.

1.

O fenômeno decisivo na Revolta dos Coxinhas foi a inversão, operada a partir de dentro, de manifestações originadas pela extrema-esquerda e que se viram, em certo ponto, sequestradas por uma massa politicamente amorfa, mobilizada por forças sociais conservadoras e pela extrema-direita graças às redes sociais, à grande mídia e à polícia. Dentre os relatos que nos chegaram, Salvador parece ter sido uma exceção nesse quadro, talvez devido à composição social da cidade, mas foi esse o processo que ocorreu nas restantes cidades de que temos notícia. E a evolução posterior dos acontecimentos, em que a extrema-esquerda retomou o controle de algumas manifestações, não permite esquecer o que se passou em 20 de Junho e nos dias imediatamente anteriores, até porque reuniram um número de pessoas muitíssimo maior do que as manifestações radicais que se lhe seguiram.

É ainda cedo para saber em que medida a Revolta dos Coxinhas terá efeitos duradouros sobre a massa até então amorfa, e, se os tiver, eles verificar-se-ão possivelmente apenas no plano eleitoral.

Quanto à extrema-direita, porém, só se ela atuar nos próximos tempos com uma inacreditável estupidez é que não se aproveitará dos acontecimentos de 20 de Junho para se reforçar organizacionalmente e para irradiar os seus temas ideológicos.

O fascismo, no entanto, parte de um enorme erro político, um erro que ditou todas as suas derrotas. O erro mortal do fascismo consiste em julgar que as democracias são regimes inerentemente débeis, incapazes de se impor perante insatisfações generalizadas e a desordem das ruas, e que só eles, os fascistas, conseguiriam implantar a ordem e a autoridade, estabelecendo uma ditadura e colocando novas elites nos lugares de comando.

Este mesmo erro — embora com sinal político inverso — está também difundido entre os grupos esquerdistas, que consideram que mais cedo ou mais tarde a democracia terá de fazer apelo ao fascismo. Sentindo que as suas formas organizacionais e as suas armas ideológicas são ineficazes perante a democracia, esses grupos esquerdistas profetizam que o fascismo está ao virar da esquina e que é melhor as pessoas apoiarem-nos desde já a eles, grupos esquerdistas, porque a democracia ou será impotente para se opor ao fascismo ou mesmo o convocará enquanto bombeiro da ordem. Mas este erro da apreciação levou a becos sem saída os predecessores desses grupos, tal como levará agora os seus herdeiros.

2.

A noção de que a democracia é um regime débil é um erro político funesto, porque a democracia tem revelado, ao longo da sua história, uma enorme capacidade de recuperação das lutas e de assimilação das contestações:

– As exigências da classe trabalhadora — povo armado, instrução para todos, oito horas de trabalho e assim sucessivamente — foram recuperadas pela democracia enquanto fatores de constituição de uma força de trabalho unificada (exército de recrutamento geral e ensino obrigatório e gratuito) e de aumento da produtividade, acelerando os ciclos da mais-valia relativa. Se a mais-valia consiste na apropriação pelos capitalistas do tempo de trabalho despendido pelos trabalhadores, então a democracia, com a sua capacidade de se apropriar das reivindicações, é o regime político mais adequado ao capitalismo.

– Na esfera social, esta assimilação das reivindicações repercute-se numa mobilidade ascendente. Mediante as burocracias dos sindicatos, e agora também dos movimentos sociais, e mediante o sistema universitário, a democracia pode absorver muitos dos trabalhadores mais inteligentes ou mais esforçados e integrá-los nas classes dominantes. A recuperação não se exerce só sobre reivindicações, mas ainda sobre pessoas.

– No plano ideológico, esta recuperação e assimilação exprime-se pela integração de antigos temas subversivos no arsenal das classes dominantes. Não temos aqui tempo para grandes divagações, por isso nos limitamos a recordar que a primeira geração de discípulos de Marx se reivindicava da social-democracia, enquanto hoje ela designa em vários países, Brasil e Portugal incluídos, partidos da direita. O mesmo sucedeu ao socialismo, que designa hoje partidos dos quais ninguém de bom senso espera medidas socialistas. O comunismo sofreu idêntica evolução, tendo servido para caracterizar o capitalismo de Estado e mesmo, no caso chinês, designando um regime misto de burocracia estatal e de empresários privados. Do mesmo modo o PT, Partido dos Trabalhadores, converteu-se em Para Todos, e com efeito Brasília consegue a proeza única de ter na sua área governativa tanto as principais centrais sindicais como os gestores das principais empresas transnacionais de matriz brasileira.

O Passa Palavra analisou a forma como estes mecanismos de recuperação se processam no Brasil em duas linhas de artigos. Por um lado, a partir do artigo «Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização», mostramos como a burocratização interna dos movimentos sociais cria um clima propício à sua recuperação pela democracia capitalista. A nossa análise deste processo incidiu sobretudo no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e em numerosos artigos partimos da história do MST para acabarmos por mostrar a sua ligação atual com o mercado e com algumas grandes empresas . Por outro lado, sobretudo no artigo «Estado e movimentos sociais», mostramos como a relação entre os grandes gestores do Estado e a burocracia dos movimentos sociais tem sido importante para o governo petista. As manobras governamentais subsequentes à Revolta dos Coxinhas indicam a ampliação e o aprofundamento deste processo.

3.

O governo está aproveitando os acontecimentos recentes para invocar o perigo da direita e reforçar o lado esquerdo da governação. E, para tanto, já avança propostas que, ao invés de tentarem conter o alcance das mobilizações através do esvaziamento ou da repressão, procuram preenchê-las e, por dentro, induzi-las para pautas e ações que devem abrir caminhos para a implantação de importantes pontos da estratégia petista.

A esse respeito, já é bastante conhecida a reunião que o ex-presidente Lula, no dia 25 do mês passado, realizou com alguns movimentos sociais mais próximos, entre eles o MST, e organizações de juventude alinhadas às diretrizes governistas. Segundo declarações dos participantes, a orientação foi de que estas entidades tomem as ruas, ao invés de recolherem-se. O que poderia causar espanto a alguém desavisado é, na verdade, a colocação em prática de um mecanismo muito mais eficiente de controle sobre o rumo dos protestos. Está em curso um claro esforço de reatar a figura de Lula e do PT aos movimentos sociais e, assim, preparar um Plano B para o caso de a presidente Dilma sofrer um desgaste de imagem que comprometa a sua reeleição. Mas pode ser mais do que isso — e é aqui que a gritaria frentista no seio dos movimentos e organizações de esquerda parece estar em sintonia com a principal medida de Dilma no âmbito governamental: o anúncio de pactos pelo restabelecimento da ordem política.

O MST Informa, de 25 de Junho de 2013, reproduz uma entrevista de João Pedro Stédile ao Brasil de Fato em que a principal figura do MST declara, a certa altura, que «o governo precisa enfrentar a classe dominante, em todos os aspectos». Este irá ser o acento tônico da demagogia de esquerda nos próximos tempos: um governo capitalista a enfrentar o capital!

Primeiramente, convém notar que saímos em desvantagem sempre que permitimos que em nossa agenda de lutas e mobilizações sejam plantados temas colocados pelo governo. Afinal, qual interesse tem a esquerda anticapitalista em debater a reforma política no plano institucional, por exemplo, se, nesta dúzia de anos em que ficamos acumulando forças e à espera do reascenso do movimento de massas, pouco ou quase nada fizemos para consolidar núcleos basistas de tomada de decisão, enraizados nos problemas concretos dos locais de moradia e trabalho? A transformação dos mecanismos políticos a que aspiram os anticapitalistas é uma construção a ser feita de cima para baixo ou de baixo para cima?

Em suma, trata-se de uma operação com duas facetas: 1) institucionalizar as manifestações conduzindo-as para temas que interessam à estratégia do PT; 2) renovar os mecanismos de ligação formal ou informal dessas mobilizações às instâncias governativas.

Se o PT conseguir levar avante esta operação, com a ajuda de um movimento social burocratizado como o MST, e do braço político deste, a Consulta Popular, a democracia capitalista sairá muito reforçada nas suas estruturas e ampliada na sua base.

4.

Perante isso tudo, em que situação fica a extrema-esquerda anticapitalista, queremos dizer, que não considera o capitalismo de Estado como uma solução para os males do capitalismo privado?

Num primeiro momento, grande parte da esquerda libertária foi vítima do mesmo pânico que se instaurou entre os partidos esquerdistas, no que mostrou acreditar tanto na gritaria alheia como na sua própria. Habituada a combater o capitalismo mediante proclamações e pontos de exclamação e a considerar uns murros na rua como se fossem uma guerra civil, entrou em histeria ao ver o outro lado soprar um balão maior do que o seu.

Depois as coisas acalmaram-se e vozes sensatas indicaram uma orientação para os próximos tempos: deixar as avenidas do centro de São Paulo e de outras cidades para os coxinhas, que têm nelas o seu habitat natural, e concentrar e apoiar o trabalho e mobilização nos bairros da periferia.

Passou então a falar-se muito das quebradas, mas é conveniente esclarecer algumas confusões.

Em primeiro lugar, a classe trabalhadora é hoje muitíssimo mais vasta do que a população dos bairros periféricos. O capitalismo contemporâneo proletarizou as antigas profissões liberais e, se os jornalistas e os sociólogos continuam a falar de classes médias, empregam um termo sem nenhum sentido econômico. O que distingue as chamadas classes médias é terem perdido a independência profissional há relativamente pouco tempo e, na esmagadora maioria, recusarem ideologicamente uma classe trabalhadora à qual economicamente pertencem. Muitos dos coxinhas inserem-se nesta definição. Essas classes médias não são senão os trabalhadores mais qualificados da mais-valia relativa e portanto, em termos marxistas — embora isto possa parecer paradoxal a quem conheça Marx só de ouvir dizer — são mais explorados do que os trabalhadores que laboram em condições de mais-valia absoluta. Quem quiser ter uma compreensão dinâmica da classe trabalhadora tem de aprender a distinguir miséria e grau de exploração, e a noção de mais-valia permite proceder a tal distinção.

Assim, quem pensa que toda a classe trabalhadora se resume às quebradas está, nas condições atuais do capitalismo, a ter uma atuação política muitíssimo nociva, porque em vez de se esforçar por unir a classe trabalhadora numa consciência comum, esforça-se por dividi-la. É precisamente isto que interessa aos capitalistas.

Em segundo lugar, as quebradas também não são um meio geográfico exclusivo de trabalhadores. O que pode notar-se diante de algumas manifestações em regiões periféricas de São Paulo é a grande participação dos coxinhas. Com exceção de alguns locais, as pautas populares muitas vezes são abafadas pelo tom ufanista das ações (veja aqui). Culturalmente e no seu comportamento, um trabalhador não qualificado de um bairro periférico sente-se muito mais identificado com um pequeno patrão morador no mesmo bairro do que com um trabalhador qualificado morador num bairro com mais status. A consciência de classe não é um dado adquirido. Resulta de lutas em comum e de um trabalho de organização e de esclarecimento baseado nessas lutas.

Com efeito, e em terceiro lugar, se miséria e ânimo anticapitalista fossem sinônimos, já há muito tempo que o mundo tinha levado uma grande volta. Há reflexões que, de tão simples, as pessoas se esquecem de fazer. Ora, pelo fato de os policiais, os guardas prisionais e os restantes agentes da repressão serem quase totalmente recrutados entre as famílias mais pobres, deveremos deduzir que quando a polícia espanca estudantes da USP ou da UNESP é o proletariado a bater na burguesia?

Os bairros de periferia, as quebradas, apontam certamente o caminho tático a seguir neste momento, mas trata-se de um trabalho e não de uma solução já pronta. E não se trata apenas de fazer o trabalho na quebrada, mas de, ao fazer isso, unificar grupos que antes estavam isolados. Em Goiânia, por exemplo, tivemos um movimento que ampliou muito seu potencial ao juntar estudantes universitários e das regiões centrais da cidade com os estudantes da periferia, que costumam ter uma revolta mais contundente com a situação do transporte. Essa unificação trouxe elementos novos para a luta, tanto de tática quanto de pauta, e quebrou velhos sectarismos entre os grupos. De igual importância foi a articulação com estudantes de instituições de ensino particulares e públicas, que também não costumam ter muita solidariedade entre si. Essa unificação e articulação só foi possibilitada pela forma horizontal de organização da luta, tanto na organização quanto na ação, e na pauta concreta comum do transporte coletivo.

As mobilizações contra o aumento das tarifas dos transportes públicos urbanos permitiram juntar uma grande parcela da classe trabalhadora. É esse esforço de congregação prática e de definição de uma consciência de classe que se torna urgente prosseguir, e tudo o que se oponha a isto deve ser resolutamente afastado.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

Lula reúne com representantes de movimentos sociais. À esquerda e em segundo plano, como convém, Pablo Capilé, gestor da empresa Fora do Eixo.

26 COMENTÁRIOS

  1. Mas afinal de contas qual é a dificuldade em unir a classe trabalhadora numa consciência comum, em unir a quebrada e o coxinha?
    Consciência comum de quê, em oposição a quê? (Presumo que haja uma oposição a algo embutida nesse processo de tomada de consciência, certo?)
    Ou seja, o que é a luta de classes num regime com enorme capacidade de recuperação das lutas e de assimilação das contestações?
    O que é classe num regime como esse?
    O que é trabalhador num regime como esse (onde ele recebe participação acionária da empresa em que trabalha, que não tem dono – o capitalista clássico -, mas capital aberto na bolsa, cujo principal acionista é … um fundo de pensão, de pensões de … trabalhadores !?)
    Os trabalhadores não estão conscientes disso?

  2. Boas perguntas, embora algumas situações aí se refiram a frações da classe. Ainda que as situações possam se generalizar.

  3. Boa análise, principalmente por salientar a questão do governo começar a dar a pauta.Quando as coisas arrefecem nas ruas a imprensa – o que inclui grande parte dos sites ditos progressistas nesse caso – se voltam novamente para o que ocorre nas instituições. Infelizmente até gente de movimento social (relativamente burocratizado) acha que a tal reforma política deve ser O campo de batalha da esquerda no momento.

    Mas comento mesmo para dizer que pelo jeito que foi escrito o trecho que colo abaixo, fica parecendo que o Passa Palavra não fez parte dessa esquerda libertária “vítima do mesmo pânico”, vide http://passapalavra.info/2013/06/79726

    “Num primeiro momento, grande parte da esquerda libertária foi vítima do mesmo pânico que se instaurou entre os partidos esquerdistas, no que mostrou acreditar tanto na gritaria alheia como na sua própria. Habituada a combater o capitalismo mediante proclamações e pontos de exclamação e a considerar uns murros na rua como se fossem uma guerra civil, entrou em histeria ao ver o outro lado soprar um balão maior do que o seu”.

  4. Exatamente, Pitaqueiro, algumas situações que apontei referem-se a uma fração de classe, mais especificamente àquela que o texto sugere deve ser unida à fração das quebradas nessa tomada de consciência que abarcaria a ambas.
    Por isso, reitero as perguntas:
    – qual é a dificuldade em unir a classe trabalhadora numa consciência comum, em unir a quebrada e o coxinha?
    – Consciência comum de quê, em oposição a quê? (Presumo que haja uma oposição a algo embutida nesse processo de tomada de consciência, certo?)
    – Ou seja, o que é a luta de classes num regime com enorme capacidade de recuperação das lutas e de assimilação das contestações?
    – O que é classe num regime como esse?
    – O que é trabalhador num regime como esse (onde ele recebe participação acionária da empresa em que trabalha, que não tem dono – o capitalista clássico -, mas capital aberto na bolsa, cujo principal acionista é … um fundo de pensão, de pensões de … trabalhadores !?)
    – Os trabalhadores não estão conscientes disso?

  5. Particularmente, creio que os trabalhadores qualificados – funcionários públicos federais, engenheiros, médicos, advogados, professores bem posicionados hierarquicamente – não ganham, a curto prazo, com a queda do capital. Por mais que sejam explorados. Alguns poucos estarão/estão dispostos, e até estranho o motivo, a trabalhar conosco neste projeto. A maioria, entretanto, vê/verá que é ruim a curto prazo (anos) e não se integrará. Assim, a maioria dos coxinhas – empregados e mesmo os futuros profissionais – não nos virão como parteiros da alternativa ao mundo que aí está, e, sim, e é lógico que assim seja, como uma loucura que vai trazer algo pior ainda. Tampouco se sentirão confortáveis em abdicar da possibilidade de subir na pirâmide social e quem sabe se tornar um legítimo explorador. Este último é muito menos inimigo deles que eu. Se isso é parecido ou não com o que Marx dizia, não é o que importa.

    Que fazer? Centrar nos trabalhadores da base da pirâmide. O problema é que o capital obviamente posicionou estes em setores que, embora importantíssimos e talvez essenciais, não são os mais fáceis de gerar desestabilização social. Posicionou-os de forma extremamente fragmentada, vide terceirização e outras táticas. Tudo fica bem mais difícil. Não satisfeito, o capital criou um mecanismo de flutuação financeira que impede que pensemos todo este processo como algo a acontecer num país ou localidade. Qualquer tática/estratégia “nacional” ou similar não poderá durar muito. Em verdade, durará bem menos que uma União Soviética da vida. A luta, mais que nunca, é global.

    Como reverter isso? O principal ingrediente é arregaçar as mangas mesmo. Não tem pra onde correr. Ação e formação com o povo criando verdadeiras relações horizontais. Cada um com seu tipo de contribuição máxima. Parte da esquerda tem o horizontalismo muito em conta, mas não consegue estabelece relações com o povo. Outra parte até consegue estabelecer relações, mas verticais, o que não pode terminar bem. Outra parte nem uma coisa, nem outra e existe pra satisfazer a alguma estranha vaidade esquerdista.

    Ficar desperdiçando tempo com atividades meramente capitalistas ou burocráticas é que não dá. Também não dá pra esperar que o PT ou Dilma resolva dar uma guinada à esquerda, pautando um “governo popular”. O espaço pra reformas à esquerda geralmente não é muito grande. No início do século passado até havia uma impossibilidade menos nítida, hoje nem isso. Os processos de internacionalização se aprofundaram bastante. Que se quer fazer com o Estado? Agora, se o interesse é apenas minorar o sofrimento dos trabalhadores, tudo bem, realmente pode-se fazer isso através da gestão do Estado. Contudo, não é um projeto que eu queira carregar.

  6. A propósito da questão dos trabalhadores qualificados — e que, aliás, de modo nenhum são apenas os mencionados por Entendi Nada — convém prestar atenção ao que escrevemos neste artigo: «O que distingue as chamadas classes médias é terem perdido a independência profissional há relativamente pouco tempo e, na esmagadora maioria, recusarem ideologicamente uma classe trabalhadora à qual economicamente pertencem». Este fenómeno de recusa ideológica foi abordado mais detalhadamente num recente artigo do Passa Palavra, «Lições do Brasil para Portugal» (http://passapalavra.info/2013/06/80169 ), em que escrevemos: «Numa sociedade escravocrata como a brasileira, aqueles estratos a que os jornalistas insistem em chamar classes médias, e que são na realidade os novos proletários qualificados da mais-valia relativa, vêem com desgosto que o crescimento económico da última década tornou os miseráveis um pouco menos miseráveis e os pobres um pouco menos pobres. Assim, no preciso momento em que foi abolida a especificidade económica das antigas classes médias, diminuiu a distância que, no plano dos rendimentos, as separa do proletariado menos qualificado. Esta conjugação de factores é a razão de fundo da revolta que anima os coxinhas. A falsa consciência aqui consiste em recusarem a noção de uma classe trabalhadora à qual gostariam de não pertencer, transformando-a num ressentimento moralista contra os de cima, acusados de corruptos, e contra os de baixo, acusados de bandidos, e pretendendo fechá-los a todos nas mesmas prisões. Ordem e moral».

  7. Acho que Gustavo leu muito as teorizações de Galbraith e o pior acreditou nelas, agora vale a pena vc dar uma lida na resposta que Meszaros escreveu em sua obra Para Alem do Capital, a classe trabalhadora não detém de forma alguma o poder nas empresas capitalistas mesmo que tais empresas negociem ações na bolsa de valores. Aliás só alguém muito alienado nunca ouviu falar de megainvestidores tais como George Soros ou Warren Buffett e ainda faz uma pergunta sobre se esses trabalhadores ainda são trabalhadores e não capitalistas é muito para mim ler tamanhas besteiras em tão poucas linhas. Por exemplo eu sou trabalhador e Soros não preciso desenhar ou preciso?? Por favor menos Galbraith e mais Meszaros.

  8. Acho que entendi. O medo é de que este movimento de cooptação, que já vem sendo apontado, se reforce com a atual conjuntura, e que a militância perca a capacidade de criticar o governo de uma vez por todas.
    OK.
    Concordo que o PT, como qualquer um que venha a ocupar governos, tenha estratagemas de dissolução de conflitos. E concordo que ceder e não conflitar é caminhar para trás.
    Discordo, ainda assim, que não faça diferença ter um governo que usa estratagemas conciliatórios e outro que manda incendiar as favelas de madrugada.
    Discordo também que o fascismo seja a única ameaça à ordem democrática. Temos terrorismo de Estado vigente na democracia, e sua proporção sim se define conforme a correlação de forças nos governos. Temos também o histórico recente de ditaduras abertas que não puderam ser caracterizadas propriamente como fascistas.
    Por fim, acredito que uma pesada dogmatização do discurso, este medo de cooptação e a patrulha ideológica contra qualquer aliança tática ou tentativa de trazer as políticas governistas para a esquerda tem contribuído ao longo dos anos apenas para a segmentação da interlocução entre aqueles que estão em busca de compreender as novas formas da luta de classes e construir as lutas.
    Fiquei muito contente com o chamado para a mobilização em prol da favela do Moinho. E tendo, de fato, a desconfiar muito da possibilidade real de um debate sério e profícuo sobre a reforma política. Mas acho que aquela crítica que se referia à temporalidade complementar entre conscientização e atuação cabe aqui. Do que se trata, afinal, de um medo de sujar as mãos? O que existe a se perder estando presentes no processo? Como se faz a história, afinal de contas? Creio que, em grande parte, se não temos acúmulo para fazer grande diferença em semelhante situação, isto se deve à nossa falta de comunicação interna enquanto esquerda. Se por um lado a dita comunicação é impedida pela burocratização de movimentos e partidos, por outro lado também se deve a seu abandono por parte dos polemizadores. Onde está a política? Onde ela pode estar? Não vejo nenhum motivo que justifique não estarmos presentes onde exista espaço para a política num sentido amplo. Mas quando tantos entre os espaços dados são considerados não apenas indignos de participação, mas também de interlocução, onde vai se construir a conversa? (A internet é um meio estranho. Aqui, nem se sabe ao certo a quem estamos nos dirigindo, não é mesmo?)
    Procurando ser mais explícita: sou apoiadora destes governos petistas porque vejo isto como um ponto tático fundamental, mas também me desespero com a falta de projeto de sociedade em discussão, com a morte paulatina da política, com o oba-oba econômico desenfreado. Só não acredito que estas preocupações possam ser conduzidas nem “por este” governo e nem por governo nenhum, porque não são prerrogativas de nenhum governo numa democracia liberal. Então, usar a política estatal para tentar manter viva a política deve ter um prazo de validade relativamente curto, mas enquanto uma das coisas a ser feitas, não deveria ser desprezada, e nem, menos, execrada.
    Acredito que por mais que critiquemos as concepções ultra-individualistas pós modernas no plano da teoria, se não conseguimos conversar politicamente com as pessoas que existem, neste mundo, estamos sendo parte delas na prática.

  9. Hidemi,
    O que menos importa aqui é o que eu leio ou deixo de ler.
    Só trouxe essas questões porque o texto, em alguma medida, apela para a necessidade de contemplar, nas lutas anticapitalistas, essa parcela dos trabalhadores que não se identifica como tal:
    Assim, quem pensa que toda a classe trabalhadora se resume às quebradas está, nas condições atuais do capitalismo, a ter uma atuação política muitíssimo nociva, porque em vez de se esforçar por unir a classe trabalhadora numa consciência comum, esforça-se por dividi-la. É precisamente isto que interessa aos capitalistas.
    E contemplá-los significa ter que encarar essas questões – que são as questões que eles trarão – sem que o estômago revire e sem mostrar grandes susceptibilidades, e saber como convencê-los que estão errados e que têm que se reconhecer como trabalhadores explorados e se unir, portanto, às demais parcelas do proletariado na luta anticapitalista.

  10. Se o problema fosse só esse eu estaria muito tranquilo, o que do ponto de vista de uma estratégia de luta mais importa hj é como conseguir a aproximação com a periferia sim, pois em uma cidade como Salvador e em um país como o Brasil pensar que uma parcela muito pequena dos trabalhadores é de suma importância para a luta é um erro tremendo. Agora se vc acha que no há possibilidade de se angariar para essa luta essa parcela da classe trabalhadora acho difícil…

  11. Concordo com você, nos termos que o Entendi Nada colocou:
    Particularmente, creio que os trabalhadores qualificados – funcionários públicos federais, engenheiros, médicos, advogados, professores bem posicionados hierarquicamente – não ganham, a curto prazo, com a queda do capital. Por mais que sejam explorados. Alguns poucos estarão/estão dispostos, e até estranho o motivo, a trabalhar conosco neste projeto. A maioria, entretanto, vê/verá que é ruim a curto prazo (anos) e não se integrará. Assim, a maioria dos coxinhas – empregados e mesmo os futuros profissionais – não nos virão como parteiros da alternativa ao mundo que aí está, e, sim, e é lógico que assim seja, como uma loucura que vai trazer algo pior ainda. Tampouco se sentirão confortáveis em abdicar da possibilidade de subir na pirâmide social e quem sabe se tornar um legítimo explorador.”
    Mas será que “
    a possibilidade de subir na pirâmide social” só se pressentifica para o coxinha?
    Desconfio que a quebrada compartilha dessa mesma percepção que o Entendi Nada descreveu muito bem, não só porque ela convive com os coxinhas diariamente – normalmente segundo relações muito civilizadas e ricas de promessas – mas porque pode obter do Estado, hoje, a possibilidade concreta dessa inserção em camadas mais altas da pirâmide social, para ficar com a metáfora do Entendi Nada, principalmente através dos filhos.
    O pragmatismo que o Entendi Nada atribui aos coxinhas – que os faz olhar para os ganhos a curto prazo e rejeitar a luta anticapitalista – também não se pressentifica, e com força, na quebrada?

  12. Boa análise e ma-ra-vi-lho-sa fotografia

    Vcs sabem que no começo do corrente ano, lá atrás em janeiro, antes dos vultuosos protestos de junho teve uma turma que a apareceu nesse local, o Instituto Lula.
    Só que não foram convidados e chegaram fora do horário comercial. Eram os assentados do Milton Santos mais uns aliado.

    O Lulão não tava lá pra chama ninguém pra rua. Apareceu lá Paulão, o Okamoto, e teve uma retórica bem distinta e nada pacífica, pra usar um dos termos do momento.

    Ameaçou o rapaziada, temendo que ações do mesmo tipo ocorressem com mais frequência. Na verdade, pediu pra sair da rua.

    “Ai se a moda pega” sentenciou o camarada Okamoto.
    Vai vendo.

  13. Concordo e discordo de algumas coisas.

    “Mas será que “a possibilidade de subir na pirâmide social” só se pressentifica para o coxinha?”

    Não, mas esse é só um dos pontos. O mais forte é que, a curto prazo, a maioria dos coxinhas, numa sociedade sem exploração do trabalho, vão perder poder de consumo, algo muito caro aos mesmos. Isso que torna mais difícil. E é isso que não acontecerá ao povo das quebradas, o qual, na verdade, tem a ganhar – obs: como a “quebrada” não é homogênea, não entendam isso ao pé da letra. O que importa é que a maioria dela tem a ganhar.

    E por isso defendo o foco “nas quebradas”.

    E, mesmo sendo verdade que a “ilusão de subir a pirâmide” vale pra ambos, isso atinge mais os coxinhas. É menos difícil para estes. Isso porque o nível de satisfação de boa parte das necessidades é alcançado com mais facilidade, o que torna o primeiro destino competitivo algo “logo ali”.

    Mas, correto, também afeta as “quebradas”. O primeiro nível de satisfação não é “logo ali”, mas dá pra chegar. Não pra todo mundo. É uma solução que não serve para as quebradas como um todo. Colocar os filhos pra competir com os coxinhas é algo praticamente impossível enquanto solução geral (atenção no ‘geral’), porém, certo é que mudar a estrutura social também aparece como algo bem difícil. Muitos, nos cálculos que qualquer pessoa faz, entenderão que talvez nenhum dos dois caminhos sejam lá muito viáveis. Muitos acharão que não valem a pena e é difícil deixar de entender isso. Por mais que tal escolha me pareça uma subestimação do poder da classe trabalhadora, vale dizer.

    Finalizando, meio estranha essa categorização, “quebrada e coxinha”, mas talvez esteja dando pra entender. Resolvi aderir pra faiclitar o debate. È possível que eu não esteja me expressando da melhor maneira todavia.

  14. Para mim este foi o melhor texto do PP a respeito dos movimentos de protesto em curso no Brasil. Percebe-se uma firmeza nas linhas gerais adotadas até aqui, somada à assimilação de críticas, ou à realização de uma autocrítica. Além do mais, contrariando uma tendência que costuma-se encontrar aqui quando de análises conjunturais, há indicações de caminhos a serem trilhados – como quando os companheiros relatam a experiência de Goiânia -, o que evita o imobilismo.

    Minha única crítica dirige-se à análise da postura adotada por algumas organizações dos movimentos sociais, em especial o MST, como se eles estivessem sendo simplesmente pautados pelo PT. Ora, a paralisação geral convocada para o dia 11/07 pelas principais centrais sindicais e pelo MST, por exemplo, tem como pauta bandeiras históricas da esquerda, como a redução da jornada de trabalho, a reforma agrária e a reforma urbana (além de outras mais “contemporâneas”, como a tarifa zero). Embora possam ser assimiladas por um governo capitalista e reforçar a democracia burguesa, conquistas desse tipo (caso sejam conquistadas) são conquistas dos trabalhadores em todas as esferas, e tendem a reforçar muito mais a consciência de classe do que aprofundar divisões. Pode muito bem ser que as manifestações do dia 11 sejam um fracasso, mas se por acaso pusermos 100.000 pessoas nas ruas de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, podem estar certos de que não serão apenas os trabalhadores orientados pelas centrais sindicais, mas também os precários da juventude, numa demonstração de forças da esquerda sem paralelo nas últimas duas décadas. O que corrobora a minha interpretação de que ter colocado um milhão de coxinhas nas ruas foi uma vitória tão grande quanto (ou maior) da esquerda do que da direita, por ter recolocado a percepção de que as mobilizações proporcionam conquistas concretas.

  15. Acaba de ser publicado no jornal The New York Times – tanto é que até esse momento, perto das 18 horas no horário brasileiro, nenhum órgão de imprensa deste país ainda se manifestou sobre o tema – um artigo de Luís Inácio Lula da Silva sobre os protestos de junho.

    É a primeira vez, desde que todo esse conflito se iniciou, que Lula se reporta ao assunto. E, como todos podem conferir na reportagem publicada no El País comentando o artigo (ou, ainda melhor, lendo o próprio artigo no NYT), Lula defende que as manifestações são importantes para fortalecer a democracia no país, já que elas cobram maior transparência institucional e o fim do divórcio hoje existente entre o poder político e o povo. E é justamente por esse motivo que Lula defende que o PT deve se modernizar para entender essas reivindicações e continuar o processo de modernização do Brasil.

    http://internacional.elpais.com/internacional/2013/07/17/actualidad/1374077736_180837.html

    Certo. Agora retomem o fôlego e releiam novamente o artigo do Passa Palavra. Não é coincidência – e mostra muito bem como os gestores de esquerda estão dispostos a ser valer das manifestações.

  16. Este artigo, que o colectivo Passa Palavra escreveu e publicou no rescaldo das manifestações de Junho, parece-me inteiramente confirmado por alguns acontecimentos recentes.
    Gilberto Carvalho, o indispensável chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, declarou no dia 30 de Outubro que «o governo, sozinho, sabe que não dá conta» da violência nas recentes manifestações. Para ajudarem o governo a resolver essa situação, Gilberto Carvalho convidou para conversações em Brasília alguns movimentos sociais, entre os quais destaco as Mães de Maio. O leitor pode ver aqui a notícia completa:
    http://www.estadao.com.br/noticias/geral,governo-nao-da-conta-da-violencia-urbana-diz-carvalho,1091466,0.htm
    Não me parece ocasional que, entretanto, o prof. Boaventura Sousa Santos tenha convocado, também para Brasília, neste fim de semana, a sessão de lançamento de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais. O objectivo é aquele que o prof. Boaventura Sousa Santos sempre tem prosseguido, o de reforçar a burocratização interna dos movimentos sociais e consolidar a sua inclusão nas instituições capitalistas e na área governista.
    Por outro lado, e reflectindo declarações de Gilberto Carvalho que podem ser lidas aqui
    http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,governo-dilma-quer-abrir-dialogo-com-black-blocs-,1091052,0.htm
    a Polícia Militar de São Paulo decidiu encetar uma intervenção activa nas redes sociais, nomeadamente usando o Facebook, para tentar isolar os Balck Blocs e operar uma aliança entre a polícia e os manifestantes mais moderados. O coronel que comanda a Área Centro da PM de São Paulo disse também que nas ruas, no decurso das manifestações, será dado prosseguimento a essa tentativa de ligação da polícia aos manifestantes moderados, para tentar isolar os violentos. Podem ler aqui a notícia completa:
    http://www.estadao.com.br/noticias/geral,pm-de-sao-paulo-usa-a-internet-para-isolar-black-blocs,1090556,0.htm
    Desde a iniciativa do prof. Boaventura Sousa Santos, prevista para este fim de semana, até à nova estratégia definida pelo coronel da PM, passando pela participação das Mães de Maio numa reunião destinada a apresentar ao governo «sugestões para diminuir a violência urbana», as autoridades ampliam a táctica já descrita neste artigo do Passa Palavra.

  17. João

    Como você próprio ensinou a esquerda serve, grandemente, para fornecer novos quadros ao poder. E segue a roda: a pobraiada vai tomando tiro e paulada para os brancos universitários da esquerda irem fazer reuniões em Brasília, vão criando contatos e contatos e a carreira vai sendo construída.

    Movimento social hoje é um bom mercado.

  18. Curioso: na foto ali do Lula com os movimentos sociais não tem um negro. Como pode?

  19. Caras Mães de Maio,
    Lamentamos não ter recebido nenhum comentário vosso, que em todo o caso publicaríamos. Agradecemos que o enviem novamente.
    Cordialmente,
    Passa Palavra

  20. Caro companheiro João Bernardo,

    Ainda não tivemos tempo nem condições de fazer um relato detalhado e um balanço, sob nossa perspectiva, do histórico dessa reunião à qual você se refere – em razão de uma semana bastante pesada em São Paulo com os assassinatos de Severino, Douglas e Jean, além da recente e repugnante criação do “Núcleo Estratégico” entre MJ, SSP-SP e SSP-RJ. Pretendemos fazer isso daqui até a semana que vem.

    No entanto, pra contribuir com a reflexão que você propõe, adiantamos desde já alguns documentos já tornados públicos na véspera da reunião, além de dois dos mais importantes documentos – com exigências emergenciais – que entregamos aos ministérios que participaram do encontro.

    Seguem abaixo para a sua consideração crítica (e de todos leitores daqui), e para aprofundamento do debate proposto por você.

    Saudações a ti e a tod@s Compas do PP,

    Movimento Mães de Maio
    Rede Nacional de Familiares e Amig@s de Vítimas do Estado Democrático

    Sobre a reunião:

    REDE NACIONAL DE FAMILIARES E AMIGOS DE VÍTIMAS DO ESTADO DEMOCRÁTICO IRÁ À BRASÍLIA PRA REUNIÃO NA SEC. GERAL DA PRESIDÊNCIA + MINISTÉRIOS!

    Nesta Quarta-feira, a partir das 9:30hs, a Rede Nacional de Familiares de Vítimas do Estado se reunirá em Brasília com a Secretaria Geral de Presidência (Gilberto Carvalho)+ Ministros da Justiça (José Cardozo), Direitos Humanos (Maria do Rosário) e Igualdade Racial (Luiza Barrios)

    Não iremos sozinh@s. Além de Mães e Familiares diretos de Vítimas de 7 estados do Brasil (Paraíba, Goiás, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), vamos acompanhad@s de outr@s guerreir@s que sempre caminharam lado-a-lado, e vamos levar a COMOÇÃO, A REVOLTA E A SOLIDARIEDADE DE TOD@S QUE ACOMPANHAM A NOSSA CAMINHADA DE ANOS A FIO.

    Sentaremos, pela primeira vez, com o Ministro Secretário Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho; a Ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário; o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo; e a Ministra de Igualdade Racial, Luiza Barrios. Além de uma série de assessores, secretarias e demais departamentos desses Ministérios. A idéia é se avançar em medidas concretas e emergenciais para o “Enfrentamento da violência nas periferias urbanas do país”.

    Nós vamos com um VERDADEIRO DOSSIÊ, com muitas informações e dados atualizados, de todos os estados, sobre o persistente GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO PRETA, POBRE E PERIFÉRICA PRATICADO, FUNDAMENTALMENTE, POR AGENTES DO PRÓPRIO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – EM ESPECIAL AS POLÍCIAS MILITARIZADAS. São inúmeros dados, provas, documentos e análises que não deixam qualquer dúvida sobre a profundidade, centralidade e legitimidade de nossas causas: pela Vida, por Verdade, Justiça e Paz!

    Dados atualizados e inéditos, como uma lista com quase 10.000 mortes promovidas só por Policiais Militares do estado de São Paulo do segundo semestre de 1995 a Agosto de 2013, sendo 4.996 apenas de 2005 para cá. Ou a lista nominal com 101 jornalistas e demais profissionais da comunicação agredidos pela Polícia durante os protestos de 11 de Junho até 21 de Outubro de 2013 em todo Brasil.

    OS 9 PONTOS DE PAUTA PROPOSTOS PELA REDE NACIONAL DE FAMILIARES FORAM OS SEGUINTES:

    A – Medidas que apontem avanços para o Fim da Violência Policial e a Desmilitarização das Polícias no Brasil – demais áreas envolvidas: Secretaria de DH, Secretaria da Juventude (Programa Juventude Viva) e Ministério da Justiça

    B – Medidas que fortaleçam o Controle Externo (Autônomo, Popular e Efetivo) pela sociedade civil da atividade policial e judicial, bem como a Autonomia das Perícias Criminais; demais áreas envolvidas: Secretaria da Juventude (Programa Juventude Viva), Defensoria Pública da União, Secretaria de DH e Ministério da Justiça;

    C – Fortalecimento da Defensoria Pública da União e das Defensorias Públicas Estaduais (com Autonomia), e de outros mecanismos de Assessoria Jurídica Popular; demais áreas envolvidas: Defensoria Pública da União, Secretaria de DH e Ministério da Justiça;

    D – Avanço nos Mecanismos de Combate à Tortura (incluindo limitações às armas menos letais), a melhoria das condições das prisões e instituições de medidas sócio-educativas, começando por MUTIRÕES CARCERÁRIOS que avancem no desencarceramento imediato das pessoas injustamente presas do país (provisórios tornados permanentes; semi-aberto presos em regime fechado etc); demais áreas envolvidas: Secretaria de DH, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, e, neste caso, especialmente Presidência da República, SEPPIR;

    E – Aceleração de medidas para a federalização (deslocamento de competência) dos Crimes de Maio de 2006 no estado de São Paulo, e o avanço no Direito à Memória, Verdade e Justiça para as vítimas do Estado da Ditadura e de HOJE (com a possível criação de uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça para os Crimes do Estado Democrático); demais áreas envolvidas: Comissão Nacional da Verdade, Secretaria de DH, Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, e Ministério da Cultura;

    F – Criação emergencial de uma Política Nacional de Reparação Integral às Vítimas Torturadas e às Famílias de Vítimas do Estado Brasileiro (reparação psíquica, moral, física e material); demais áreas envolvidas: Secretaria de DH, Ministério da Justiça, Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde e, neste caso de articulação interministerial, Secretaria Geral da Presidência da República, Secretaria Especial da Mulher;

    G – Reparação Emergencial à Famílias Vítimas de Incêndios em Favelas e de Operações Saturação/Despejos Violentos com Repressão Estatal/Policial pelo País – demais áreas envolvidas: Ministério das Cidades, Caixa Econômica Federal, Ministério do Desenvolvimento Social e Ministério da Saúde;

    H – Medidas emergenciais para assegurar a Democratização, o Direito e a Garantia da Plena Liberdade de Imprensa para todos Profissionais das Comunicações, assegurando a integridade física, psíquica e moral de Profissionais da Comunicação e demais Comunicadores Populares em cobertura de atuação policial – demais áreas envolvidas: Secretaria de Direitos Humanos (CDDPH), Ministério da Justiça e Ministério das Comunicações;

    I – Contra a Redução da Maioridade Penal, pelo Aumento da “Melhoridade” Cultural: Ampliação e Fortalecimento de Políticas Públicas Educacionais e Culturais diretamente aos Coletivos de Cultura de Artistas e Jovens Pobres, Pretos e Periféricos produtores de Samba, Hip-Hop, Saraus, Literatura Periférica e Cultura Popular. demais áreas envolvidas: Ministério da Cultura, Ministério da Educação e Secretaria da Juventude (Programa Juventude Viva);

    Uma espécie dos nossos R$ 0,20 centavos.

    O Governo Federal nos enviou um conjunto de Políticas que afirma estar desenvolvendo, ou pretendendo desenvolver, no que tange ao “Enfrentamento da Violência nas Periferias Urbanas”. Nós as recebemos, as lemos, estudamos uma a uma, e estamos fechando coletivamente as nossas análises, considerações, propostas e contra-propostas.

    Estarão presentes amanhã de nossa Rede Nacional:

    • Débora Maria da Silva (Mães de Maio – Santos)
    • Deize Carvalho (Rede Contra Violência – RJ)
    • Michelle Lacerda (Família do Amarildo – Rio de Janeiro)
    • Hamilton Borges Walê (Quilombo X e Reaja – BA)
    • Eronilde da Silva Nascimento (Comitê Contra Violência Policial – Goiânia-GO)
    • Rosa Maria Holmes (Mães de Paz – João Pessoa-PB)
    • Luís Inácio – Lulinha (Fejunes – Espírito Santo)
    • Fernanda Vieira de Oliveira (Antiprisional Brigadas – BH)
    • Representante de Jornalistas Perseguidos (Jornalistas – São Paulo)
    • Milton Sales (Favela do Moinho e MH2O – São Paulo)
    • Catarina Pedroso (Margens Clínicas – São Paulo)
    • Rodolfo Valente (Rede 2 de Outubro e Instituto Práxis – São Paulo)
    • Danilo Dara (Mães de Maio – São Paulo)
    • Dr. Antônio Mafezolli (Assoc. Nacional de Defensores e Defensoria Pública – São Paulo)

    NÓS PRETENDEMOS VOLTAR DE BRASÍLIA NÃO APENAS COM PROMESSAS E SINALIZAÇÕES VAGAS, MAS COM MEDIDAS EMERGENCIAIS E UM PLANEJAMENTO CONCRETO DE MUDANÇAS PROFUNDAS. UM PLANO DE TRABALHO CONCRETO A SER DESENVOLVIDO, DE FORMA RÁPIDA E CONSISTENTE, E ENCAMINHADO A TODAS AS DEMAIS AUTORIDADES COMPETENTES. A COMEÇAR PELA PRÓPRIA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF, COM QUEM DEVEMOS NOS REUNIR NA SEQUÊNCIA.

    Nossa Rede Nacional Autônoma de Familiares de Vítimas da Violência do Estado, e todos os trabalhadores e trabalhadoras da sociedade brasileira hoje, esperamos mudanças urgentes e efetivas no que tange à prevenção efetiva da violência sistemática de agentes do estado contra a nossa própria população; o fim das prisões abusivas (hoje são mais de 560.000 pessoas encarceradas no país), torturas (incontáveis casos cotidianos), execuções sumárias e desaparecimentos forçados (atualmente são cerca de 60.000 homicídios/ano no país), em sua maioria, praticados por agentes diretos ou indiretos do estado de direito; e a garantia do Direito à Memória, à Verdade, à Justiça e à Reparação Plena das Vítimas e Familiares (Co-Vítimas) da Violência do Estado Democrático.

    Uma ampla Política Nacional de Reparação Plena (física, moral, psicológica e material) às Vítimas e aos Familiares (Co-Vítimas) é uma das medidas emergenciais que nós, atualmente destruídos física-moral-psíquica-e-materialmente, NECESSITAMOS voltar de Brasília com algum tipo de avanço concreto imediato. Entre outras várias questões detalhadas na pauta acima, e nos documentos a seguir.

    Ao longo das próximas horas e dias tornaremos PÚBLICAS todas as informações, dados atualizados, propostas e projetos de lei concretos apresentados por nós, bem como a dinâmica e os resultados desta reunião histórica de Quarta-Feira (30/10), às 9h30, na Secretaria Geral da Presidência da República.

    SEGUIMOS MAIS FIRMES DO QUE NUNCA NA LUTA!

    CONTRA O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO PRETA, POBRE E PERIFÉRICA!

    PELO DIREITO À MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA, REPARAÇÃO E LIBERDADE AO NOSSO POVO!

    MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
    REDE NACIONAL DE FAMILIARES E AMIGOS DE VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

    +

    AGENDA PARA A POLÍTICA PRISIONAL: POR UM PROGRAMA NACIONAL DE DESENCARCERAMENTO E DE ABERTURA DO CÁRCERE PARA A SOCIEDADE

    Como se sabe, o Brasil ostenta o nada honroso quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária no mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia), com mais de 550 mil pessoas presas. Entre 1992 e 2012, a população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 30% (IBGE).

    Conjuga-se gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação do sistema prisional, consubstanciada na violação dos direitos mais básicos da população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente 20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior taxa de ocupação prisional (172%) entre os países considerados “emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis por fiscalizar as unidades prisionais.

    Ao caráter massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca de80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe sociale territórios daquelas que, historicamente, estão às margens do processo civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.

    A seletividade penal tem ainda outro viés, mais grave e violento: a criminalização das mulheres. Apesar de o número de mulheres presas corresponder a cerca de 8% do total da população carcerária, sabe-se que, nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres presas contra aumento de aproximadamente 105% de homens presos.

    O caráter patriarcal do sistema penal revela traços extremamente cruéis e sintomáticos do machismo elevado à máxima potência.

    O recrudescimento da população prisional feminina deriva da assunção por centenas de milhares de mulheres pobres (quase sempre negras) de trabalhos precários e perigosos na cadeia de comercialização de psicotrópicos, tornando-as principal alvo da obtusa guerra às drogas, eis que mais expostas e vulneráveis.

    Bom lembrar que a maioria esmagadora das mulheres presas por tráfico de drogas é composta por pequenas comerciantes ou mesmo por meras usuárias (fenômeno também observado entre os homens) e que não são raros os casos de separação violenta e ilegal dessas mulheres de seus filhos . Também não são raros os casos de mulheres que, presas durante a gravidez, ou perdem a criança por falta de cuidados médicos, ou dão à luz algemadas!
    É de se mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como prática estatal para penalizar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.

    O contato com a realidade do sistema penal, como se percebe, traz a clareza de que há evidente processo de criminalização patriarcal da maternidade e da ocupação do espaço público por mulheres.

    A todas essas mazelas, adiciona-se ainda mais uma: a violação sistemática do direito fundamental à presunção de inocência. Ninguém ignora que, juridicamente, somente é culpada aquela pessoa que, acusada pelo cometimento de determinado crime, teve direito a um processo justo e a todas as vias recursais até que a condenação se torne definitiva. Na prática, todavia, prevalece a punição antecipada, configurada na verdadeira farra das prisões cautelares: cerca de 43% da população prisional brasileira ainda não tem condenação definitiva! Em outros termos, quase metade da população prisional brasileira é juridicamente inocente!
    O quadro apresentado sintetiza um pouco dos horrores do sistema prisional brasileiro, mas é insuficiente para traduzir o que apenas o contato direto com a realidade pode ensinar: cárcere não é lugar de gente.

    O Supremo Ministro, então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Excelentíssimo Sr. Cezar Peluso, já criticara em março de 2011 o sistema penitenciário do país e chegou a comparar algumas prisões às “masmorras medievais”. “Isso é um crime do Estado contra o cidadão brasileiro”, disse ele, durante seminário de segurança pública promovido pela Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) . O próprio atual Ministro da Justiça assumiu publicamente isto, pouco tempo depois de assumir o posto que ainda ocupa: “Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisão nossa, eu preferiria morrer”, disse durante um encontro com empresários paulistas, fazendo a mesma alusão ao caráter de “terríveis masmorras medievais” das prisões brasileiras .

    Em face do nítido caráter seletivo, classista e racista do sistema penal, cumpre a um Governo que se quer comprometido com as camadas populares, com as pessoas mais humildes e exploradas desse país, envidar todos os esforços para reverter o processo de encarceramento em massa e pôr freios ao sistema penal.

    É necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as “veias abertas” do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos enquanto houver prisões.

    Nesse sentido, para além das medidas apresentadas na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas” atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos, composto pelas seguintes diretrizes:

    1 – REVOGAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE APOIO AO SISTEMA PRISIONAL

    O cerne do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado em meados do segundo semestre de 2011, é o empenho de cerca de 1 bilhão e 100 milhões de reais para a construção de novas unidades prisionais em todo o país, com duas metas principais: “zerar o déficit de vagas feminino e reduzir o número de presos em delegacias de polícia, transferindo para cadeias públicas”.

    Tal Programa, no entanto, é manifestamente equivocado. Ainda que atingidas as metas do plano (construção de 42,5 mil novas vagas), sequer se supriria, por exemplo, o déficit carcerário do Estado de São Paulo, de cerca de 90 mil vagas em 2012 e que, a cada mês, tem o acréscimo, em média, de 10.000 pessoas inclusas (contra cerca de 6.000 egressas).

    A superlotação não deriva da ausência de políticas para a construção de presídios (nos últimos 20 anos, o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil vagas prisionais), mas sim, bom iterar, das prisões abusivas, ilegais e discriminatórias executadas contra as pessoas mais pobres desse país e do exagerado investimento em políticas repressivas em detrimento de políticas sociais.

    A construção de presídios não apenas é inábil ao objetivo de aplacar a superlotação carcerária, como também serve de fomento às prisões. De acordo com David Ladipo, pesquisador do sistema prisional estadunidense, “quando as prisões estão superlotadas, há maior pressão sobre os juízes para serem mais seletivos na imposição de sentenças de encarceramento. Quando a capacidade das prisões aumenta, parte dessa pressão diminui” .

    O Governo Federal deve imediatamente cessar qualquer política de construção de presídios para priorizar políticas que, de fato, são aptas a equacionar os principais problemas atinentes ao sistema carcerário.

    O “Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” é um erro e reclama urgente revogação, sob pena de contribuir ainda mais para a expansão do sistema e da população prisionais.

    2 – PACTO REPUBLICANO PARA CONSTRUÇÃO DE PLANO PLURIANUAL DE REDUÇÃO DA POPULAÇÃO PRISIONAL E DOS DANOS CAUSADOS PELA PRISÃO

    No lugar de um programa com metas para a construção de presídios, propõe-se pacto republicano entre os três poderes e entre os entes federativos para a construção de metas voltadas à redução da população prisional e de suas mazelas e à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos.

    No que toca à redução da população prisional e de suas mazelas, bom lembrar que o Governo Federal conta com importante expediente para impulsionar a redução da população prisional: o indulto. Trata-se de prerrogativa constitucional atribuída à Presidência da República (conforme artigo 84, XII, CR) que deve ser mais amplamente utilizada para enfrentar o encarceramento em massa, a exemplo da corajosa proposta recentemente apresentada pelo Presidente italiano para liberar 24 mil presos do também superlotado sistema prisional da Itália .

    É de extrema importância, ademais, a inclusão do sistema prisional entre as prioridades nas políticas de ampliação de oferta de vagas de ensino e de aumento do número de médicos em locais carentes, considerando, inclusive, a chegada de profissionais estrangeiros, no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa “Mais Médicos”.

    Com relação à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos, sugere-se que a construção das metas seja guiada pelos seguintes pontos elencados pela Pastoral Carcerária (anexo 1): 1) levantamento prévio e detalhado da situação, das necessidades e das dificuldades encontradas pelos egressos, bem como consultas democráticas e construção participativa de políticas voltadas para essa população; 2) implementação de trabalho de conscientização territorial e comunitário a fim de superar os efeitos danosos causados pelo encarceramento; 3) integração dos diversos componentes territoriais em rede; 4) programa integral de atenção aos egressos individualizado, respeitando os distintos grupos sociais e com políticas voltadas para as minorias; 5) respeitar as especificidades do atendimento das mulheres egressas; 6) garantia de célere atendimento à pessoa egressa, de preferência já no limiar de sua saída; 7) formação adequada das polícias e outros agentes de segurança pública para que saibam como trabalhar com esta população; e 8) produção permanente de dados e acompanhamento das políticas implementadas.

    Ainda no âmbito da política para pessoas egressas, vale replicar importante apontamento do documento da Pastoral Carcerária (anexo 1):

    “Trata-se de uma questão da qual o Plano Juventude Viva, que busca reduzir os índices de vulnerabilidade e, consequentemente, de mortalidade da população jovem e negra nas cidades brasileiras não pode se furtar, já que a passagem pelo sistema prisional aumenta a vulnerabilidade da pessoa e retira, ainda mais, sua dignidade e sua cidadania.”

    O Plano Plurianual de Redução da População Prisional e dos Danos Causados Pela Prisão aqui proposto poderia ser pactuado e reajustado anualmente, observados o permanente acompanhamento das políticas de atendimento às pessoas egressas e a realização de visitas conjuntas a todas unidades prisionais do país, com a garantia ampla participação da sociedade civil, a fim de detectar o cumprimento de suas diretrizes, de promover a liberação de pessoas presas ilegalmente e de identificar, apurar e sanar eventuais violações de direitos.

    3 – ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS PARA A MÁXIMA LIMITAÇÃO DA APLICAÇÃO DE PRISÕES CAUTELARES

    Como já afirmado, apesar de vigorar no Brasil o princípio constitucional da presunção de inocência, cerca de 43% da população prisional ainda não tem condenação definitiva. Os mutirões empolgados pelo CNJ têm demonstrado, reiteradamente, o excessivo número de prisões ilegais e abusivas.

    Nesse contexto, é fundamental que o Governo se empenhe em articular, junto à sua base aliada no Congresso Nacional, alterações legislativas que abarque, no mínimo: a) a exclusão das hipóteses de decretação de prisão preventiva “como garantia da ordem pública ou da ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato” e “diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas hipóteses são retrocessos inclusos no PLS 156/2009); b) a ampliação dos casos em que a decretação da prisão preventiva é vedada; c) a redução do prazo máximo da prisão preventiva prevista no anteprojeto de Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional – PLS 156/2009 (de acordo com o qual a prisão preventiva poderá perdurar por até 720 dias).

    4 – CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DO USO E COMÉRCIO DE DROGAS

    No âmbito da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, alega-se, na defesa do programa “Crack é Possível Vencer”: Embora a violência urbana não seja resultante exclusivamente do uso abusivo de drogas e de seu comércio, ela esta intimamente relacionada com esta agenda.

    A asserção é parcialmente verdadeira. A violência urbana, na verdade, não está intimamente ligada com o uso e o comércio de drogas, mas, mais precisamente, com a criminalização do uso e do comércio de drogas.

    De acordo com Maria Lúcia Karam , a criminalização do comércio de drogas, longe de inibi-lo, carreia à sociedade o “subproduto” da violência: seja para enfrentar a repressão, seja para resolver conflitos de concorrência, os comerciantes de drogas têm na violência o meio necessário para garantir seus negócios.

    De outra perspectiva, a política de “guerra às drogas” traz impactos imensos ao sistema carcerário e é determinante na construção de carreiras criminais entre jovens pobres das periferias.

    O número de pessoas presas por tráfico mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de 31.520 para 115.287.

    O modelo atual (cujo marco legal é a Lei 11.343/2006), além de não atingir o objetivo de evitar a utilização de entorpecentes, agrava o problema, eis que as pessoas presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: pessoas pobres (geralmente primárias), residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício.

    Conforme já apontado, a política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata das mulheres: mais do que a metade da população prisional feminina é composta de mulheres acusadas por crime de tráfico de drogas.

    Já passa do tempo de romper com a deletéria guerra estadunidense contra as drogas (e, por via oblíqua, contra os periféricos) e elevar o enfrentamento aos efeitos nocivos do uso de entorpecentes ao patamar de política de saúde e de educação públicas.

    5 – CONTRAÇÃO MÁXIMA DO SISTEMA PENAL E ABERTURA PARA A JUSTIÇA HORIZONTAL

    Para Luigi Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza” .

    Adotar o parâmetro do Direito Penal mínimo denota, portanto, o estabelecimento de caminhos os mais estreitos para o sistema penal, de tal modo que ele não transborde as limitações constitucionais e legais cuja aplicação poderia lhe emprestar alguma legitimidade.

    Nesse sentido, em vista da existência de dois anteprojetos de Código Penal em debate nas duas Casas Legislativas e da necessidade de restringir a pena de prisão ao menor número de casos possível, pleiteia-se empenho do Governo para a abolição da pena de prisão: nos crimes de menor potencial ofensivo; nos crimes punidos com detenção; nos crimes de ação penal de iniciativa privada; nos crimes de perigo abstrato; e nos os crimes desprovidos de violência ou grave ameaça.

    Faz-se necessária, ademais, mudança na regra geral estampada no artigo 100, § 1º, do Código Penal, pela qual, salvo disposição contrária (e são raras as disposições contrárias), a ação penal é pública e incondicionada.

    No tópico relativo à “Justiça Comunitária” da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, firma-se o objetivo de “estimular comunidades a construir seus próprios caminhos para a realização da Justiça, de forma pacífica e solidária”.

    No entanto, enquanto viger a regra geral do artigo 100, § 1º, do Código Penal, a vítima e sua comunidade, no mais das vezes, terão sempre papéis irrelevantes na condução do processo institucional de responsabilização. Quando muito, servirão de prova testemunhal, cujas vontades e necessidades são desprezíveis no âmbito do processo penal.

    Com o fim de minimamente descongestionar os espaços amplamente ocupados pelo sistema penal vigente, convém alterar a redação do artigo 100, § 1º, do Código Penal para inverter a regra geral: a ação penal passa a ser pública condicionada, salvo disposição contrária. De modo que a pessoa lesada, sempre que se sentir contemplada por outros meios de construção de justiça, poderá abdicar da intervenção penal.

    Raciocínio homólogo vale para o sistema penal juvenil. Apesar de já contar com dispositivo que tem aberto relativo espaço para a aplicação de práticas restaurativas (artigo 126 do ECA e artigo 35 do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), o procedimento depende da discricionariedade do Ministério Público e nada tem de horizontal ou comunitário, vez que ainda institucionalizado e, portanto, submetido ao peso e à verticalidade da jurisdição. Melhor seria que os processos para a apuração de ato infracional dependessem, igualmente, de expressa manifestação da pessoa lesada.

    Assim, facultada à pessoa lesada a decisão por representar ou não para a promoção da ação penal ou infracional, possibilita-se a abertura de canais comunitários de resolução consensual e não punitiva do conflito. Obviamente, caso seja promovida a representação, a pessoa acusada, ora perante o poder-dever de punir do Estado, deverá ser provida de todas as garantias fundamentais do devido processo legal.

    Ainda no campo de possíveis alterações do Código Penal, é de se reforçar o repúdio às atuais tentativas de tipificar o crime de terrorismo, tendencialmente entornadas à criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, reforçamos integralmente o teor do Manifesto de repúdio às propostas de tipificação do crime de Terrorismo, assinado por mais do que 130 organizações e movimentos sociais (anexo 2).

    6 –AMPLIAÇÃO DAS GARANTIAS NA LEP

    A Lei de Execução Penal, por sua vez, também reclama reforma, especialmente para conformá-la à Constituição da República.

    Nesse sentido, alguns aspectos deveriam ser considerados: judicialização de todos os procedimentos relativos ao cumprimento de pena; regulamentação da revista de visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”; ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar, tornando-a instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas; revogação do regime disciplinar diferenciado; redução dos lapsos temporais; exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”) para a progressão de regime e para a concessão do livramento condicional; fortalecimento do poder judicial de interdição de unidades prisionais; e detalhamento da atribuição judicial (artigo 66, VII) para a apuração de tortura, maus-tratos e outras graves violações a direitos fundamentais da pessoa presa.

    Necessário, ademais, seja promovida alteração na LEP para garantir os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, conforme previsão do Eixo I, item 11, do “Acordo de Cooperação para Melhoria do Sistema prisional”.

    O PL 7977/2010, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, é importantíssimo, mas, a nosso ver, reclama alguns reparos, nos termos das sugestões enviadas alhures e que ora reapresentamos (anexo 4).

    7–AINDA NO ÂMBITO DA LEP: ABERTURA DO CÁRCERE E CRIAÇÃO DE MECANISMOS DE CONTROLE POPULAR

    Atualmente, o acesso ao cárcere é quase que circunscrito às atividades de assistência religiosa e, de maneira completamente precária e instável, a atividades acadêmicas e humanitárias, sempre dependentes da autorização do Poder Executivo.

    No artigo 4º da Lei de Execução Penal, dispõe-se: “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”.

    Interpretada a partir dos fundamentos constitucionais e dos objetivos fundamentais inscritos nos artigos 1º e 3º da Constituição da República, a expressão “cooperação da comunidade” deve ser compreendida como abertura ao envolvimento da comunidade na equação dos danos produzidos pelo conflito e pela pena, com a possibilidade de restabelecer os laços da pessoa presa com a sua comunidade no decorrer do cumprimento da pena de prisão.

    Há dois outros dispositivos contidos na LEP que também poderiam ser aplicados a fim de promover a abertura do cárcere para a sociedade: 1) no artigo 23, VII, a atribuição de “orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima”, conferida ao serviço de assistência social, fornece fundamentos suficientes para as equipes de serviço social se empenharem na construção de espaços de encontro da pessoa presa com a pessoa ofendida; 2) no artigo 64, I ,abre-se a possibilidade de o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer marco normativo que regulamente e amplie o acesso ao cárcere pela sociedade.

    No entanto, é fundamental encampar reformas na LEP conducentes à abertura crescente do cárcere à sociedade, com a inclusão da assistência humanitária no rol do artigo 11 e a regulamentação de visitas ao cárcere pela sociedade.

    Outra importante medida a ser adotada nacionalmente é a obrigatoriedade da criação de Ouvidorias Externas e Independentes, capitaneadas por membros externos à carreira pública escolhidos no âmbito da Sociedade Civil. Apesar de convencionada na Meta 3 do Plano Diretor do Sistema Penitenciário (2008), são poucos os Estados que implementaram Ouvidorias Externas e Independentes do Sistema Prisional.

    8 – VEDAÇÃO À PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL

    É intolerável, absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à iniciativa privada.

    Em primeiro lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da República e parte, portanto, dela.

    Como bem assinala José Luiz Quadros de Magalhães: “para privatizar o Estado e suas funções essenciais privatizando, por exemplo, a execução penal, teríamos que fazer uma nova Constituição” .

    Por outro lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse. A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina, no limite, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR).

    Para além da inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a pena alheia.

    Ora, parece de todo óbvio que a iniciativa privada não explorará o sistema prisional (ou qualquer outro “ramo” que o Estado permita explorar) sem que lhe seja permitida a extração de taxa de lucro, o que, ao que tudo indica, fará recrudescer os custos com o aprisionamento.

    No mesmo sentido, é pedagógico o alerta de Antônio Carlos Prado, Editor Executivo da Revista Isto É, em recentíssimo artigo publicado na própria revista:

    O que pode então parecer, à primeira vista, uma solução para o caótico sistema penitenciário brasileiro guarda armadilhas. Estudos feitos no Brasil apontam que, com a privatização, cada preso custará mensalmente em média R$ 4 mil – quantia que os governos terão de repassar às empresas. Nem no Principado de Mônaco, onde se oferece champanhe no café da manhã (não é ironia, é isso mesmo), um presidiário custa tanto. Será que o prisioneiro, aqui, já não está sendo superfaturado? Se essa é a quantia necessária para mantê-lo, então como explicar que o governo paulista tenha despendido apenas R$ 41 per capita ao longo do último ano? Por que os gestores dos cofres públicos, tão econômicos na questão prisional, tornam-se generosos quando entra em cena a iniciativa privada?

    É patente que, a despeito dos auspiciosos argumentos relativos às supostas “melhores técnicas de gestão da iniciativa privada”, há um único interesse em jogo aos que defendem a privatização (‘PPPs’ inclusas, sublinhe-se): o lucro de investidores privados.

    Basta divisar os exemplos de outros países para não claudicar com relação à incontornável inaptidão da iniciativa privada para tornar o sistema prisional algo menos indecente do que ele é.

    Tanto nos EUA quanto na Inglaterra (conforme se evidencia na tese de doutorado de Laurindo Minhoto ), os indicadores apontam para a manutenção, nas unidades privadas, das mazelas que se prometia combater: fugas constantes, mortes ocasionadas por negligência, denúncias de torturas e maus-tratos, rebeliões, entre outras mazelas, foram e são registradas frequentemente nos presídios privados estadunidenses e ingleses.

    As pontuais experiências de privatização no Brasil não são diferentes. Exemplo mais conhecido vem do Estado do Paraná, cujo antigo Governador, hoje Senador da República, Roberto Requião, delineia e critica categoricamente.

    Em sessão no Senado, ao rechaçar projeto de lei de privatização dos presídios, o Senador afirmou que, quando assumiu o Governo do Paraná, em 2003, encontrou uma série de presídios privatizados. Segundo ele: eram “presídios sui generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses presídios”.

    Vale ainda mencionar o insuspeito Paul Krugman, prêmio Nobel de economia e liberal nato, que, em artigo escrito na Folha de São Paulo, motivado por uma série de matérias publicadas no New York Times sobre o sistema prisional privatizado de New Jersey, afirma:

    “Os operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio de reduções em quadros de funcionários e nos benefícios aos trabalhadores. As penitenciárias privadas economizam dinheiro porque empregam menos guardas e pagam menos a eles. E em seguida lemos histórias de horror sobre o que acontece nas prisões.”

    Tem-se, portanto, por inescapável a conclusão pela completa falta de razoabilidade (e de constitucionalidade e moralidade também) em qualquer intento de privatizar o sistema prisional, o que, longe de trazer soluções reais para o povo aprisionado e seus familiares, traria, na realidade, um asqueroso assédio ao Poder Legislativo em busca de mais penas, mais prisões e, portanto, mais lucros.

    A bem do real interesse público, qualquer investimento em prisões deve repelir a iniciativa privada, vinculando a liberação de verbas federais exclusivamente à implementação de melhorias em unidades prisionais completamente estatais já existentes.

    9 – PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

    Fruto da articulação da sociedade civil organizada, a Lei 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ainda carece de implementação.

    Em face da ocorrência de torturas sistemáticas no sistema prisional, constatadas em diversos relatórios (vide, por exemplo: CPI do Sistema Carcerário/2008, Pastoral Carcerária/2010, Mutirão Carcerário do CNJ/2012, entre outros), é urgente a implementação e o aparelhamento do Mecanismo de Prevenção à Tortura, garantindo plenas independência e autonomia, com membros escolhidos entre e pela sociedade civil, sem ingerência do Poder Público.

    Para além do Mecanismo de Prevenção à Tortura, cumpre estabelecer, como já anotado supra, marco normativo para a especificação da atuação dos órgãos da Execução Penal (em especial, o Juízo da Execução) na atribuição de apurar torturas, maus-tratos e outras violações a direitos fundamentais.

    Ademais, no desiderato de combater incansavelmente a tortura, prática execrável que remonta aos primórdios da invasão portuguesa ao Brasil, é elementar que se envide esforços para a célere aprovação do Projeto de Lei 554/2011, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, que prevê a realização da chamada “audiência de custódia”. A aprovação de referido projeto adequará a legislação brasileira ao Pacto de São José de Costa Rica, com a imposição da apresentação da pessoa presa ao Juízo competente em 24 horas. Cuida-se de inovação apta não apenas a possibilitar o rápido acesso à Justiça, mas, sobretudo, a coibir a prática de tortura.

    10- DESMILITARIZAÇÃO DAS POLÍCIAS E DO SISTEMA PRISIONAL

    Por derradeiro, urge promover a desmilitarização definitiva das polícias e da gestão prisional.

    A lógica militar é norteada pela política de guerra, na qual os pobres, quase sempre pretos, quase sempre periféricos, são eleitos como inimigos e se transformam em alvos exclusivos das miras e das algemas policiais.

    Entulho deixado pela ditadura civil-militar que ainda permeia nosso cotidiano, o militarismo das polícias brasileiras é fator determinante para a alta taxa de letalidade da nossa polícia e, igualmente, para o processo de encarceramento em massa, a tal ponto que a própria ONU já recomendou ao Brasil que desmilitarize suas polícias .

    Sobre a necessidade de promover a desmilitarização das polícias, Túlio Viana afirma:

    “O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”. Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios” .

    A desconstrução do modelo de guerra intrínseco ao militarismo, que – com exceção da previsão de polícias municipais – parece estar bem delineada na PEC 53/2013 (de autoria do Senador Lindbergh Farias), é fundamental para a construção de política abrangente de redução do Estado Penal, na medida em que tal modelo expressa elemento violento e autoritário de alta incidência nas comunidades mais vulneráveis.

    No mais, a política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos” (conforme manifesto constante do anexo 3), assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.

    Igualmente rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL 6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do Desarmamento”.

    Como bem ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária:

    “É fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e psicológica)” .

    A REVERSÃO DO ENCARCERAMENTO EM MASSA COMO EIXO CONDUTOR DA PRESENTE PROPOSTA

    O principal eixo e, ao mesmo tempo, objeto do Programa ora proposto é, indubitavelmente, a reversão do encarceramento em massa e, portanto, a redução gradativa e substancial da população prisional do país.

    Todas as demais medidas não são exaustivas e compõem política ampla que tem, ao fim e ao cabo, apenas dois objetivos: reduzir a população prisional e garantir às pessoas presas e a seus familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade, apesar do cárcere.

    POR UMA VIDA SEM GRADES; POR GRADES MENOS DESUMANAS

    Por um mundo sem grades, por grades menos desumanas, afirmamos, de forma contundente, em coro às companheiras e companheiros presentes no I Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade : NENHUMA VAGA A MAIS!

    Espera-se que, a partir da proposta ora apresentada, construa-se política sólida, sem remendos, que seja apta a atacar na integralidade a grande chaga que representa o sistema penal às massas de marginalizados e periféricos desse país.

    Em respeito à memória dos ao menos 111 que tombaram pelas mãos do Estado no denominado Massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, e de tantas centenas de outras pessoas presas mortas pelos massacres cotidianos do cárcere, somos irredutíveis na exigência de uma política integral de reversão do encarceramento em massa e da degradação carcerária.

    Assinam:

    MÃES DE MAIO
    PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL – CNBB
    REDE 2 DE OUTUBRO
    INSTITUTO PRÁXIS DE DIREITOS HUMANAS
    MARGENS CLÍNICAS

    +

    PROPOSTA: “POLÍTICA NACIONAL DE REPARAÇÃO INTEGRAL ÀS VÍTIMAS DIRETAS E CO-VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA E ABUSO DE PODER DE AGENTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO – REGIME DO REPARADO INTEGRAL DA DEMOCRACIA”

    Consideração Preliminar: O Presente Anteprojeto refere-se a uma Proposta Preliminar, em grande medida equiparando os Direitos das Vítimas e Co-Vítimas de Agentes do Estado de Direito àqueles direitos já consagrados pela Constituição Federal do Brasil e a Legislação Nacional às Vítimas e Co-Vítimas da Ditadura Civil-Militar (em especial o Regime do Anistiado Político) – respeitando o princípio fundamental da Isonomia. Como poderá ser observado, muitos incisos do artigo 5º da presente proposta remetem a situações mais comuns às vítimas da Ditadura do que às vítimas do Estado de Direito, fazendo-se necessário o detalhamento e aperfeiçoamento da presente proposta.
    A referência que fazemos ao art. 245 da CF, que mesmo após mais de 25 anos de vigência da CF ainda carece de regulamentação específica, pressupõe também a necessidade de uma política nacional de atendimento às vítimas em geral (e o atendimento às vítimas do Estado seria um capítulo nessa política de atendimento geral). De modo que a presente proposta de política específica para vítimas de agentes do Estado de Direito – legítima e emergencial, conforme detalhamento abaixo -, pode ser encarada seja como uma regulamentação parcial (específica) do referido art. 245 da CF, seja como PEC específica relacionada à garantia dos direitos fundamentais específicos das vítimas e co-vítimas de crimes dolosos praticados por agentes do Estado de Direito-em consonância com todas as Convenções e Tratados Internacionais, cosignados pelo Brasil, relacionados à matéria.
    A necessidade, legitimidade e urgência em se atender os direitos das vítimas e co-vítimas do Estado de Direito – pela gravidade das violações, pela responsabilidade internacional em matéria de DHs e até pela responsabilidade objetiva que o Estado tem sobre seus agentes é imperativa à determinação de se encontrar a melhor proposição em matéria de Direito Constitucional e Legislativo, sem maior prejuízo e /ou postergação por omissão na garantia desses Direitos Humanos fundamentais

    PROPOSTA: “POLÍTICA NACIONAL DE REPARAÇÃO INTEGRAL ÀS VÍTIMAS DIRETAS E CO-VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA E ABUSO DE PODER DE AGENTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO – REGIME DO REPARADO INTEGRAL DA DEMOCRACIA”

    Regulamenta o Art. Nº 245 da Constituição especificamente no que tange à “assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso” praticado por agente do Estado Democrático, “sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”, e dá outras providências

    CONSIDERANDO que a Constituição Federal de 1988, em seu fundamental Art. 5º, estabelece que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”, estabelecendo ainda em alguns de seus Incisos que: “I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (…) V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (…) LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”;
    CONSIDERANDO ademais que a mesma Constituição Federal de 1988, em seu Art. 245, determina: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”, inclusive e especialmente se este autor for agente do Estado Democrático (que deveria promover os direitos e proteger o cidadão, o quê agrava sua ilicitude), quedando este artigo, mesmo após mais de 25 anos de vigência da Carta Magna, ainda carente de regulamentação específica;
    CONSIDERANDO que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) de 2009, assinado por todos os Ministérios do Governo Federal e pela própria Presidência da República, em seu Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência, Diretriz 15: Garantia dos direitos das vítimas de crimes e de proteção das pessoas ameaçadas estabelece como: “Objetivo estratégico II: Consolidação da política de assistência a vítimas e a testemunhas ameaçadas. Ações programáticas: a)Propor projeto de lei para aperfeiçoar o marco legal do Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, ampliando a proteção de escolta policial para as equipes técnicas do programa, e criar sistema de apoio à reinserção social dos usuários do programa. Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; b)Regulamentar procedimentos e competências para a execução do Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, em especial para a realização de escolta de seus usuários; Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; c)Fomentar a criação de centros de atendimento a vítimas de crimes e a seus familiares, com estrutura adequada e capaz de garantir o acompanhamento psicossocial e jurídico dos usuários, com especial atenção a grupos sociais mais vulneráveis, assegurando o exercício de seus direitos; Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República; d)Incentivar a criação de unidades especializadas do Serviço de Proteção ao Depoente Especial da Polícia Federal nos Estados e no Distrito Federal; Responsável: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; e) Garantir recursos orçamentários e de infraestrutura ao Serviço de Proteção ao Depoente Especial da Polícia Federal, necessários ao atendimento pleno, imediato e de qualidade aos depoentes especiais e a seus familiares, bem como o atendimento às demandas de inclusão provisória no programa federal; Responsável: Ministério da Justiça”;
    REFORÇANDO ademais que Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) de 2009, em seu Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência, estabelece ainda a “Diretriz 17: Promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para o conhecimento, a garantia e a defesa de direitos”; em seu Eixo Orientador V: Educação e Cultura em Direitos Humanos também estabelece a necessidade do “fortalecimento de políticas que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos Direitos Humanos, bem como da reparação das violações”; e em seu Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade estabelece ainda a “Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado; e Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade” como dever do Estado Democrático de Direito.
    REITERANDO ainda que o mesmo Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) de 2009 define o “Combate à violência institucional, com ênfase na erradicação da tortura e na redução da letalidade policial e carcerária: Objetivo estratégico I: Fortalecimento dos mecanismos de controle do sistema de segurança pública; Objetivo estratégico II: Padronização de procedimentos e equipamentos do sistema de segurança pública; Objetivo estratégico III: Consolidação de política nacional visando à erradicação da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; Objetivo estratégico IV: Combate às execuções extrajudiciais realizadas por agentes do Estado”.
    RELEMBRANDO também as diretrizes do Programa Interministerial “Juventude Viva” de 2010, o qual reconhece que “homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Dados do Ministério da Saúde mostram que mais da metade (53,3%) dos 49.932 mortos por homicídios em 2010 no Brasil eram jovens, dos quais 76,6% negros (pretos e pardos) e 91,3% do sexo masculino”, um Programa cujos eixos norteadores são os seguintes: “1- Desconstrução da Cultura de Violência – reúne ações voltadas para sensibilização da opinião pública sobre banalização da violência e a necessidade de valorização da vida da juventude e da garantia de seus direitos. (…) 2- Inclusão, Oportunidades e Garantia de Direitos – traz programas e ações específicas para os jovens de 15 a 29 anos em situação de vulnerabilidade, com o intuito de fomentar trajetórias saudáveis e oportunidades de desenvolvimento pessoal e coletivo aos beneficiários dos programas. (…) 3- Transformação de Territórios – busca contribuir para a ampliação da presença do poder público nos bairros mais afetados pelos altos índices de homicídios, por meio da criação ou reconfiguração de espaços de convivência para a juventude e para toda a comunidade. (…) 4 – Aperfeiçoamento institucional – reconhece que para mudar valores na sociedade em prol da valorização da vida da juventude”.
    CONSIDERANDO também que o Ministério da Justiça, por meio da Comissão de Anistia, em seu “PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO, de julho de 2012, reconhece que “Os reflexos da violência do Estado praticada no período da repressão se perpetuam no psíquico das vítimas mesmo com o passar dos anos, e a falta de uma política pública no sentido de reparar essas violações, reforçam a negação do Estado em reconhecer os erros cometidos por seus agentes, e contribuiu para uma não reparação plena. O atendimento clínico às vítimas dos danos produzidos pela violência do Estado Brasileiro é necessário à busca da reparação plena. Uma reparação apenas nos campos financeiro e moral deixa uma fissura campo psicológico que precisa ser estudada e erradicada por meio de uma política pública de qualidade. O Estado tem a obrigação de prestar apoio psicológico aos cidadãos atingidos por graves violações dos direitos humanos. Especialmente quando as próprias instituições do Estado na democracia hoje dependem para a efetividade do direito à memória, à verdade e à reparação do registro do testemunho da vítima. (…) Para uma maior eficácia no tratamento dessas vítimas, o profissional de psicologia precisa estar preparado e possuir sensibilidade suficiente para tratar das particularidades desses casos de violência e sofrimento psíquico produzido por agentes do Estado, ou deles decorrentes. Não basta apenas escutar, mas também é preciso fazer isso com qualidade e especialidades capacitadas. É neste contexto (…) [que surge como] objetivo a implementação de núcleos de apoio e atenção psicológica às vítimas e testemunhas, onde o atendido poderá trocar experiências com seus pares, por meio de escutas realizadas por equipe com conhecimento específico, através de metodologia apropriada para esta modalidade de traumas advindos da violência do Estado. (…) Uma tridimensionalidade: atenção às vítimas, capacitação profissional e geração de insumos de referência para aproveitamento profissional múltiplo em novas experiências, de tal forma a alargar sua amplitude, funcionando não apenas como clínica propriamente dita, mas também como espaço de formulação em rede de conhecimentos que possam ser posteriormente aplicáveis por outros profissionais para o atendimento de vítimas de violência de estado, suprindo, assim, uma lacuna existente não apenas na política pública e oficial de reparações no Brasil, como também da própria clínica. (..) Nestes termos, (…) [se] amplia e dá efetividade às políticas públicas de reparação do Estado brasileiro, e permite que a sociedade conheça o passado e dele extraia lições para o futuro, reiterando a premissa de que apenas conhecendo o arbítrio estatal do passado podemos evitar sua repetição no futuro, fazendo da (…) [reparação] política um caminho para a reflexão crítica, para o aprofundamento democrático e para o resgate da confiança pública dos cidadãos com as instituições estatais. (…) Em respeito ao livre pensamento e o direito à verdade histórica, à memória e à reparação, disseminando valores imprescindíveis a um Estado plural e respeitador dos direitos humanos”.
    CONSIDERANDO ainda que, com o conceito de Justiça de Transição, a Comunidade Internacional produziu grandes avanços em relação ao modo como as sociedades lidam com legados de violações de direitos humanos, tendo estas ocorridas dentro ou fora de períodos de arbítrio. Que se reconhece internacionalmente que experiências sistemáticas de trauma social severo geram ao menos quatro obrigações ao Estado, sendo elas ainda mais graves e prementes quando os violadores são agentes do próprio Estado (que deveria promover os direitos e proteger o cidadão), a saber tais obrigações: 1. Investigar, processar e punir os violadores de direitos humanos; 2. Revelar a verdade; 3. Oferecer reparação adequada e 4. Reformar as instituições e afastar os criminosos dos postos que ocupavam. Claro está que o atendimento psicológico é parte fundamental do item 3, concernente à reparação do dano causado por agentes do Estado. Com efeito, não há quem questione que situações de grave ameaça à vida são causadoras de intenso sofrimento psíquico às vítimas e seus parentes, quadro psicopatológico conhecido há tempos por campos teóricos como o da psicanálise e reconhecido pela psiquiatria moderna ao menos desde 1980, como Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT). Recentemente inclusive, em Agosto de 2013, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) publicaram um Guia reconhecendo a importância e estabelecendo “Novos protocolos de atendimento para o transtorno de estresse pós-traumático” para o tratamento de doenças mentais causadas por grandes traumas ou perdas, segundo o qual “mais de 10% dos entrevistados relataram terem testemunhado a violência (21,8%) ou serem vítimas de violência interpessoal (18,8%), acidentes (17,7%), a exposição à guerra (16,2%) ou trauma de um ente querido (12,5%). Estima-se que 3,6% da população mundial sofra de transtorno de estresse pós-traumático (PTSD em inglês), no ano anterior, mostrou o estudo. Usando o novo protocolo, que é copublicado com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), os trabalhadores de saúde primários podem oferecer apoio psicossocial básico para refugiados, bem como pessoas expostas a trauma ou perda em outras situações. Tipos de apoio oferecidos podem incluir primeiros socorros psicológicos, gestão do stress e ajudar as pessoas afetadas para identificar e reforçar os métodos de enfrentamento positivo e apoios sociais. Estas técnicas ajudam as pessoas a reduzir em vida as indesejadas lembranças repetidas de eventos traumáticos. Mas treinamento e supervisão é recomendável fazer para estas técnicas estarem o mais amplamente disponíveis”.
    REFORÇANDO ainda que há, atualmente, em diversas partes do mundo, importantes avanços no que tange à assistência, reparação e apoio às vítimas e “co-vítimas” de homicídio, tal qual o recém-publicado “Manual CARONTE de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídios”, elaborado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) junto à Comissão Européia de Direção-Geral à Justiça, de 2012 , que diagnostica: “O homicídio de alguém a quem se estava ligado por laços de parentesco e/ou de afecto/relação pessoal é seguramente uma das mortes mais traumáticas. A perda pode levar a um sofrimento intenso e a alterações significativas na vida pessoal, familiar e social. A morte por homicídio é sempre uma morte violenta. Pode despertar reacções negativas extremas, como o medo, a raiva, o choque, o horror. A vida, que poderá não voltar a ser a mesma, terá que adaptar-se à realidade, prosseguindo em novas perspectivas. Por isso, é preferível que cada pessoa tenha, desde logo, um apoio especializado de profissionais atentos, que saibam responder às turbulências próprias do luto com segurança, confiança, acolhimento e esperança. Os familiares e/ou amigos da vítima de homicídio são designados, por alguns, de «vítimas ocultas», ou de «as outras vítimas», ou ainda de «co-vítimas», uma vez que, mesmo não tendo sofrido na pele o crime, sofrem os efeitos nefastos que este deixa atrás de si quando é praticado contra alguém da família, ou contra um amigo. Se a vítima morreu às mãos do homicida, estas «outras vítimas» continuam vivas. Na verdade, sobrevivem àquele acontecimento”. Indicando, portanto, a imprescindibilidade de se “ajudar todos os profissionais na abordagem de alguns aspectos considerados essenciais para prestar serviços adequados aos familiares e/ou amigos das vítimas de homicídio”.
    CONSIDERANDO ademais que o Brasil é signatário da “Convenção Internacional Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, um tratado internacional definido pela resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.12.1984 – ratificada pelo Brasil em 28.09.1989, a qual afirma explicitamente em seu Artigo 14 que “1. Cada Estado-parte assegurará em seu sistema jurídico, à vítima de um ato de tortura, o direito à reparação e à indenização justa e adequada, incluídos os meios necessários para a mais completa reabilitação possível. Em caso de morte da vítima como resultado de um ato de tortura, seus dependentes terão direito a indenização; 2. O disposto no presente artigo não afetará qualquer direito a indenização que a vítima ou outra pessoa possam ter em decorrência das leis nacionais.”
    REFORÇANDO ainda que o Brasil é signatário da C

  21. João Bernardo,

    Para ser honesto, faltou o senhor mencionar a ida do MPL à Dilma, ao congresso e depois à TV Cultura, do PSDB, e à própria Globo. O senhor coloca a presença do MPL em Brasília e na Globo no mesmo rol de argumentação agora apresentado?

    Como vê?

  22. Em resposta ao comentário inserido acima, considero que a ida à televisão ou entrevistas concedidas a jornais e revistas de grande tiragem são oportunidades pouco frequentes, que devem sempre ser aproveitadas.
    Quanto à ida a Brasília de representantes do MPL de São Paulo, ela ocorreu
    – no contexto de uma negociação por uma exigência concreta: a redução da tarifa;
    – e num momento em que o MPL beneficiava do apoio de uma colossal movimentação de rua e estava, portanto, em posição de superioridade.
    Pelo contrário, a ida das Mães de Maio a Brasília ocorre
    – num quadro em que o governo federal precisa de ajuda para definir uma nova estratégia perante os surtos de violência em manifestações
    – e na sequência de uma relação continuada que as Mães de Maio têm mantido com a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal.
    Finalmente, a participação na iniciativa do prof. Boaventura Sousa Santos, visando o lançamento de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, e que abrangeu um amplo leque,
    – ou revela a conivência com uma manobra destinada a reforçar a inserção dos movimentos sociais na área governista
    – ou revela ingenuidade política.

  23. pois é, a tática é, por definição, flexível, no sentido de que por mais radical e acertada que uma tática se apresente num contexto determinado, nada pode garantir que a mesma tática será sempre eficaz, ainda que o objetivo permaneça o mesmo.

    Acho que o alerta do João Bernardo a esses fatos pouco noticiados na mídia é importante e talvez apenas expresse a ponta de um iceberg que já têm décadas de cooptação e assimilação dos movimentos sociais ao governo. Boaventura tem muitos defeitos mas não é ingênuo. Os governantes então, “não dão ponto sem nó”.

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