Por Manolo & João Bernardo

Versão em francês

Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada

Adoniran Barbosa,
Torresmo à Milanesa.

O Passa Palavra publicou uma vez uma fotografia, tirada por uma colaboradora do colectivo, excelente fotografia, como algumas outras que publicámos. Quatro pessoas numa ocupação em São Paulo. Olhem bem.

A organização da imagem parece uma réplica das fotografias burguesas e pequeno-burguesas do século XIX. As figuras principais ao meio, sentadas, ladeadas por figuras acessórias, de pé. Por detrás, no lugar onde nas antigas fotografias havia uma cortina que marcava o espaço do retrato, como um palco num teatro com o seu pano de fundo, existe nesta fotografia a lona preta da barraca. Mas aqui ela marca dois espaços. Para a frente, o espaço da ocupação, onde estão os quatro personagens e que os define e lhes dá significado e valor. Para trás, o espaço urbanizado da classe dominante, as torres de bons apartamentos com vista panorâmica. Quem lá mora pode olhar para tudo em conjunto e para nada em particular. Mas do lado de cá da lona preta podemos observar a particularidade das coisas.

O sofá é velho, ninguém vai levar um sofá novo para uma ocupação. Mas foi escolhido com cuidado, cores sóbrias, padrão moderno. E sentados no sofá estão uma mulher e um homem; um casal, porque os corpos se encostam. Na verdade é o homem que se encosta à mulher, à vontade, ocupando espaço, a perna projectada para o lado, o rei do terreiro, seguro de si, corpo seco, musculatura firme, cabeleira rebelde e olhos de quem já viu muita coisa. E ela, cruzando as pernas quando ele as tem abertas, nesse contraste define o seu carácter, reservada, sem espalhafato, um sorriso tenso, um pouco de circunstância — o homem tem-no natural e de todos os dias — menos à vontade, mais inquieta, e decerto com razão, porque talvez saiba melhor do que ele o custo das coisas.

De um e outro lado as figuras de pé não ignoram que, para aquele retrato, são secundárias e assim se comportam. Atenuando a expressão do rosto, o homem da esquerda vale esteticamente pela grande mancha branca da blusa, que se destaca da lona preta e que, continuada na blusa da mulher e na cadeira e no balde, estabelece desde o canto superior esquerdo até ao canto inferior direito uma diagonal que, em contraste com as restantes horizontais, estrutura a imagem e lhe dá o dinamismo. Este homem da esquerda tem na cabeça um boné com o logotipo de uma rede de lojas de produtos baratos, que decerto não conta como clientes os habitantes das torres ao fundo, e numa mão segura instrumentos de trabalho, um martelo e uma pequena prancha, ilustrando de cima a baixo o consumo e a produção. O homem da direita mostra, sobre o peito nu, um crucifixo de madeira. Um figura a prática, o outro, a ideologia. E na margem da fotografia, mal tapada por um contraplacado, uma gaiola de pássaro, porque uma ocupação, se é para valer, é um lar ambulante, e se o casal tem um pássaro, sem ele não é uma família.

Quatro pessoas, tão diferentes, juntas. A partir desta fotografia um ficcionista poderia traçar a vida de cada uma, descobrir-lhes um passado, inventar-lhes um futuro, mostrar como os seus caminhos se cruzaram e como nasceu daí a ocupação. Esta fotografia hipnotiza porque vê-se nela aquilo que dá a força aos movimentos, a variedade de pessoas, cada qual com a sua trajectória, as suas certezas e as suas fragilidades, os saberes e as ignorâncias, e tudo isto se conjugando e potencializando numa teia de relações sociais em que de repente se descobre que agora uma pessoa vale muito mais do que sempre pensou que valia.

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Mas esta fotografia hipnotiza por outro motivo também, pelo que ela não mostra. A fotografia não mostra os dirigentes nem as conversações com os vereadores nem as reuniões de direcção nem os acordos nem o germinar de dissidências. Sem isto não se tece a rede de relações que permite constituir um movimento, mas sem isto não se opera também aquela subtil transferência de lugares, dos sofás rotos para as cadeiras de sedes e daí para as poltronas de prefeituras, sem a qual é impossível as lutas serem assimiladas, recuperadas e contidas pela ordem dominante. A dialéctica entre a formação de militantes e a constituição de novas elites é o que se vê e não se vê nesta fotografia.

Àquela transferência de lugares e a esta dialéctica os chefes políticos e os professores universitários chamam: formação de intelectuais orgânicos.

No final de 1984 um de nós veio pela primeira vez ao Brasil dar aulas e fazer palestras. O PT tinha nascido há poucos anos, a CUT tinha sido fundada no ano anterior, o regime militar estava na agonia, ninguém duvidava de que haveria proximamente grandes mudanças, mas quais? E era inevitável que nas palestras, por vezes nas aulas também, me perguntassem o que tinha a dizer acerca dos intelectuais orgânicos. A minha resposta era invariavelmente a mesma, e deixava todos insatisfeitos, se não incomodados. “Intelectuais orgânicos? No Brasil há um intelectual orgânico, um único, Adoniran Barbosa”. Mas fui de um extremismo excessivo. Se fosse hoje, agregaria nomes como Zé Keti, Bezerra da Silva e outros que tais.

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Mas, afinal, que vem a ser um intelectual orgânico além de uma expressão infelizmente equívoca?

Escrevendo na dura rotina da prisão, sob severas limitações da censura, Antonio Gramsci inovou no marxismo ao voltar-se para a assim chamada “superestrutura”. Não se tratou de diletantismo acadêmico, mas de uma necessidade prática: compreender a formação das vanguardas dentro da luta anticapitalista e sua relação com uma base social que, a partir da experiência do bienio rosso de 1919-1920, havia demonstrado sua capacidade de organizar autonomamente tanto sua luta quanto a própria produção econômica, mas que posteriormente servira de base ao fascismo.

Gramsci talvez tenha sido um dos primeiros no campo socialista a conceber os “intelectuais” como uma camada de indivíduos que dá homogeneidade e consciência de sua própria função a grupos sociais nascidos de uma função essencial no mundo da produção econômica. Assim, para Gramsci, o empresário capitalista teria criado consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, um novo direito etc. etc., e as tarefas desempenhadas por esta camada seriam, no mais das vezes, “especializações” de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz. A base do novo tipo de intelectual estaria, ainda segundo Gramsci, na educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, e seu modo de ser consistiria num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”; da “técnica-trabalho”, eleva-se à “técnica-ciência” e à “concepção humanista histórica”, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” (as expressões aspeadas são do próprio Gramsci).

Malgrado seu enorme esforço de síntese, Gramsci errou o alvo.

Em primeiro lugar, porque “camadas” de indivíduos dentro de uma classe são tão condicionadas pelas circunstâncias de tempo e lugar quanto as próprias classes onde se situam tais indivíduos; ao tentar encontrar características comuns entre intelectuais de épocas tão distintas quanto, digamos, o Império Romano e a Revolução Industrial, Gramsci inseriu um elemento trans-histórico na estratificação social de cada época e embaralhou, por tabela, classes sociais existentes em modos de produção fundamentalmente diferentes. Em segundo lugar, porque, como consequência deste anacronismo, ao eliminar tais especificidades históricas Gramsci tornou-se incapaz de conceber, mesmo como hipótese, onde, quando e como estariam dadas, e quais seriam, as condições para que os intelectuais deixassem de ser uma simples “camada” de indivíduos dentro de uma classe e se tornassem uma classe social de pleno direito. Em terceiro lugar, porque Gramsci, infelizmente, não se estendeu muito a respeito de quão próximos poderiam estar intelectuais oriundos de classes diferentes — reflexão que bem poderia ter como ponto de partida sua própria tentativa de aliança com o líder proto-fascista Gabriele D’Annunzio.

Diante de tais problemas, a distinção entre “intelectuais tradicionais” e “intelectuais orgânicos”, outro elemento desta teoria, perde o sentido, pois é a própria definição de “intelectual”, aqui, a perder fundamento. A teoria dos intelectuais formulada por Gramsci, tão arguto em outros assuntos, não é outra coisa além da tentativa honesta, porém inconclusa e talvez por isto equívoca, de uma reflexão sobre a formação das vanguardas de uma classe em processos de luta, e de sua posterior transformação numa elite.

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Fica a pergunta: será que Gramsci conheceria, pelo menos de ouvido, as teses de Jan Waclaw Makhaiski sobre a intelligentsia enquanto classe capitalista e o marxismo enquanto doutrina específica desta intelligentsia capitalista? Em que medida teria Gramsci tentado responder a Makhaiski? Mesmo que não conhecesse aquelas teses, podemos talvez considerar as teses de Gramsci sobre os intelectuais orgânicos como uma resposta às teses de Makhaiski sobre a intelligentsia.

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Ora, a referência a uma classe social só adquire sentido através da referência a uma ou mais classes opostas. A dialética da exploração e da opressão liga intimamente as características e a estrutura interna das várias classes, e sob este ponto de vista a luta entre as classes consiste na transformação contraditória e conjunta de todas elas. Mas o mesmo não se passa com a noção de elite, que pode ser definida de maneira independente, enquanto estrato privilegiado. A estrutura interna de uma elite nem se relaciona com a de suas tradicionais opositoras, as massas, pois os teóricos das elites definem a massa precisamente pela sua incapacidade de organização própria; nem está em relação necessária com a estrutura interna de qualquer outra elite, porque a elite governa sozinha, e se aparece uma nova é apenas para liquidá-la e substituí-la.

Esta distinção entre os conceitos de elite e de classe social não se limita a ter repercussões ideológicas e reflete diretamente problemas práticos. Na sua ação anticapitalista os trabalhadores jamais deixaram de enfrentar dois tipos de inimigos, um que se apresenta a partir do exterior e o outro que é gerado no próprio seio da classe trabalhadora. Todos os fracassos do socialismo, sem qualquer exceção, têm resultado da sua incapacidade de agir conjuntamente em ambas as frentes de luta. E assim, ao mesmo tempo que os trabalhadores fazem recuar, dispersam ou aniquilam os capitalistas já existentes, eles têm repetidamente permitido que as burocracias geradas no movimento operário alimentem a classe dos gestores e inspirem novo fôlego ao capitalismo.

Nesta dialética, as elites do socialismo, em vez de darem corpo a um novo conceito sociológico independente do conceito de classe, constituem um dos elementos geradores de uma classe, a classe capitalista dos gestores. Mas a teoria das elites é incapaz de explicar, ou sequer de conceber, esta transformação dos membros de uma elite em membros de uma classe. Os autores que pretendem que o fenômeno da mobilidade social invalida, ou pelo menos compromete, a teoria das classes e justifica a aplicação de uma perspectiva de elites confundem classe com casta. É precisamente a mobilidade social que permite inserir o fenômeno das elites no quadro geral das classes, pois a formação de uma elite no interior de uma classe inferior corresponde à projeção desta elite para a classe superior. A classe superior é alimentada periodicamente por essas novas elites, como aliás Marx indicou numa passagem muito conhecida de O Capital. As elites só têm sentido porque são elites de uma classe, ou elites de uma classe transformando-se em componentes de outra classe. O conceito de elite padece, portanto, de uma assimetria profunda, porque as elites capitalistas continuam a ser capitalistas, enquanto as elites proletárias abandonam a sua classe de origem.

Se dissemos anteriormente que a reflexão de Gramsci sobre os intelectuais é inconclusa, foi não apenas por reconhecermos que seu desenvolvimento foi travado pela prisão e pela morte, mas porque reflete um momento em que a tensão permanente entre a construção de relações sociais novas pelos movimentos em luta e a recuperação destas novas relações sociais, sob formas deturpadas, por burgueses e gestores para a manutenção e desenvolvimento do capitalismo — ou seja, a ambiguidade estruturante do movimento operário — entrava em nova fase. Fundiam-se progressivamente, de um lado, um corpo de gestores oriundo do Estado e dos grandes trustes, e de outro um corpo de militantes acostumados a compartilhar com estes gestores o poder político nos parlamentos e o poder econômico nos sindicatos então já incorporados à institucionalidade capitalista. Estes gestores ainda não dispunham de força suficiente para enfrentar os proprietários dos meios de produção — burgueses, acionistas etc. — mas podiam influenciar os rumos do movimento operário, que já fazia tal enfrentamento.

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O problema da relação entre vanguardas e elites na luta de classes não é meramente teórico, mas uma questão prática de extrema importância para todos quantos procuram organizar-se para lutar contra o capitalismo, em qualquer de seus aspectos.

É difícil duvidar de que existam vanguardas, qualquer que seja o nome que se lhe dê (“minoria ativa”, por exemplo). Em qualquer luta há os que são mais ativos, mais articulados, mais faladores, os mais bem relacionados, os que assumem mais tarefas, os que dispõem de mais tempo e recursos, os que conhecem na prática certas técnicas de mobilização. Esta é uma evidência, basta olhar. Um fato político de tamanha relevância para as lutas anticapitalistas só pode ser negado por quem quer que já se haja estabelecido enquanto vanguarda, mas prefira disfarçá-lo para tentar garantir privilégios; ou por quem pretenda, com razão, submeter aqueles primeiros a um rigoroso e necessário controle, negando sua existência na teoria na vã tentativa de fazê-los desaparecer na prática com suas palavras mágicas.

É difícil também duvidar de que os dois problemas principais que as técnicas da organização política revolucionária se destinam a resolver são o estabelecimento de uma coesão no seio da vanguarda e a formação de canais de relacionamento entre a vanguarda e as massas. Assim, enquanto os leninistas concentram a atenção no aperfeiçoamento dos canais que permitem veicular as ordens das vanguardas, ou seja, no aperfeiçoamento das formas de enquadramento das massas sob a autoridade das vanguardas, é preciso preocupar-se acima de tudo com o reforço da capacidade de ação das massas, que lhes permita exercer o máximo de controle sobre as vanguardas e, tanto quanto possível, suplantá-las ao exercer diretamente o máximo de atividade. Daí a necessidade de reduzir progressivamente a distinção entre vanguarda e massas, através de sua indicação direta pela base; de sua substituição a qualquer momento em que as próprias “bases” o desejem; de impedir a cristalização de determinados indivíduos como “lideranças naturais”, através da rotação frequente de funções; da gestão cada vez mais direta dos processos de luta pelo corpo social dos trabalhadores.

Mas é igualmente difícil crer que o fato de certas pessoas constituírem a vanguarda de uma dada luta ocorrida em dado lugar em dado momento deva servir de pretexto para as converter em vanguarda de todas as lutas em todas as circunstâncias. Esta eternização das vanguardas é um dos mecanismos fundamentais da sua conversão em elites e, portanto, da sua passagem para a classe dos gestores.

Nos processos revolucionários o autoritarismo e o centralismo são sempre um sintoma de recuo, não de avanço, e resultam do fato de a base ter por um motivo ou outro se tornado incapaz de conduzir autonomamente as lutas. A burocratização começa sempre pela base de um movimento, nunca pelo seu topo. Por mais que os dirigentes queiram às vezes assumir uma postura independente das bases, consagrar os seus privilégios momentâneos como um direito próprio e instituir um tipo de ditadura sobre as bases que os legitimam, jamais o poderão fazer se a luta mantiver um dinamismo coletivo e os trabalhadores comuns se conservarem ativos e vigilantes. Mas se os obstáculos que forem surgindo, o desânimo e as desilusões contribuírem para dissolver os elos coletivos e para transformar a atividade em passividade, então manifesta-se e desenvolve-se a burocratização, que constitui sempre uma forma de isolamento dos dirigentes.

*

Tudo isto é posto de lado na formação de intelectuais orgânicos. Se a própria definição de intelectual em Gramsci é equívoca, porque anacrônica e por demais abstrata, não custa recordar que sua obra chegou ao Brasil não através do exemplo de sua prática — como foram, em épocas diferentes, Errico Malatesta e Che Guevara — mas por sua obra escrita, trazida pelos exilados que retornavam.

No Brasil, infelizmente e como sempre, a novidade veio de Paris. Na primeira metade da década de 1970 a ala renovadora, moderada e conciliatória do Partido Comunista Francês ressuscitou os escritos de Gramsci, considerando-o um precursor de Togliatti e do eurocomunismo. Na outra extremidade deste Partido Louis Althusser, enquanto se preparava mentalmente para vir a ser um filósofo pirómano e uxoricida, dirigia a artilharia da Escola Normal Superior contra o humanismo atribuído a Gramsci e contra a teoria da praxis, o que na realidade significava uma reacção do comunismo granítico contra um comunismo disposto a adoptar a democracia parlamentar. A polémica era esta e os seus dois termos pareciam ser os únicos existentes.

O complexo Gramsci que existiu de fato foi transformado pelos emigrados brasileiros de torna-viagem num Gramsci unívoco, monolítico, empregue como “autoridade teórica” tanto nos debates internos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na virada da década de 1970 para a de 1980 quanto como legitimador de certas práticas do autonomismo que no Brasil então nascia. Em suma, o Gramsci militante e suas contradições deram lugar ao Gramsci dos intelectuais, em particular dos acadêmicos de esquerda.

Zé Keti num graffiti

Também no exílio parisiense, um de nós sentia-se entalado entre os dois pólos daquela polémica, porque por um lado era estruturalista e anti-humanista, por outro lado defensor de uma teoria da praxis, e como sair do dilema sem bater muitas vezes com a cabeça em muitas paredes? Curiosamente, foi naqueles mesmos anos que apareceu lá em casa um disco com Vinícius, Maria Betânia e não me lembro quem mais. Betânia cantava Carcará e alguém cantava a Nêga Dina. Fiquei fascinado por esta música, desde então a conheço de cor, embora só muito mais tarde, há poucos anos, viesse a saber que ela era de Zé Keti e quem era Zé Keti. Mas, de tudo, o que mais me impressiona nesta canção é o verso final, «sou um marginal brasileiro», com a última palavra cantada pausadamente, «bra-si-leiro». É claro que «brasileiro» não está ali só para rimar com «paradeiro», mas para converter um caso individual numa situação geral. O marginal não era só ele, era toda uma categoria social de um país, e é isto que torna o músico Zé Keti um intelectual orgânico. A mesma passagem do individual ao colectivo que existe no teatro grego, onde as tragédias pessoais se explicam pelo destino marcado nas relações sociais, existe na Nêga Dina e no seu «marginal brasileiro».

O que os universitários de esquerda hoje fazem, com os cursos para o MST e outros movimentos, é a desapropriação dos intelectuais orgânicos populares. Vão dizer aos explorados que — ora, bolas! — eles são explorados; às mulheres e aos negros — que novidade! — que são cotidianamente oprimidos; e por aí vai. Pouco importa a esses universitários a forma como as pessoas comuns compreendem a exploração e a opressão a que são sujeitados e como as articulam com problemas gerais. Vale mais subjugar este conhecimento prático a esquemas acadêmicos pré-moldados do que fazer dele a base para a luta. Trata-se, a nível ideológico, do processo de assimilação e recuperação de militantes de uma classe para outra.

Adoniran Barbosa num graffiti

Aplicando aqui os modelos de análise estruturalista de que um de nós tanto gosta, a função do intelectual académico não é só elaborar teorias. É, no mesmo gesto, esconder que existem teorias elaboradas por intelectuais não académicos. A função explícita do discurso académico é uma, que bem conhecemos; mas a sua função implícita é ocultar que existem outros discursos, elaborados noutros níveis e com outras regras. Os estruturalistas diriam, e eu também, que esta segunda função é mais decisiva do que a primeira.

A isto resiste o intelectual orgânico Adoniran Barbosa no Torresmo à Milanesa, quando se retrata, a ele e a uns colegas, «sentados na calçada» e, mudando subitamente a perspectiva para a arrogância das elites, Adoniran acrescenta ironicamente que estão a conversar sobre «coisas que nós não entende nada».

Foi estes intelectuais orgânicos populares que nos fez lembrar aquela fotografia, os que sabem falar com discernimento sobre «coisas que nós não entende nada».

48 COMENTÁRIOS

  1. Interessante texto, apesar do tom um pouco ´´destrutivo´´. A luta é tão grande que acho desnecessário ir com tanta raiva contra pessoas que estão próximas… uma grande proposta para esse pessoal ´´intelectual orgânico´´ talvez seja pensar seriamente a proposta de ´´suicídio de classe´´. Nao sei se os autores conhecem o termo, mas os convido para refletir sobre ele (que por sinal, não anda nenhum pouco de moda…) e claro, quem se ´´suicida´´ não vai dirigir luta nenhuma, vai se incorporar a ela. E ´´intelectual orgânico´´ não sei com voces, mas os vejo como uma espécie de ´´jornalistas´´, ´´academicos´´ ou seja, é um povo que nao é ´´ator social´´, acho que essa é a diferença fundamental – entre ser ´´observador´´ e ´´ator´´ porque o conceito de ´´intelectual orgânico popular´´ nâo me convence muito pra pensar atores sociais populares que sâo um pouco tradutores e estimuladores de uma luta. Aí deixo esses pensamentos…

  2. Um conhecido dos tempos de universidade organiza ai um evento sobre sobre lutas sociais em cujas mesas não há absolutamente ninguém que participe de qualquer luta social. Ao invés de lutadores que suam pelo transporte, por moradia, por educação lá vai uma turba de professores universitários – que chamar isso de intelectual é demais- atrás de currículo e mercado.

    Certo dia me veio que a universidade pesquisa tudo, menos as lutas no interior da universidade e os processos de exploração e precarização internos. E estes professores não falam da exploração interna porque se beneficiam dela e não podem falar das lutas porque delas não participam, ao contrário elas são um incômodo a ocultar.

    Uma grande amiga, certo dia, propunha com toda a candura que eu me deslocasse 7 horas para ouvir não sei quem da USP falar sobre educação. Ao que tive que responder que como professor da rede pública eu era capaz de fazer minhas análises, tendo ainda a vantagem da vivência prática, de acesso a certas coisas que quem está por fora jamais terá.

    É disso que se trata. Esses que vivem de vender discurso precisam afastar o máximo possível outras possibilidades e outras pessoas para garantir o mercado. Por isso nunca terá um evento sobre lutas sociais com pessoas que realmente sejam das mesmas.

    Por fim, vou discordar dos autores porque o maior intelectual orgânico do país hoje é Pedro Paulo Soares, mais conhecido como Mano Brow. O rap é a primeira grande forma de instrução política coletiva no Brasil. E depois tem o Eduardo, do Facção Central e outros fantásticos, como o grupo A Família.

  3. Diz Gramsci no caderno 15: ” Pretende-se que sempre existam governados e governantes ou pretende-se crias as condições nas quais as necessidades dessas divisões desapareça? Isto é, parte-se da premissa da divisão perpetua do genero humano ou crê-se que ela é apenas um fato histórico, correspondente a certa condições?”

    Em outro caderno diz Gramsci: “Todo homem é um intelectual mas nem todo homem tem a função de intelectual”.

    Realmente o conceito que Gramsci forjou de intelectual orgânico e intelectual tradicional tinha apenas a intenção de tentar entender a influência dos setores da pequena burguesia rural na massa campônesa, além de explicar as expecializações técnicas no setor da industria.

    Outra bobagem é depois que você passa pela academica e é capaz de organizar as idéias então você diz que a academia não serve para nada e que o que interessa é o saber popular. Ora, só que quem faz a crítica só descobriu isso depois que passou pela academia, muito estranho!

    Agora a crítica ao burocratismo e ao centralismo é valida e pertinente! Agora temos que defender que os ditos intelectuais populares se apropriem dos saberes socialmente construidos pois esses são poderes!

  4. Quanto ao comentário apressado de Alex, este artigo não se refere a intelectuais mas à noção de intelectuais orgânicos. Nem se escreve neste artigo «que a academia não serve para nada e que o que interessa é o saber popular». Neste artigo chama-se a atenção para a função actualmente desempenhada pela esquerda universitária no processo de conversão de vanguardas populares em novas elites, ou seja, no processo de burocratização das lutas e de reforço e expansão da classe dos gestores. O problema não consiste na existência de intelectuais, sejam eles formados na academia ou no boteco ou em ambos os lugares. O problema consiste em retirar os intelectuais populares do meio popular e em inseri-los noutro meio social.

  5. Outro problema com os “intelectuais orgânicos” universitários, para além do fato de que vão falar aos explorados, a partir do manual acadêmico, que estes são explorados e invisibilizar assim as teorias que são realizadas pela base, é o fato de que vão virar dirigentes desses explorados, por dentro dos movimentos sociais, o que dá uma dimensão do grau de burocratização ao qual boa parte destes movimentos chegou.
    Porque, aí, não estamos apenas falando de professores que dão suas palestras e cursos, que a base pode ou não levar em conta (assim como o fazem os próprios estudantes) e muitas vezes se resume a um mesmo público e universo, mas de militantes oriundos da academia que reproduzem o padrão universitário (e seus manuais de entendimento do mundo) por dentro dos movimentos, nos espaços de sociabilidade, de luta (e, claro, de formação formal), gerando situações cotidianas de neutralização de outros saberes, teorias e formas.
    O modelo da universidade é transplantado para os movimentos, e assim são os que mais se adaptam a este modelo os que podem se destacar e alçar postos de coordenação.
    E são exatamente as lideranças burocratizadas as que estimulam este processo de submissão do saber cotidiano e prático aos moldes acadêmicos e às escolas doutrinárias, pois é mais fácil tratar com uma elite (e por isso de número reduzido) que é adestrada a falar a mesma linguagem, do que com a grande massa e seus saberes concretos.
    São raras as experiências em que não há a sobreposição do saber-da-titulação-acadêmica sobre o saber-dos-não-acadêmicos. Existem tentativas, mas são raras…

  6. Eu acho que o intelectual orgânico do momento deve ser algum funkeiro que a gente não conhece, visto que ainda faz parte de uma expressão estética criminalizada e ainda não assimilada pela nossa classe (embora em vias de assimilação).

  7. Também fiquei com impressão parecida com a do Alex sobre o artigo. Enfim… Sei lá, mas penso que esta crítica posterior ao processo de socialização acadêmica pode ser contraditória, visto que a própria experiência acadêmica é que possibilitou/instrumentalizou a crítica.
    Penso que as formas escolásticas de compreender o mundo, que caracterizam a academia, não constituem um problema em si. Creio que a questão é talvez seja a não inserção dos “intelectuais populares” em outras possibilidades de compreender a prática.
    Em relação aos intelectuais orgânicos citados, muitos hoje são mais identificados como símbolos culturais de consumo de classe média ilustrada de esquerda do que entre os “intelectuais populares”. Por isso concordo com o comentário do Ronan sobre os intelectuais do Rap.
    Parabéns e obrigado pelo texto.
    Abraços,
    Robson

  8. Ronan e Robson,
    Fico desvanecido com o elogio que fazem à minha capacidade de presciência, mas é preferível não exagerarem, porque no começo da década de 1970, quando primeiro ouvi a Nêga Dina, ou em 1984, quando evoquei o Adoniran como «intelectual orgânico», será que já havia Rap no Brasil?

  9. João, tudo bem?

    Sim, não havia o rap no Brasil, é notório. Mas só pensei em atualizar a referência e lembrar como uma referência dos anos 70 pode assumir hoje novos impactos. Nada além disso.
    Adoro ironias, mas temo quando ela se torna uma metralhadora giratória.
    Abraços.

  10. Sinto falta no artigo de uma maior elaboração no que se refere à articulação, em Gramsci, entre o conceito de “intelectual orgânico” e o conceito de “hegemonia”.

    Para Gramsci, “é muito comum um determinado grupo social, que está numa situação de subordinação com relação a outro grupo, adotar a concepção do mundo deste, mesmo que ela esteja em contradição com a sua atividade prática” (citação de artigo de Ana Rodrigues Cavalcanti, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n80/04.pdf). É aí que se situa o papel do intelectual orgânico: o intelectual orgânico da classe dominante elabora a concepção de mundo hegemônica; o intelectual da classe dominada, que pode ou não ter origem na classe dominada (vide Marx, Engels etc.), elabora uma concepção de mundo contra-hegemônica.

    Sua ação é indispensável, para Gramsci, numa situação em que o grupo social subordinado adota a concepção de mundo do grupo social hegemônico. Mas para que eles possam elaborar uma concepção de mundo contra-hegemônica eles precisam, necessariamente, “participar da vida prática do grupo social que representam e do qual fazem parte, tornando coerentes os problemas levantados pelo grupo em sua atividade prática e formando um bloco social e cultural” (op. cit.).

    Essa necessidade de dar coerência aos problemas levantados por um grupo social, deve-se ao fato de que “assim como Lênin, Gramsci acredita que a classe operária não chega a essa consciência crítica de maneira espontânea, não se torna independente ‘por si’ sem se organizar; esta organização deve partir ‘de fora’ e remete diretamente à questão política dos intelectuais, na medida em que, para Gramsci, não existe organização sem intelectuais. Estes representam o elemento de ligação teórico-prática, o nexo que liga a estrutura à superestrutura. A importância de uma orientação externa ao grupo social se deve à necessidade de que a nova concepção do mundo não se limite à relação imediata operário-patrão, mas que possa abranger as relações de todas as classes sociais entre si e suas relações com o Estado; que proporcione uma visão global da sociedade e não a experiência imediata do proletariado” (op. cit.).

    Assim o papel do intelectual orgânico da classe trabalhadora é o de estimular a classe trabalhadora a transcender o seu corporativismo tendencial. Penso que, apesar de a consciência ser proveniente da práxis, Gramsci está correto ao apontar o fato de que cada elemento da classe trabalhadora, individualmente considerado, não chega sozinho ao socialismo revolucionário, expressão teórica das lutas históricas da classe trabalhadora de longa duração (sobretudo no momento atual, em que essa tradição e essas lutas encontram-se num estágio de refluxo).

    Para as classes dominantes a ideologia é uma questão de sobrevivência e ela está inscrita, obrigatoriamente, em sua própria práxis. Mas a burguesia demorou elaborar o liberalismo enquanto ideologia coerente, e o capitalismo só pôde desenvolver-se por completo a partir do momento em que a burguesia, portadora da ideologia liberal, constituiu, através da revolução política burguesa, o Estado burguês (Cf. “A formação do Estado burguês no Brasil” de Décio Saes), fundado sobre esta ideologia. Para isso, ela teve que se inserir numa tradição, produzida e reproduzida por “intelectuais orgânicos”.

    Se as teses de Gramsci – de que as classes subalternas participam do bloco cultural das classes dominantes, e de que é necessária a ação de intelectuais, inseridos numa determinada tradição, para a gestação de um novo bloco cultural – não têm validade, então os esforços de intelectuais como os que publicam no Passa Palavra seriam, não só inúteis, mas desprovidos de lógica.

    Trata-se de combater a hegemonia ideológica e cultural estabelecida (como quando João Bernardo combate a ideologia ecológia, por exemplo). Se nesse processo pode ocorrer que os intelectuais usurpem o protagonismo sócio-histórico dos trabalhadores – constituindo-se em nova classe dominante, que organiza a sociedade com autonomia perante os trabalhadores – este é um problema acertadamente resolvido pelos autores: “A burocratização começa sempre pela base de um movimento, nunca pelo seu topo. Por mais que os dirigentes queiram às vezes assumir uma postura independente das bases, consagrar os seus privilégios momentâneos como um direito próprio e instituir um tipo de ditadura sobre as bases que os legitimam, jamais o poderão fazer se a luta mantiver um dinamismo coletivo e os trabalhadores comuns se conservarem ativos e vigilantes. Mas se os obstáculos que forem surgindo, o desânimo e as desilusões contribuírem para dissolver os elos coletivos e para transformar a atividade em passividade, então manifesta-se e desenvolve-se a burocratização, que constitui sempre uma forma de isolamento dos dirigentes”.

    Em suma, os autores parecem se esquecer que sua própria intervenção, em termos gramscianos, é uma disputa pela hegemonia, e que, nesse processo, eles estão sendo intelectuais orgânicos, mas do tipo “contra-hegemônico”.

    O quarto dos 12 pontos de partida do Passa Palavra expressa justamente o que quero dizer: “Assim como a maior parte dos trabalhadores não se reconhece hoje como constituindo uma classe social, a consciência de classe, quando neles existe, é demasiado difusa para constituir uma consciência política. Apesar disso, discutir a vida é a grande preocupação da esmagadora maioria das pessoas, e tanto mais necessária quanto mais difícil a vida se torna. Ora, esses temas não são despolitizados, apenas não se reconhecem como políticos. Politizar não significa substituir esses temas por outros diferentes, mas inserir os problemas particulares num contexto geral, assim como a consciência de classe resulta da compreensão de que os problemas sentidos por cada indivíduo se ligam, de uma ou outra maneira, a problemas mais gerais. Para as classes dominantes, falar de política é discutir as rivalidades e os jogos de forças. Para os anticapitalistas, falar de política é integrar o particular no geral, o individual no social” (Cf. em: http://passapalavra.info/?p=121).

  11. João,

    eu adcionei um hoje no comentário. Iria mesmo escrever que não havia o Mano Brow, mas pensei que o hoje já servisse como um item que indicasse a atualização. Entretanto, o Manolo é da minha idade e poderia ter adcionado outras referências.

    Mano Marrom,

    O Brow pode ir para a Nike, ir para a Suécia, entrar para a Daslu. Uma coisa é o que ele faz hoje outra é a obra do Racionais e como ela é apropriada. Você vai no Youtube a as letras mais ouvidas são “Nego Drama” e “A vida é desafio”, de alta crítica social. A obra dos Racionais foi a seguinte: eles mudaram a história da música brasileira. Além de outras coisas derivadas do impacto, eles mudaram diretamente um rap que antes falava de humor e de amor pitorescos e com eles passou a falar das desigualdades sociais, da vida cotidiana como luta, das utopias, fracassos e vitórias. Hoje pode-se tocar o que for, mas o que a periferia crua ouve são estas letras de profunda crítica. Há o rap de classe média, como o novo Criolo, agora não mais doido, e o Emicida mas eles não possuem audiência na periferia crua. O que toca lá são os mais profundos e críticos.

  12. Ao ler a sucessão de comentários, vejo que Manolo e eu acertámos no alvo e que o artigo doeu a muitos leitores exactamente onde devia doer. Porque em lugar nenhum nós falámos contra os intelectuais nem contra a existência de vanguardas nascidas da classe trabalhadora, as quais contam igualmente com intelectuais próprios. Nem em lugar nenhum falámos contra a intervenção militante de intelectuais de formação universitária no seio das lutas sociais. Este artigo, desde o lead, que não podia ser mais claro, até ao seu último parágrafo, destina-se a chamar a atenção para a acção nefasta que os departamentos de universidades estão a ter quando, sob o pretexto de formar intelectuais orgânicos vindos da vanguarda trabalhadora, formam elementos que irão renovar as elites capitalistas. No mesmo processo, como lembrou o comentário de alex com minúscula, os universitários vão ocupando cada vez mais lugares de direcção nos movimentos sociais. O nosso alvo aqui é a instituição universitária e os seus efeitos sobre os movimentos sociais. E é um lapso muito revelador que alguns intelectuais que lêem o Passa Palavra, pelo mero facto de serem intelectuais, se identifiquem com a instituição universitária a ponto de julgarem que o que se dirige a uma se dirige aos outros.

  13. Interessante é a produção estética e cultural que resulta desse contato entre a intelectualidade universitária e o dito povão. No afã de se misturarem ao povo, esses elementos vindos dos estratos de classe um pouco mais favorecidos (muitas vezes trabalhadores também, só que com maiores competências e qualificações perante o mercado de trabalho) acabam se transformando em figuras caricatas mais povo do que o próprio povo: passam a usar roupas surradas, às vezes rasgadas e um tanto encardidas, mudam os gostos musicais, gastronômicos, esforçam-se por tomar cachaça vagabunda e por aí vai.

    Ah, sim, tem as gírias, muitas delas. Acabam incorporando-nas ao seu vocabulário, mas de uma forma completamente artificial, ou melhor, sistematicamente encaixadas, produzindo um resultado bem peculiar, esquisito, que não faz outra coisa senão revelar a sua origem social e a crise moral que isto lhe causa na consciência. No entanto, somente assim, disfarçados de povo, é que podem encostar suas cabeças no travesseiro, quase em paz.

    E então vêm os debates sobre a linguagem que se deve adotar para se comunicar com o povo sem parecer intelectualóide ou muito “cabeçudo”, pesquisas e mais pesquisas sobre a cultura popular. Ora essa, reparem que esta é uma preocupação que, embora legítima, só pode existir para quem não tem contato algum com o povo, já que, para quem é nascido e criado no meio, este ajuste do linguajar nem se coloca como questão – afinal, eu falo e as pessoas entendem, às vezes mais, às vezes menos, como em qualquer comunidade linguística, e ponto final. E, para tanto, não preciso fazer de conta que tenho outra origem social ou envergonhar-me dela.

    Eis que munidos destes “autênticos” instrumentos de comunicação popular (de que o povo ri, é claro, pois, como diz um amigo meu, ser um autêntico proletário é como ser nobre, é preciso três gerações, no mínimo) eles se autoproclamam intermediadores: nada, nenhuma informação pode fluir diretamente sem que passe pelo filtro dos tradutores do povo, aqueles que supostamente vão tornar os conteúdos teóricos, normalmente mais densos, em mensagens inteligíveis ao pobre povo. Onde reside, obviamente, um pressuposto de que as pessoas do povo são incapazes de assimilar mensagens complexas, de que se prestam apenas ao trabalho braçal, e de onde emerge, por consequência, a importância da sua figura tutora.

    Por outro lado, eu digo tudo isso com certo pé atrás pois sou obrigado a admitir que quem hoje resguarda a firmeza e a radicalidade da “teoria revolucionária” – vamos chamá-la assim, por falta de uma nomenclatura melhor – são os elementos oriundos dos estratos universitários. Ou, e aí lanço uma questão para o debate – vocês acham que há espaços e campos institucionais autenticamente populares, sem qualquer interferência externa, que gestam uma prática e uma representação de mundo de ultrapassagem do capitalismo? E se há, onde estão?

    Abraços,
    Taiguara

  14. Compas, o debate está bem interessante e gostaria de chamar a atenção para uma questão. Quando era estudante universitária me juntei aos colegas que atuavam no Movimento Estudantil autônomo, sem o cabresto das siglas partidárias. Por lá fizemos muitas coisas como as ocupações por melhores condições e de permanência do estudantado pobre no interior da Universidade. Sendo estudante, moradora da Moradia Estudantil e dependente direta das políticas de Assistência Estudantil na Universidade, o movimento social do qual era possível fazer parte, portanto, era o ME. Uma vez concluído os estudos universitários deixaria de ser militante do ME, mas não deixaria de ser militante anticapitalista. Desse modo, busquei uma aproximação com os Movimentos Sociais, pois entendi o seu importante e necessário papel na luta social. Acontece que trazia comigo uma ingenuidade; estava “mal-acostumada” com a realidade do ME. Explico: no ME qualquer sujeito que apresentasse um pouquinho de revolta ou insatisfação nas assembleias era “disputado” ou “laçado” por membros de partidos para fazer parte de suas siglas e, então, participar do ME. No Movimento Social cujas direções são formadas por universitários acontece o contrário. Um militante anticapitalista que queira se aproximar do Movimento X Y precisa apresentar um pedigree, ou seja, provar sua experiência militante anterior para, só então, ser permitida ou não a aproximação com os movimentos. E, mesmo assim, isso parece não ser o bastante, pois “os capas”, os coordenadores disso e daquilo podem permitir ou não a sua aproximação com a base e sua eventual colaboração ao movimento. Alguns poderão dizer que é por motivo de SEGURANÇA. Sinceramente, acho que não. Por isso pergunto: existiria um critério oculto para poder se aproximar e colaborar com os Movimentos ou tratar-se-ia de certo receio daqueles em perder espaço no seu “feudo” ou mostrar quem manda ali?

    Abraços.

  15. Peço desculpa, já intervim demais neste debate e tinha decidido ficar calado, mas não resisto a contar uma história de que entretanto me lembrei.
    Um excelente fotógrafo português chamado Luís Pavão publicou em 1981 um livro intitulado Tabernas de Lisboa. Já reproduziram fotografias desse livro no Passa Palavra, pelo menos a ilustrar um dos artigos da Aldina Duarte. No prefácio Luís Pavão evoca a dificuldade que é entrar num pequeno estabelecimento frequentado por clientes habituais e começar a fotografá-los, as conversas prévias que é necessário ter. E conta que uma vez um dos fregueses lhe perguntou como é que ele ganhava a vida a fotografar pessoas do povo em tabernas, quem lhe pagava. «Sabe», respondeu Luís Pavão (cito de memória), «eu recebo um subsídio do Ministério da Cultura». E o sujeito: «Da Cultura! Mas nós aqui não temos cultura nenhuma!».

  16. Taiguara,

    Antes da universidade as pessoas combativas circulam pelas escolas, em muitas delas há iniciações teóricas e práticas dependendo do contexto. Há os sindicatos, alguns deles, há partidos, alguns deles, há movimentos, como o foi o Humanista, há os grupos de ação que se formam em torno do rap, grupos culturais, associações de moradores, movimentos… claro que a força de tudo isto varia, há contextos em que cidades chegam a ter centros formadores vários, fortes e com certas unificações.

    O duelo com o academicismo está na disputa interna que ocorre na universidade e também nas opções que se faz. Quando o sindicato dos professores de São Paulo opta em reunir 5 pesquisadores universitários para fazer a crítica do ensino paulista ao invés de organizar encontros, debates, estudos e publicações dos próprios professores reforça esse papel de evitar que os trabalhadores pensem e reproduz a divisão entre quem pensa e quem executa.

    Além de alguns anarquistas, o único que fazia o inverso era o Tragtenberg que se esforçava para que trabalhadores fossem falar nos eventos sobre lutas sociais na universidade, publicassem nas edições, participassem de coisas outras.

    Onde eu vejo clara autonomia no pensar é nas lutas dentro da universidade, principalmente as estudantís. Os professores universitários não estudam nem publicam sobre estas lutas porque são incômodo a ocultar. Daí que toda a memória e reflexão sobre as lutas estundantís seja feita pelo próprio movimento. Se quem lutou não passar a história adiante não vai ser em nenhum simpósio que ficarão registradas as ocupações de reitoria, os cadeiraços, os apitaços, enfim. E nenhum lutador destes vai ser convidado a relatar experiências em eventos sobre “luta sociais” organizadas por professores universitários.

  17. Taiguara, seu comentário meu fez lembrar muitas coisas. Tinha um professor meu, o mais brilhante dos que eu tive em sala de aula, que dedicou muito tempo da sua vida dando cursos de formação (acho que ele nem dava este nome, mas tudo bem…) aos movimentos sociais, em sua grande maioria trabalhadores rurais. E ele dizia que nunca, mais nunca mesmo, precisou mudar o tom de voz, o sotaque ou criar uma nova linguagem, ou caricaturar outra, para se comunicar com esses trabalhadores. Óbvio que ele sabia que nem todos os trabalhadores entendiam tudo que estava sendo dito, assim como a maior parte dos seus alunos não entendiam a sua matéria, mas o conhecimento que ele tinha a oferecer foi construído naquela linguagem e, se o saber que ele estava disponibilizando naquele momento não fosse apreendido, pelo menos eles, os trabalhadores, dominariam um pouco mais a linguagem que os professores usavam. Eu sempre achei esta postura muito digna e muito mais válida. Aliás, é com esta mesma lógica que outros dois amigos me disseram, ou assim eu entendi, que é muito mais válido ler e entender os inimigos do que os trabalhadores. Se não tiver nenhuma utilidade, pelo menos vai ser uma novidade.

    Outra coisa que me lembrou é como os movimentos de dentro da universidade, que nem sei se posso chamar mais de estudantil, entendem e usam da cultura popular para se identificarem com os trabalhadores. E, ao mesmo tempo, deixam de se perceberem enquanto tal. Eu acho esse o mais alto grau de alienação possível. O sujeito nega-se trabalhador, depois escolhe um trabalhador de outra fração da classe, sempre em situação inferior na escala da mais-valia fornecida aos capitalistas, e tenta se comportar como ele. Ou seja, ele se nega a lutar a própria luta e finge lutar a do outro. E enquanto fica só por aí é tranquilo, porque patético, ruim mesmo é quando ele leva a sério que é de outro “tipo” de trabalhador e se apropria da luta alheia, não como mais um, mas como gestor dela.

    Agora, o mais brutal é quando os interesses de fato se chocam. Um exemplo fantástico, apesar de alarmante, é a defesa da Lei Anti-baixaria que parte da esquerda anda fazendo por aqui pelas bandas da Bahia, em comunhão com as beatas, o movimento feminista e o que há de mais conservador na sociedade. Uma lei que, independente do conteúdo, ganhou ares de censura à cultura popular, que pretende-se julgadora do que é baixaria e o que não é, e assim decidir o que o poder público — no primeiro momento, porque não duvido nada que em breve a repressão vá aumentar, e aí reside o perigo maior — deve ou não permitir. Uma lei com ares totalmente moralistas. Neste momento, foda-se a cultura popular, o que eles querem mesmo é que visão de mundo deles se sobreponha à dos demais. E os interesses se chocam porque o único meio dessas culturas de fato se encontrarem é, hoje, pela música. É a única forma que a periferia, o campo e os mais precarizados dos trabalhadores se fazem chegar às casas dos militantes universitários, dos autoproclamados intelectuais orgânicos. Abra a sua casa pra mim, deixe vestir-me como você, comer da sua comida, tomar da sua cachaça, mas não bate à minha porta, por favor! Por exemplo, por essa lei muitas músicas dos Racionais, que têm referências explicitamente machistas, deveriam ser censuradas. Óbvio que por aqui na Bahia quem vai ser o alvo é o pagode. E eu vou é rir, porque chorar não dá mais, quando a hegemonia do PT terminar e a direita voltar ao poder, e com o mesmo texto de lei proibir letras que se colocam contra a “democracia” e a sociedade de direito, porque é o comunismo o usurpador da moral e dos bons costumes, mais uma vez.

    Por último, esta contradição de termos apontada pelo artigo em breve cairá por terra, pois com a defesa da agricultura familiar e o combate aos agrotóxicos, os intelectuais universitários estão a se tornar, eles mesmos e não a sua prática, orgânicos. E a única forma de não fomentá-los será cortando o fornecimento de adubos.

  18. d.caribé,
    Essa coisa de criar uma nova linguagem pra falar com um ou outro me fez lembrar da seguinte história: uma colega estava cursando Gestão Ambiental numa universidade federal aqui do Brasil, localizada no litoral do país, e a cada dia ela desanimava um pouco mais com o rumo daquela formação. Certo dia um de seus professores explicou que o objetivo maior de seu trabalho com aquela turma era ensiná-los a conversar com os pescadores locais para que no futuro próximo o desenvolvimento sustentável da região tivesse sucesso. Pronto! Foi a gota d`água! Anos depois do ocorrido ela me contava com detalhes: eu cheguei aqui na praia quando ainda mamava no peito de minha mãe, e sempre morei no mesmo bairro, que nasceu pelas mãos dos pescadores e seus familiares, como grande parte desta cidade. Foi com eles e com meus familiares que eu aprendi a falar e conversar. Não é possível que um filhinho de papai, criado dentro de apartamentos na capital do estado, pense que eu acredite que o que ele vai nos dizer me servirá pra porra alguma. Daquele dia em diante ela passou a estudar por conta própria, já foi aprovada em disputadíssimos concursos, segue morando no mesmo bairro e conseguindo conversar com pescadores.

  19. Devido a uma falha técnica, desapareceu um comentário que uma leitora ou um leitor colocou neste artigo cerca das 14h (hora do Brasil). Pedimos a esta pessoa o favor de inserir de novo esse comentário.
    As nossas desculpas

  20. Acho que há uma questão pragmática ligada à forma de organização dos movimentos sociais que obriga respostas imediatas a funções especializadas do estado, frente á qual, geralmente, os movimentos não tem tempo de formar organicamente seus grupos específicos de atuação que cumpra tais funções, mesmo que para isso, dentro da dinâmica dos grupos, não fosse necessário organizar grupos destacados específicos e fixos.

    Com isso quero dizer que a comissão de imprensa obriga a necessidade de um jornalista, a jurídica de um formado em direito, a produção rural, um agrônomo, mesmo que isso fosse secundário num contexto onde o movimento respondesse apenas a dinâmicas internas e suas próprias necessidades específicas enquanto movimento social determinado, em outras palavras, orgânico, mas orgânico em outro sentido.

    Deste modo, é notável como tantos militantes tentam o suicídio de classe, anulando o seu saber especializado para tentar uma entrada direta na base do movimento enquanto socialização num processo de solidariedade organizacional, mas acabam sendo obrigados a retornar aos seus cursos, ou a cumprir as funções especializadas em que eram treinados enquanto estudantes universitários.

    A função especializada em um contexto específico de necessidade de resposta imediata com um tempo determinado pelo opositor, no caso, o estado (no sentido amplo), acaba obrigando o movimento a cumprir e, deste modo, interiorizar suas funções específicas criando uma forma contraditória que dê conta de demandas internas e externas. Isto, para mim, explica melhor o que chamamos de burocratização e a incorporação de quadros de formação acadêmica e sua proximidade às lideranças.

    Formam-se aí dois níveis de relações hierarquizantes em tensão nos movimentos, a que se estabelece entre liderança e base e aquela que se estabelece ligada à capacidade de exercer funções especializadas que divide quadros universitários e os militantes formados na prática de ações concretas, dos quais, por seu lado, pode ou não se desdobrarem saberes reprodutíveis ou não.

    Pois o saber acadêmico, por pior que seja, possui esta característica de poder ser transmitível, logo, de se anular ou trocar o “especialista” ou quadro universitário, assim que aquele saber específico que lhe permite cumprir uma determinada função é incorporado. Isso também explica o porquê de sua permanência transitória.

    Um quadro universitário também tem uma tensão em si mesmo, a da relação salarial que estabelece o mundo capitalista e que divide entre trabalho intelectual e trabalho braçal, uma pressão constante que o atravessa toda a vez em que sente necessidade material “quase” como outros militantes, que podem possuir certo repertório, renda de outras fontes, fundos de emergência, etc, no caso de sua opção falhar.

  21. Nossa era meu o comentário. Quase impossível refazê-lo novamente..mas vou tentar recapitular em parte.

    Caro João Bernardo.

    Sempre tive dificuldades com a linguagem acadêmica, as vezes fica difícil para meu entendimento. Por isso sempre me identifico e aprendo muito com os “intelectuais orgânicos” termo que aqui chamou e vi pela primeira vez. Até esse texto se torna difícil pra mim em alguns momentos,mas no inicio e no final e pelos comentários consegui captar a ideia acredito. Sou admiradora de seu trabalho apesar de conhecer pouco ainda, pude ver alguns textos onde fala sobre o multiculturalismo aqui no passa o cita, “como a ideologia dominante numa época em que as classes capitalistas estão transnacionalizadas mas a classe trabalhadora está fragmentada, e o objectivo dessa corrente ideológica é manter a fragmentação da classe trabalhadora.” O que achei muito coerente e para mim até revelador vamos dizer, pois observo isso no meio acadêmico. Mas lendo aqui o seu texto, não relacionando fato do multiculturalismo, mas sim a “intelectualidade orgânica”, gostaria saber relacionando os dos textos que mencionei,como podemos através da academia e também de movimentos socais discutir e contribuir para essa construção das vanguardas trabalhadoras, ou quem sabe relacionar com o processo de resistência dentro das comunidades tradicionais? (pois enquanto lia não pude deixar de considerá-los intelectuais orgânicos). De que forma podemos colaborar para essa construção vanguardista nas classes excluídas na cidade e no campo? Como tratar desse assunto sem deixar que caiam nesse contexto da academia e das elites burocratizadoras?

    Desculpe se não fui clara.
    desde já agradeço.

  22. Cara P,
    Antes de mais, note que o artigo foi escrito pelo Manolo e por mim. De qualquer modo, respondo no que me diz respeito, e peço antecipadamente desculpa pela extensão da resposta.
    Na minha opinião, intelectual é aquela pessoa que consegue transcender os limites do imediato e passar do particular ao geral, do individual ao social. Pode fazer-se isso tendo uma instrução escolar rudimentar, desde que se use a capacidade de observação, desde que se saiba falar com as pessaoas e se saiba colocar as boas perguntas na hora certa. Por outro lado, pode ter-se licenciatura ou doutorado e não entender um palmo adiante do nariz. Quem aqui é o intelectual?
    Se considerarmos intelectual orgânico aquele que exprime de maneira concentrada os interesses e as noções que se encontram difusas num dado conjunto social, então há intelectuais orgânicos nascidos e formados nos meios populares. Eu mencionei os casos de Adoniran e de Zé Keti, vários leitores mencionaram outros mais recentes, e todos eles são intelectuais orgânicos populares.
    O que o Manolo e eu denunciamos neste artigo é a forma como departamentos universitários, dentro de um quadro institucional de cooperação com movimentos sociais, contribuem para transferir militantes do meio popular para um meio mais próximo das elites, e daí para as elites propriamente ditas. O Manolo e eu denunciamos o facto de o discurso académco se apresentar como o único discurso intelectual possível. Os intelectuais populares nunca entram na universidade como sujeitos, mas apenas como objecto de estudo dos académicos. Quem vai fazer a palestra não é o Adoniran nem o músico de Rap, mas o professor ou a professora que escreveram a tese acerca desses músicos.
    Assim, sob o pretexto de estar dando formação a militantes, os departamentos universitários que colaboram com os movimentos sociais estão a integrar esses militantes num quadro mental de outro tipo, que tem como função negar a intelectualidade popular. E o Manolo e eu chamamos a atenção para a íntima relação entre esse processo e aquele processo a que correntemente se chama burocratização das lutas, que consiste na transformação de militantes em dirigentes profissionais e destes em novos membros da elite política, ou até, mediante o manuseamento das verbas concedidas pelo governo ou por ONGs aos movimentos sociais, em novos membros da tecnocracia económica.
    Ora, isto é muito diferente da participação militante que intelectuais, individualmente considerados, possam ter nas lutas. Os movimentos sociais precisam de advogados, e muitos advogados ajudam corajosamente os movimentos. Mas um advogado, por si só, não é um intelectual, é um profissional qualificado. Do mesmo modo, os movimentos sociais pedem com frequência a colaboração de arquitectos, que por si só também não são intelectuais, mas técnicos qualificados. Ainda aqui as contradições podem surgir. Pense no seguinte. As ocupações de sem-tecto reunem muitos trabalhadores da construção civil, que colocando as suas especialidades em conjunto seriam perfeitamente capazes de erguer casas para as pessoas da ocupação. No entanto, o movimento reivindica subsídios governamentais para pagar casas que hão-de ser construídas sob a direcção de engenheiros e arquitectos. Porquê? Será que isto não corresponde a uma forma de autoridade exercida por pessoas com curso superior sobre outras que não o têm?
    Mas nestes casos, como disse, trata-se de profissionais qualificados e não verdadeiramente de intelectuais. Um intelectual não sabe fazer nada senão pesquisar, escrever e dar aulas. Numa ocupação ele é inútil e no máximo conseguirá ajudar a carregar alguns volumes de um lado para o outro. Muitas vezes nem isso, porque nunca carregou nada na vida. Seria bom que quando um intelectual participasse na actividade militante, o fizesse como uma pessoa comum, em vez de transportar consigo aquela auréola como um santo num andor. Penso que o intelectual militante se deve assumir, pelo menos fora da universidade, como uma pessoa comum. E é como pessoa comum que ele deve participar nos movimentos. As discussões são muito importantes e os debates também, desde que o intelectual não vá para os movimentos proferir palestras e se coloque como uma pessoa entre as demais. O mesmo sucede no trabalho organizativo. Será tão difícil para o intelectual ser uma pessoa comum? A esmagadora maioria da população mundial é composta por pessoas comuns.
    Além disso, a utilidade específica de um intelectual para os movimentos sociais reside na capacidade de divulgação que ele tem e nos contactos de que dispõe, que podem contribuir muito para quebrar o isolamento de uma luta, para lhe granjear apoios e para erguer obstáculos à repressão. Esta parece-me ser uma das ajudas mais efectivas que os intelectuais podem prestar aos movimentos.
    Mas quando vejo intelectuais ascenderem na hierarquia dos movimentos sociais e ocuparem lugares de direcção, penso que por cada intelectual que aparece na direcção de um movimento social a partir de cima, há um trabalhador de base que é impedido de ir para a direcção a partir de baixo. E esta é outra faceta da burocratização dos movimentos.

  23. A coisa mais bizarra que eu ví na minha vida, e olha que ví muita coisa bizarra, foi encontrar militantes de várias matizes, até anarquistas, que se dispunham a trabalhar de graça carregando cadeiras, buscando água, preenchendo listas, reservando espaços nas primeiras fileiras dos anfiteatros para os cardeais, transcrevendo palestras, buscando livros e materiais, trazendo o café. Isto em eventos onde quem ocupava o centro, tinha a palavra e o destaque eram os professores universitários. Os servos mal constam da lista de organizadores.

    Conheço capacho aí que se sujeitou a transcrever e fazer entrevistas que depois, no livro, só aparece o nome lá da doutora e o servo figura nos agradecimentos. Tipo patroa agradecendo as domésticas servís pela escravidão feliz de anos.

    Incrivelmente, são estes promotores do servilismo, da clientela e da escravidão rasteira dentro da universidade que se apresentam a dar cursos e são tidos como os intelectuais da libertação. A maioria dos vendedores de trem teriam muito a ensinar em termos de libertação a esses pretensos libertadores.

  24. Seria melhor se as objeções fossem duras mas sem supor que o interlocutor que discorda seja um estúpido ou um vigarista.

    “Um fato político de tamanha relevância para as lutas anticapitalistas só pode ser negado por quem quer que já se haja estabelecido enquanto vanguarda, mas prefira disfarçá-lo para tentar garantir privilégios; ou por quem pretenda, com razão, submeter aqueles primeiros a um rigoroso e necessário controle, negando sua existência na teoria na vã tentativa de fazê-los desaparecer na prática com suas palavras mágicas.”

    Este é apenas um exemplo do modo como os senhores encaram um debate teórico. Batem o martelo de um praticismo vulgar (o que na prática é má teoria) e ai! de quem estaria disposto, não fosse a condenação a priori, a discutir os conceitos com dureza, mas sem atitudes policialescas.

  25. Texto interessante e muito importante, apesar de eu achar que termina um pouco abruptamente, poderia desenvolver mais a conclusão que é também o cerne e a chamada do texto. De repente eu que tava gostando e queria mais, sei lá.

    Acho que seria produtivo que ele fosse complementado a partir da pergunta: dado o fato, apontado no texto, de que bem ou mal intencionadamente as vanguardas (ou elites) se constituem “naturalmente” no cotidiano dos movimentos e organizações, que métodos há para acabar ou reduzir os danos disso? O texto cita de passagem a rotação nas funções e outras coisas, mas temos em algum lugar uma discussão aprofundada destas questões, para além dos textos que sempre reaparecem aqui ali, como tirania das organizações sem estrutura etc. ?

    E agrego: temos exemplos práticos de premissas organizativas e sobretudo de ações práticas no campo organizacional a serem destacadas como alternativa? No processo zapatista mexicano há, ao menos em teoria, interessantes tentativas, sobretudo em relação aos caracoles, mas que esbarram por outro lado num Exército hierarquizado como nunca o EZLN se propõs a não ser. E em outras partes?

    Da onde podemos partir para avançar?, questiono ansioso e aguardando os comentários sempre pertinentes das discussões por acá.

    Abs,
    Júlio

  26. Olá,

    O comentário de Júlio é por demais interessante e faz parte de um contexto de discussões que estão sendo empreendidas por vários setores e pessoas ligadas aos movimentos sociais.

    Existem dois textos, publicados neste mesmo site, que dialogam diretamente com as questões que o Júlio apresentou ao debate – embora apresentem uma perspectiva distinta da utilizada por Manolo e João Bernardo. Acho, de verdade, de muita valia a leitura dessas duas reflexões – bem como dos debates que foram realizados em sua seção de comentários.

    Eis aqui o endereço dos textos que citei:

    Os apoiadores acadêmicos dos movimentos sociais: seu papel, seus desafios, de Marcelo Lopes de Souza – http://passapalavra.info/?p=29280

    e

    A burocratização do ponto de vista das organizações libertárias, Eduardo Tomazine Teixeira – http://passapalavra.info/?p=30556

    Abraços e seguimos o debate!

  27. E se organizassemos um debate – em roda, sem ninguém falando a partir da academia e com presença de militantes e ativistas de diversos grupos – sobre isso? Poderia ser transmitido virtualmente pelo fora do eixo hhaha brincadeira, mas poderíamos transmitir. Ou depois sintetizar a conversa num texto aqui pro PP.

  28. Julio, no meu entender e no que conheço dos autores deste texto, ‘vanguarda’ e ‘elite’ são duas coisas profundamente distintas, embora uma vanguarda possa se transformar em elite.
    Vanguardas, como é apontado no próprio texto, existem como a chuva e o sol: aqueles que ‘saem na frente’, os mais ativos, aqueles puxam, ou empurram os demais.

  29. O texto é muito bom, pra variar (referindo-me ao PassaPalavra) traz questões candentes e necessárias pra todo mundo que tá na luta e não quer se perder nas “mediações”. No entanto, como ninguém abordou isso, abordo eu:
    a referência ao Althusser como alguém que se “preparava mentalmente para ser um filósofo pirónomo e uxoricida”, representante de uma “reação do comunismo granítico” (???), foi realmente uma canalhice dos autores, o que me deixou muito surpreso, e foi feita num estilo ainda mais desabonador de tal comentário necrófago-novelesco (barroco? gongórico? idiotista? arcaico?).
    Uma pena, jogou fora uma chance de apresentar e criticar as contribuições (e/ou falta delas) do Althusser à reflexão sobre a reprodução das práticas ideológicas dominantes nos lugares mesmos em que se propõe a superá-las, em função dos voluntarismos, humanismos, empirismos,…
    Ironia que alguns comentários terminaram apontando para o próprio texto, que fala numa linguagem e numa interlocução tal que nada têm a ver com Adonirans e Zé Ketis, incorrendo numa “desapropriação” de suas imagens.

  30. Foi citado nesse artigo e já ouvi outros seguidores do site dizer sobre essa aproximação de Gramsci com o fascismo, mas nunca encontrei bibliografia a respeito. Poderiam, por favor, indicar onde pesquisar essa informação?

  31. Retirado de (http://www.passapalavra.info/2014/03/92349) “Sobre a tentativa de aproximação de Gramsci a D’Annunzio consultar Nino Daniele, «Fiume Bifronte», I Quaderni della Libertá, 1933, nº 4. Os artigos em que Gramsci prosseguiu aquela tentativa de aproximação podem ser lidos em Opere de Antonio Gramsci, vol. XI: Socialismo e Fascismo. L’Ordine Nuovo, 1921-1922, Turim: Giulio Einaudi, 1966, págs. 11-12, 23, 76-79 e em Renzo De Felice, Explicar o Fascismo, Lisboa: Edições 70, 1978, págs. 186-187.”

  32. Caro M.,
    Analisei a questão da tentativa de encontro entre Gramsci e D’Annunzio nas págs. 472-479 do meu livro Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Edições Afrontamento, 2003). Uma nova versão deste livro, muito ampliada, encontra-se na internet, por exemplo aqui:
    http://www.bresserpereira.org.br/terceiros/2015/junho/15.05.Labirintos-do-fascismo.pdf
    A questão está tratada nas págs. 724-732 desta nova versão. É aí que poderá encontrar, acompanhada pela respectiva bibliografia, a análise mais completa de um problema que tantos se esforçam por não conhecer. Ora, aquele episódio esquecido ajuda-nos a compreender clivagens e linhas de tensão que marcaram a história daquela época e persistem hoje.
    Cordialmente,
    João Bernardo

  33. Muito interessante o texto e comentários.
    O primeiro ponto que me ressalta o pensar, é justamente que o problema de como um intelectual externo pode unir-se a luta, sem com isso copta-la, seja negando outras formas de compreender e operar na realidade, ou propriamente usando do campo popular como trampolim e moeda de troca. No entanto, esse problema, embora muito pertinente, não é o único que se apresenta. Da minha perspectiva, de preto e pobre, que passou proveitosos 7 anos atuando em iniciativas de base, e politizando-se fora da academia, o espaço que a classe média ou filhos de elites com crise existencial devam ocupar, não é o centro do problema. Antes, me pergunto como eu, hoje estudante da USP, posso contribuir para um síntese dos modos de pensar e transformar a realidade pela e para as bases?
    As fronteiras entre saberes sofisticados e populares, por um lado, são frutos da divisão do trabalho (e controle do tempo), mas, por outro, em uma realidade de desemprego e crise nos modos de produção e reprodução da vida, são grandemente resultados de uma manutenção artificial e conveniente. É preciso opor-se à política encerrada ao panfleto, assim como, à autoridade superficial de quem se apropria de citações sobre as quais nada concebe de relevante e efetivamente proveitoso. E, ao mesmo tempo, estabelecer relações no interior das bases que permitam o desenvolvimento e compartilhamento de um conhecimento que apreenda a totalidade e dê respostas aos desafios concretos sempre renovados.
    Desse modo, o problema das vanguardas me parece mais relacionado, não com o fato delas existirem, mas delas se perpetuarem indefinidamente (da onde surge o esquema de acensão). E dos verdadeiros intelectuais orgânicos, igualmente, não de serem reconhecidos, mas de como desenvolverem-se para além dos espaços institucionalizados. Ou seja, reconhecer a existência de outros saberes possíveis, da perspectiva de seus autores (na qual me coloco), não diz muito sobre como fazer frente aos que vem de cima formados pelos espaços burgueses. Visto que, o próprio acesso a universidade pública ficou historicamente restrito a certas camadas, estas que, por sua vez, pouco se preocuparam em fazer oposição aos tijolos mágicos da universidade e centrar esforços em espaços de livre-acesso ao saber. Nesse sentido, me parece apressado a celebração do conhecimento popular, como modo já suficiente em si, de fazer frente a essa realidade, quando, contrariamente, uma construção muito mais estrutural precisa emergir do campo autônomo.
    Eu realmente não quero supor que os modos pedagógicos da universidade sejam os únicos ou mesmo superiores. Mas, ao meu ver, são sim passiveis de apropriação, da mesma forma que a tecnologia desenvolvida pelos trabalhadores no capitalismo, e ao serem absorvidos e colocados criticamente pelas bases, em conjunto com a cultura e saberes populares, podem permitir uma superação tanto em conteúdo quanto na pedagogia. Isso por meio do fortalecimento de novos espaços, concebidos no interior de novas dinâmicas sócio-produtivas, da emancipação do tempo e do rompimento com o capital.
    Enfim, é uma ótima discussão para pensar muitas coisas, só quis colocar um pouco do que eu imagino ser uma outra perspectiva, de quem busca construir a partir de outros pontos, de quem faz RAP e também lê os textos da faculdade, mas com animo de sempre avançar ambos. E nas minhas vivencias, especialmente hoje em dia, eu sinto meu desajuste em ambos os lados também.

  34. Retorno a este texto depois de tanto tempo de lê-lo pela primeira vez…
    João Bernardo (pergunto ao JB e não ao Manolo, porque sei de onde vem o gosto pelo estruturalismo), onde se localiza teoricamente no estruturalismo a questão presente na passagem abaixo, sobre a dupla função do intelectual acadêmico? Trata-se de uma posição presente, por exemplo, em Establet e Baudelot na discussão sobre Educação, em uma obra que nunca encontrei em português (os motivos me parecem óbvios…), tampouco citada positivamente, tendo sido estigmatizada no Brasil pelo gramsciano Demerval Saviani como “crítico-reprodutivista” (assim como Althusser, Passeron e Bourdieu). Onde se localiza em termos teóricos gerais esse debate, na antropologia (Levi-Strauss), na linguística (Jakobson)?

    Saudações.

    “Aplicando aqui os modelos de análise estruturalista de que um de nós tanto gosta, a função do intelectual académico não é só elaborar teorias. É, no mesmo gesto, esconder que existem teorias elaboradas por intelectuais não académicos. A função explícita do discurso académico é uma, que bem conhecemos; mas a sua função implícita é ocultar que existem outros discursos, elaborados noutros níveis e com outras regras. Os estruturalistas diriam, e eu também, que esta segunda função é mais decisiva do que a primeira.”

  35. Que texto necessário. Acrescentaria a essa lista nomes como o de Elza Soares, Nelson Cavaquinho( a quem pertence a faixa “Opinião”), Gonzaguinha, Sergio Sampaio, Belchior, e é claro, Noel Rosa. Recentemente tive o prazer de ver o documentário sobre Adoniran, “Meu nome é João Rubinato” (http://www.adorocinema.com/filmes/filme-263546/). Rubinato se queixava de que só veio a ser mais procurado pela mídia após cantar com Elis Regina, quase ao final de sua vida. Antes disso assustava a insistência em falar errado — “nós tem!”, “nós vai”. Um filme bastante conhecido no Brasil, “Eles não usam black-tie” reivindica a música de Adoniran “Nóis não usa as bleque tais”. Os dois tipos representados no filme, aqueles operários que se levantam e lutam contra seus patrões, e aqueles cujo medo do desemprego e da repressão policial pesa mais, correspondem a essa massa que junto de Adoniran, é desprovida do traje. Falam errado, pulam de barraco em barraco e vivem à espera do Trem das Onze.

  36. Caro Irado,

    Eu fui muito influenciado pelo estruturalismo, e de uma maneira definitiva, mas mais através da linguística do que de Althusser. As obras dele iniciais interessaram-me muito, o Pour Marx e o Lire le Capital, depois achei-o cada vez mais árido, de um esquematismo muito limitativo. Compreendi mais tarde que era a luta dele contra a loucura, a tentativa de agarrar a mente. Mas antes de me interessar por Althusser eu sofrera uma influência, mais profunda, do jovem Lukács da História e Consciência de Classe. Eu dizia brincando que era um althusseriano partidário da teoria da praxis. Mas a brincadeira era séria. Ainda o é.

    Na verdade, em matéria metodológica sou inteiramente pragmático. Uso o estruturalismo de viés linguístico na análise de grandes edifícios ideológicos individuais, quero dizer, do conjunto de obras de um mesmo autor que pretendem apresentar uma coerência interna. Nestes casos, parto do princípio metodológico de que existe um ponto vazio na obra, um ponto não nomeado nem reconhecido pelo autor, e que, se esse ponto for desvendado, a crítica de toda a obra fica elucidada. Aliás, considero que toda a obra foi construída para que o autor não tivesse consciência desse ponto vazio. Penso que é isto que sucede com os grandes conjuntos de obras desse tipo. Foi assim que pretendi analisar O Capital, de Marx, e La Comédie humaine, de Balzac.

    No entanto, a influência do estruturalismo nas minhas análises históricas é nula ou muito limitada. Para evocar as duas obras principais, não me parece que exista estruturalismo no estudo do regime senhorial na Europa medieval e, se existir no estudo do fascismo, é num âmbito muito limitado.

    Escrevi um único livro que pode considerar-se uma metodologia, o Dialéctica da Prática e da Ideologia, e a que ismo obedece ele globalmente? Não creio que se encaixe em algum. Recorro a uma ou outra ou outra metodologia consoante o objecto do estudo, dependendo da matéria-prima com que vou trabalhar. Acho engraçado que nas universidades os professores e os respectivos alunos sejam gramscianos ou lukácsianos ou thompsonianos ou qualquer outra coisa assim. O que sucede é que só conseguem trabalhar com dados tipos de factos e excluem todos os que não se encaixem na metodologia preferida. Em vez de ser cada chapéu para cada cabeça, só aceitam as cabeças que caibam num certo chapéu. As outras são excluídas, com o argumento de que não são verdadeiras cabeças.

    Prefiro a metodologia do carpinteiro, que quando precisa usa uma serra, noutros casos uma chave-de-parafusos ou ainda um martelo. Nunca conheci, e aliás duvido que os haja, carpinteiros serristas ou martelistas ou chave-de-parafusistas.

  37. Caro JB, seu comentário sanou uma parte das minhas dúvidas, acerca do seu posicionamento geral em relação ao estruturalismo. Mas, se houver algo mais a ser dito sobre a localização dessa questão da dupla função dos intelectuais no estruturalismo, ou como abordas essa questão a partir do estruturalismo, eu agradeço.

    No entanto, sua resposta me trouxe outras indagações… concordo com a parcial (ou mesmo total) esterilidade de se seguir um único autor, como nos casos citados, até porque trata-se de uma atitude acadêmica que tenta transformar autores individualizados em correntes políticas, fazendo o caminho inverso ao das lutas. Ainda que um Trotski, por exemplo, tenha gerado uma corrente dita trotskista, isto se deu a partir de processos concretos de luta, envolvendo teoria e prática deste militante-intelectual (independente dos resultados políticos questionáveis…). Na academia tenta se forjar linhas políticas a partir da canonização de intelectuais, muitas vezes, sem relevância real nas lutas sociais ou, pior, ignorando totalmente suas práticas políticas. Enfim, a minha questão é sobre os possíveis limites de uma atitude metodológica pragmática, na medida em que os diferentes métodos têm bases teórico-epistemológicas, e também políticas, muitas vezes antagônicas. Neste sentido, poderíamos comparar uma concepção teórico-metodológica com um martelo, por exemplo? Um martelo apresenta uma “neutralidade” que nos permite fazer dele o que quisermos, dentro de suas possibilidades materiais, mas a junção de diferentes métodos (a depender de quais) não pode nos levar a resultados pouco sólidos científica e politicamente, considerando-se o grau de incoerência epistemológica que apresentem entre si? Quais os limites e possibilidades colocados pelo antagonismo entre dogmatismo e ecletismo? Conheço sua discussão (também estruturalista) sobre a possibilidade de se apropriar de uma técnica tomada isoladamente em diferentes sistemas tecnológicos, estes determinados pelos modos de produção. Mas, os métodos estão mais para as “técnicas” ou mais para os “sistemas tecnológicos”, portanto, não neutros e socialmente determinados?

  38. Caro Irado,

    Você coloca-me a questão dos «possíveis limites de uma atitude metodológica pragmática» e evoca a divisão, que eu proponho, entre técnicas e sistemas tecnológicos. Aliás, essa divisão sim, é cem por cento estruturalista. Mas dou um exemplo de que eu muito gosto, o do fogo. A domesticação do fogo foi uma das primeiras tecnologias materiais de que as sociedades humanas dispuseram, e ainda no século XIX havia povos que praticamente se reduziam a essa tecnologia. Esses povos dispunham de tecnologias sociais sofisticadas, mas agora estou a referir apenas as materiais. Ora, para estes povos o fogo não era uma técnica, era um sistema tecnológico, porque se encontrava no centro de rituais e devoções e de toda a vida espiritual. Depois o fogo laicizou-se e em seguida banalizou-se. Temos aqui um exemplo flagrante de um sistema tecnológico que foi neutralizado e apropriado como técnica por outros sistemas tecnológicos muito diferentes.

    Vejamos agora outra faceta da questão, a do «grau de incoerência epistemológica» e de «antagonismo entre dogmatismo e eclectismo». No período entre as duas revoluções russas, de 1905 e de 1917, Lenin dedicou-se a estudos filosóficos, como é bem sabido, dos quais resultaram, entre outros textos, o Materialismo e Empiriocriticismo. Um dos objectivos dele era minar a vasta base de apoio de que Bogdanov dispunha entre os bolchevistas, mas para isso podia ter escolhido outras formas de abordagem filosófica, e não aquela que adoptou. Ora, ao criticar a filosofia de Ernst Mach, Lenin criticou também tudo aquilo que considerava as consequências científicas dessa filosofia, e com que resultados? Numa época que vai desde a experiência de Michelson-Morley e dos trabalhos de Poincaré e de Lorentz, que culmina com a inauguração da física quântica na passagem do século, que se amplia definitivamente com os três artigos de Einstein de 1905, para culminar em 1913 com o modelo atómico de Niels Bohr, em suma, durante essa época colossal o revolucionário Lenin ficou inteiramente cego para toda a revolução científica que ocorria em seu redor. Foi o mesmo tipo de cegueira que levou Stalin, mais tarde, a apoiar Lysenko.

    Agora, outra faceta ainda. Quando Heisenberg propôs o princípio da incerteza, ele era um jovem de extrema-direita que, enquanto estudante, havia auxiliado os corpos franco na repressão à revolução dos conselhos em Munique. Depois, inseriu-se sem atritos no Terceiro Reich e na esfera ideológica do nacional-socialismo — embora não da Física Ariana — tanto mais que o indeterminismo da física quântica fora apresentado pelos fascistas como uma confirmação do irracionalismo filosófico. Outro grande físico, Pascual Jordan, foi um membro activo das milícias nacional-socialistas e continuou depois da guerra a defender as posições políticas da extrema-direita, o que decerto constituiu o motivo para que não lhe concedessem o Prémio Nobel. Ora, sem a teoria da incerteza nós os dois não estaríamos aqui a debater por intermédio de computadores e da internet.

    O grande risco é o de tomar uma filosofia ou uma metodologia como um a priori, e de pretender deduzir o que é ou não aceitável cientificamente. Uma metodologia, para mim, é uma hipótese de trabalho, e a investigação empírica, laboratorial ou mediante observação e documentos, obrigará a corrigir a metodologia ou a pô-la de lado, num permanente vaivém.

    A resposta está longa, termino propondo-lhe uma experiência. Agarre aí num rapaz e numa moça bem de esquerda, materialistas-dialécticos, e pergunte-lhes o que entendem por materialismo. Aposto que a resposta remete para o iluminismo do século XVIII. Dois séculos perdidos.

  39. Hoje, ao ver a notícia sobre o desabamento de um prédio em Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, me lembrei do questionamento de João Bernardo:

    “Pense no seguinte. As ocupações de sem-tecto reunem muitos trabalhadores da construção civil, que colocando as suas especialidades em conjunto seriam perfeitamente capazes de erguer casas para as pessoas da ocupação. No entanto, o movimento reivindica subsídios governamentais para pagar casas que hão-de ser construídas sob a direcção de engenheiros e arquitectos. Porquê? Será que isto não corresponde a uma forma de autoridade exercida por pessoas com curso superior sobre outras que não o têm?”

    Lendo uma das matérias sobre o caso de hoje, fica claro o porquê:

    “Um autônomo, que morou no Rio das Pedras e que chegou a trabalhar como pedreiro para o comerciante Genivan Gomes Macedo, contou que o prédio que desabou, na madrugada desta quinta-feira, começou a ser construído há cerca de 15 anos, tendo tido o quarto pavimento finalizado há aproximadamente oito. Em depoimento (…) ele afirmou que nenhuma construtora foi contratada tampouco a obra teve acompanhamento de um engenheiro ou um arquiteto.”

    É que não basta erguer prédios ou casas, também é necessário fazer com que permaneçam em pé.

  40. Respondendo uma questão lateral, creio que o comentário do JB se insere no contexto da autogestão nas lutas sociais. Uma coisa são os próprios trabalhadores reunirem seus conhecimentos técnicos em um modelo de autogestão e construírem suas moradias.

    Outra coisa muito diferente é o da notícia veiculada por ti: prédios construídos por grupos de milicianos no Rio de Janeiro, comumente envolvidos com extorsão de moradores, roubo de terras, trafico de drogas, etc. Quais as relações de trabalho desenvolvidas nessas obras? Quem garante que não havia um engenheiro orientando informalmente essas construções?

    A vontade de atacar e de criticar é bem grande por vezes.

  41. Além de erguê-los, de mantê-los em pé, outro desafio se coloca: como retomar o controle desses espaços, não perante o Estado, mas perante às milícias que as controlam? Eduardo Paes afirmou ontem que [https://www.mixvale.com.br/2021/06/03/milicia-nao-constroi-mais-porcaria-nenhuma-no-rio-diz-paes-apos-predio-desabar/]: “Comigo, milícia não vai construir mais porcaria nenhuma nessa cidade. Estamos demolindo permanentemente, e a gente tem o desafio de cuidar do passivo”

  42. Pedro,
    Informe-se. O prédio foi uma construção familiar, não de milícias, e o próprio dono disse que não contratou arquiteto ou engenheiro. Aliás, a falta do recurso a profissionais técnicos e padrões de qualidade é uma característica das obras realizadas pelos milicianos, como na tragédia da Muzema há alguns anos. O intuito do meu comentário foi ressaltar a importância desses profissionais nas construções, algo que a meu ver foi ignorado na questão levantada pelo João Bernardo, que também demonstrou desconhecer o que diz a legislação brasileira sobre os protocolos a serem seguidos na construção civil.
    É um problema social que a grande maioria das construções no país sejam realizadas sem os protocolos técnicos adequados, e tragédias assim tendem continuar ocorrendo enquanto perdurar esse cenário.

  43. Caro João Bernardo,

    Quando você menciona “estruturalismo de viés linguístico na análise de grandes edifícios ideológicos individuais”, a quais linguistas e teorias você está se referindo? Benveniste e sua Teoria da Enunciação estão entre eles?

    Além disso, ao se referir ao “ponto vazio”, você me faz lembrar dos “silêncios” conforme colocados por Althusser, especialmente em Ler o Capital. Pode-se afirmar que certos métodos de Althusser ainda influenciam suas análises atualmente?

    Por fim, em sua nova série de artigos Sobre o Dinheiro, percebi que você revisita suas obras anteriores, especialmente a partir dos “silêncios” sobre o tema. Portanto, reiterando a pergunta anterior, a análise desses silêncios foi influenciada por Althusser?

    Saudações.

  44. Caro Francisco Gonzaga,

    Émile Benveniste interessou-me muito não só pelas suas perspectivas de abordagem da linguística, mas ainda por ser um linguista que escrevia para historiadores, aplicando os métodos próprios da linguística na resolução de problemas historiográficos, nomeadamente em Le Vocabulaire des institutions indo-européennes. Do mesmo modo, e pelos mesmos motivos, sou influenciado por Jean Pierre Faye, especialmente o seu Langages totalitaires, que considero como uma das quatro melhores obras de História que alguma vez foram escritas.

    Da linguística passa-se facilmente a Althusser, e sem dúvida a influência que o seu pensamento exerceu sobre mim foi, e continua a ser, grande, nomeadamente no aspecto que você refere, a noção de que um autor escreve uma obra para silenciar o núcleo interno contraditório dessa obra. Assim, a função da crítica — da crítica aos outros ou a si mesmo — será desvendar esse ponto vazio. Toda a arquitectura do Marx Crítico de Marx decorre desta concepção, tal como foi ela que presidiu a A Sociedade Burguesa de Um e Outro Lado do Espelho. A noção de ponto-vazio e dos silêncios que o encobrem está também subjacente ao Labirintos do Fascismo, por vezes até de maneira flagrante, especialmente no capítulo sobre a tripla guerra civil em Espanha, onde procuro elucidar os motivos de uma ausência. E eu, que evito reler-me a mim próprio, tive de o fazer no recente ensaio Sobre o dinheiro, para detectar como ao longo de anos procurara iludir um problema e, assim, atribuir agora a esse problema o lugar central.

  45. espetáculo mercantil ou dinheiro como linguagem : epílogo de uma longa marcha, da crítica da economia política para a apologia da crematistica despotica

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