Por Manolo

Certa feita comentei com um companheiro: teorias da revolução já temos de sobra; o que infelizmente falta aos anticapitalistas de hoje é elaborar uma teoria dos refluxos. Mesmo entre os mais “anti-autoritários”, “autônomos” e “horizontais” parece haver um certo “misticismo das lideranças” que os leva a avaliar todas e cada uma das derrotas sofridas na luta anticapitalista como “traição” de algum outro setor da esquerda com cuja estratégia ou tática discordam; ora, como é possível falar em “traição” quando o projeto político de quem “trai” já se transformou em outro, bastante diferente daquilo que se supunha ser comum a todos da esquerda? Como é possível negar as “lideranças” e, ao mesmo tempo, esperar delas a todo tempo o mesmo que os cristãos aguardam do Messias?

Não é raro que nos encontremos, na luta anticapitalista, diante de situações de derrota, de repressão pesada ou de simples transformação de movimentos de luta coletivos extremamente aguerridos em movimentos coletivos subterrâneos e passivos ou mesmo em lutas individualizadas; isto não se explica simplesmente com o argumento da “traição”. Um entendimento dos mecanismos empregues na luta anticapitalista, continuava a comentar com o mesmo companheiro, talvez permita fazer a passagem de uma situação a outra sem ceder aos agentes do capitalismo o melhor de nossas energias e de nosso “terreno”.

Banner do Fórum Social Mundial Temático Bahia (29 a 31 de janeiro de 2010).

Esta reflexão, velha de quase três anos, veio à mente com maior força após a realização do Fórum Social Mundial Temático (FSMT) na Bahia entre os dias 29 a 31 de janeiro. O evento – que custou R$ 1,5 milhão, dos quais R$ 750 mil foram oferecidos pelo Governo do Estado da Bahia e outros tantos pelo Banco do Nordeste[1] – contou com diversos grupos em seu Comitê Facilitador[2] e mobilizou parte da esquerda na Bahia para sua realização. Muito embora haja diversas avaliações positivas do FSMT, pois “habilita o nosso Estado como candidato a sediar o Fórum Social Mundial de 2013”[3], o evento fracassou em diversos quesitos, dos quais seguem apenas os dez mais críticos:

a) Já em 8 de outubro de 2009 a Regional Nordeste 2 da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) lançou carta aberta onde afirmou que “só foi convidada para o debate em agosto, assim como os outros movimentos sociais baianos, quando passos importantes na sua organização já tinham sido dados e que inviabilizam uma participação plena, ativa e democrática da Associação bem como das diversas organizações populares e sociais, companheiros históricos na construção do FSM”, e, num contexto em que “as principais questões quanto a organização do evento já estão definidas”, questionou: “qual seria o papel da ABONG NE2? Até que ponto ainda há espaço para rever conteúdo e metodologia do evento? Qual tempo e autonomia que uma coordenação colegiada, formada há quatro meses do FSMT poderia ainda ter para opinar sobre a escolha dos temas, data de realização, convidados e parceria com os Governos? Em que medida é possível assegurar um caráter politicamente autônomo em um evento realizado em ano eleitoral e com apoio ostensivo do governo estadual que trabalha sua reeleição?” Estas questões, somadas às “distintas (…) avaliações de suas associadas neste processo”, levaram a entidade a não participar da organização do Fórum, e desde então um sentimento generalizado de domínio do Comitê Organizador pelas centrais sindicais deu a tônica da construção do evento.

b) Dos 50 mil participantes esperados para o FSMT em dezembro de 2009[4] estima-se que, dentre 15 mil inscritos, apenas 10 mil hajam participado efetivamente das atividades do FSMT[5], e há quem calcule o número de participantes em no máximo 5 mil[6].

c) Faltando menos de um mês para o evento, a programação oficial mudou três vezes de lugar: da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) para a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, por último, para um circuito de hotéis de quatro e cinco estrelas[7] que incluiu também o Teatro Castro Alves. Estas mudanças de última hora confundiram muitos participantes e esvaziaram atividades já programadas.

d) A dita “descentralização” das atividades “autogestionárias” foi bastante seletiva: só foram divulgadas no portal do Fórum aquelas organizadas por entidades integrantes do Comitê Organizador[8], enquanto a programação de atividades e plenárias realizada na Universidade Católica (UCSal) – que incluiu atividades como a conferência pró-CONCLAT, o encontro nacional da CONLUTAS, reuniões da Consulta Popular e da Assembleia Popular – foi invisibilizada sem maiores explicações.

e) Nenhum dos chefes de Estado convidado para o Fórum compareceu; “segundo a organização, os que declinaram os convites alegaram problemas de agenda. Alguns sequer responderam”[9].

f) A Carta de Salvador[10], documento final do FSMT Bahia, é, segundo Franklin Oliveira Jr. (integrante do Comitê Organizador do FSMT Bahia), “resultado de uma reunião da CMS em que somente seus militantes foram avisados que iria ocorrer. O fórum ficou devendo uma elaboração coletiva de respostas á crise ao Brasil e ao mundo[11]”.

g) A falta de comunicação interna na organização do Fórum era tão grande que, faltando menos de três dias para o evento, passagens para palestrantes não haviam sido compradas – chegou-se, por exemplo, ao ponto de a própria organização, quando lhe foi solicitado pela agência de viagens contratada o fornecimento de contatos de palestrantes já confirmados para comprar as passagens, haver dado a seguinte orientação à agência, mesmo tendo estes contatos em mãos: “ah, procura aí no Google…”[12]

h) Parte não pouco significativa das atividades foi realizada como parte do seminário Crise e oportunidades: uma agenda de mudanças estruturais, parceria do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do Instituto Paulo Freire e do Banco do Nordeste que, diante das expectativas quanto ao FSMT, pareceu bastante deslocada.

i) Diversas atividades previstas foram simplesmente cortadas, seja por falta de capacidade de articulação de seus proponentes (especialmente no caso das atividades “autogeridas”), seja por boicote puro e simples[13].

j) Se a opinião de taxistas de uma cidade que é o segundo destino turístico de um país servem como índice de divulgação de um evento (por serem chamados a levar e trazer pessoas para lá e para cá, terminam sendo uma categoria bastante informada sobre estes pormenores), nem mesmo aqueles com ponto próximo aos locais do Fórum sabiam que ele estava acontecendo, ou sequer do que se tratava – e não foram exceção, pois, noves fora pouquíssimas faixas em pontos de baixa visibilidade, não houve qualquer divulgação massiva do Fórum para a população soteropolitana.

Painel “Violência nas periferias urbanas e ameaça à democracia”, considerado por muitos como o melhor do FSMT Bahia. Na mesa, da esquerda para a direita: Hamilton Borges, Maximilano Dante, Raúl Zibechi, Maurício Campos, Suzana Varjão, Bartíria Costa e João Whitaker.

Dentre aqueles que permaneceram mais à esquerda nos últimos dez anos, este é o sentido geral das avaliações: durante o FSMT Bahia ocorreram dois Fóruns dentro do mesmo Fórum: um do governo e outro dos movimentos sociais. Esta avaliação vem, geralmente, mesclada com um sem-número de denúncias, de acusações de “traição”, de “interferência do Governo do Estado no Fórum” (que ocorreu mesmo, e não adianta negar)… Ora, não estaríamos, neste caso, esperando apoio demais daqueles sobre quem deveríamos, no mínimo, exercer uma vigilância constante e manter uma desconfiança muito mais que saudável?

Os alvos da crítica não podem ser os mínimos detalhes da organização do FSMT, o que resvala no denuncismo estéril; uma crítica fundamentada deve ser feita à própria opção que fizemos pela construção do FSM, para que caiam de uma vez os mitos sobre o “outro mundo possível”.

Para fazer um balanco historicamente mais preciso de um evento nascido sob dois signos – o ápice da onda anticapitalista internacional iniciada com os protestos contra o Banco Mundial e o FMI em Berlin (1988), que se convencionou chamar “movimentos anti-globalização”, violentamente encerrado com as manifestações contra a Reunião de Cúpula do G8 em Gênova (2001); e o redirecionamento destas lutas, por parte de um setor moderado da esquerda global, do anticapitalismo explícito para a construção de um capitalismo “mais justo” – é preciso ter como base a luta anticapitalista internacional e seus ciclos mais recentes, a contar da década de 1980. Do contrário, corre-se o risco de manter este balanço preso nos limites ditados pelo setor mais moderado da esquerda, que optou desde há muito pela “humanização do capitalismo” e tem pautado o debate anticapitalista com este discurso nos últimos nove anos.

Leia as demais partes: [2][3][4][5][6][7]

Notas

[1]: “Passeata na orla de Salvador encerra Fórum Social Mundial”. Estado de São Paulo, 31.01.2010. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,passeata-na-orla-de-salvador-encerra-forum-social-mundial,504353,0.htm.

[2]: Segundo o site do Fórum Social Mundial Temático (http://www.fsmtbahia.com.br), participaram da organização do evento as seguintes entidades: Sociedade Cultural Alabê; Associação Brasileira de Clubes da Melhor Idade (ABCMI); Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ); Confederação dos Trabalhadores Brasileiros (CTB); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Diálogo e Diversidade LGBT Brasil; Federação Nacional de Associações de DETRAN (FENASDETRAN); Fórum Nacional de Mulheres Negras (FNMN); Força Sindical; Grupo Omi Odê; Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Via Campesina; Movimento Negro Unificado (MNU); União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES); União Geral dos Trabalhadores (UGT); União Nacional dos Estudantes (UNE); União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO).

[3]: Susete da Luz, “Discurso na abertura do Fórum Social Mundial Temático”, 29.01.2010. http://www.fsmtbahia.com.br/conteudo.php?ID=48

[4]: “Fórum Social Mundial Temático Bahia acontece de 29 a 31 de janeiro”. ADITAL, 22.12.2009. http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=44151

[5]: “Termina Fórum Social Mundial Temático na Bahia”. Estado de São Paulo, 31.01.2010. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,termina-forum-social-mundial-tematico-na-bahia,504380,0.htm

[6]: Franklin Oliveira Jr., “FSM Temático: muitas promessas, poucos resultados”. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/02/464511.shtml

[7]: Mais especificamente, o Hotel da Bahia (cinco estrelas), o Hotel Sol Victoria Marina (quatro estrelas) e o Hotel Sol Barra (quatro estrelas).

[8]: Mais especificamente, as atividades “Trânsito e vida”, organizada pela FENASDETRAN; “Pré-sal”, organizada pela CUT; “Religião de matrizes africanas”, organizada pelo Grupo Omi Ode, pela FENACAB e pela FNMN.

[9]: “Termina Fórum Social Mundial Temático na Bahia”. Estado de São Paulo, 31.01.2010. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,termina-forum-social-mundial-tematico-na-bahia,504380,0.htm

[10]: http://www.fsmtbahia.com.br/conteudo.php?ID=50

[11]: Franklin Oliveira Jr., “FSM Temático: muitas promessas, poucos resultados”. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/02/464511.shtml.

[12]: Relato de Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência (RJ). Ainda segundo Maurício, a orientação foi seguida, e o “convidado” contatado não foi ele, mas Maurício Campos Júnior, Secretário de Defesa Social (segurança pública) do Estado de Minas Gerais, que teria recusado prontamente o convite.

[13]: Segundo carta aberta divulgada logo ao final do Fórum pela Coordenação de Cultura do FSMT, “Dos cerca de R$1.500.000,00 (um milhão e meio) divulgados pela imprensa como sendo o custo total do evento, menos de 0,5% foi destinado às demandas da cultura alternativa e popular, isto porque, toda a programação cultural da cidade que tinha apoio governamental foi incluída na pauta do FSMT, tornando-se assim a programação oficial de cultura. Enquanto as atividades artísticas encaminhadas para a coordenação cultural do fórum não tiveram nem água durante as apresentações, as festejadas ‘personalidades’ intelectuais e artísticas tiveram à sua disposição todo o aparato necessário à satisfação de quaisquer demandas apresentadas. Por diversas vezes a comissão organizadora foi informada de que não seria possível levar adiante o projeto sem o mínimo de estrutura física (a sede contava apenas com dois computadores com acesso à internet e uma linha de telefone fixo para serem utilizados por todas as coordenações) e financeira, tendo em vista que tanto a alimentação quanto o transporte da equipe foi paga majoritariamente pelos próprios integrantes. Foi apresentado um orçamento mínimo de R$ 30mil para garantir a realização de quatro espaços para apresentações musicais de 51 artistas (Aldeia Jimi Hendrix – Porto da Barra, Aldeia Bob Marley – UCSal Campus Federação, Aldeia Chico Science – Passeio Público e Canoa Cibernética – Uneb) e a resposta – tardiamente fornecida – foi que, por ser demasiado elevado, ele não seria contemplado. O resultado não poderia ser outro: dos quatro locais, apenas o do Porto da Barra funcionou (e ainda assim de forma caótica), mas tão somente por encontrar-se em local de ampla visibilidade. Assim sendo, o que se viu neste Fórum foram duas agendas de cultura: uma elitizada, onde alguns artistas foram pagos para se apresentar além de hospedarem-se em hotéis confortáveis e outra, onde as atrações da periferia e movimentos populares não obtiveram sequer o mínimo respeito por parte das ‘autoridades competentes’, haja visto que várias bandas não puderam se apresentar porque não lhes foi assegurado sequer aparelhagem e transporte para fazer o traslado dos equipamentos e integrantes. Por fim, é perceptível o total descaso e desrespeito com as demandas culturais populares do Fórum Social Mundial Temático Bahia, dado que não foram fornecidas condições materiais e estruturais satisfatórias para a realização de mais de 80% das atividades preparadas e encaminhadas pela coordenação. ”

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