Terceira e última parte de um texto de autor anónimo, que circula em páginas sírias do Facebook, traduzido do árabe e aqui apresentado por um professor universitário egípcio. “Se já provaste o sabor da prisão e já foste libertado, há uma coisa que sairá para sempre do teu coração: o medo.” Por Hani Sayed e Comité Local de Coordenação do Bairro XXX (Síria)

Conclusão do texto que, na parte (1) deste artigo, foi apresentado e comentado por Hani Sayed e que é difundido com a assinatura do Comité Local de Coordenação do Bairro XXX (Síria).

O interrogatório

Quando o interrogador te exige o nome dos teus amigos e te encontras obrigado a falar, começa pelos que já são bem conhecidos, quer dizer, a possibilidade de eles serem apanhados já é muito grande, digas ou não digas os nomes deles. Tenta manter-te sem ligações a colectivos ou grupos, e continua a sustentar que participaste com entusiasmo apenas porque viste o resto do pessoal a desfilar.

Não dê nomes de pessoas que pertençam a diferentes grupos (universidade, bairro, Facebook). Se começar a haver prisões em cadeia, a coisa seguirá rumos diversificados e acabarás por implicar demasiadas pessoas. Restringe o teu pensamento a um grupo de amigos e, sempre que fores forçado a largar um nome, escolhes um do mesmo grupo. Afinal de contas, qualquer grupo tem um número limitado de elementos e [assim] a coisa não se vai expandir como uma sequência aritmética.

Quando se chegar aos espancamentos e à tortura, é importante saberes, tens de saber como isso é feito (!) e perceberes o processo – o terror que se sente é causado sobretudo pela surpresa.

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Espancamentos e torturas

Podem ir de (1) uma bofetada na cara ou um pontapé ao (2) dulab (pneu), à (3) electricidade, e ao (4) bisat al-reeh (tapete voador).

A bofetada, o pontapé, e a ponta de cigarro – isso são mimos. Por outras palavras, não fiques chateado; pelo contrário, devias ficar contente de a coisa ficar por aí.

O dulab é o começo da segunda etapa do interrogatório. Normalmente, antes de começarem o interrogatório, eles vão-te tratar com uma fase de “show de músculos”. Quanto à duração dessa primeira fase: (1) pode ser a fase mais demorada, depois da qual tu te vês livre deles (“boa, meu!”); (2) ele vai-te dizer que isto era só uma brincadeira, ainda mal começámos; (3) ele está a mentir. Não o deixes vencer a guerra psicológica.

A posição no dulab [pneu] é do género da falqa [pancadas nas plantas dos pés] e varia conforme os materiais que eles usam (borracha, correia de tanque, cabo eléctrico, cinto normal ou vara de bambu).

Graças a Deus eu não levei com a electricidade. Eles podem usar o velho instrumento com os dois pólos positivo e negativo, ou os ponteiros eléctricos iranianos – deviam ter vergonha. Podem usar os ponteiros eléctricos para fazer ruídos e ameaçar-te. Mas é mais o barulho do que o efeito.

O bisat al-reeh [tapete voador] é usado em Damasco quando querem obrigar os detidos a fazerem falsas confissões. Por exemplo, fizeram isso com o M.I., o advogado, quando quiseram obrigá-lo a confessar que tinha recebido milhões da Arábia Saudita para distribuir panfletos. O bisat al-reeh consiste numa tábua de madeira onde o corpo do detido é deitado. Então a tábua é erguida na vertical provocando dores fortíssimas nas costas, para não falar do acompanhamento de pancadas.

Eu estou só a referir a parte pior. Mas não tenhas medo! O máximo que eles irão usar será provavelmente o dulab, e é se optarem por usá-lo.

Outra coisa que devo referir, para evitar quaisquer surpresas após a detenção. Quando eles me vinham buscar e trazer de volta à cela da prisão, eu tinha as mãos amarradas atrás das costas e os olhos vendados com a tammasha (ou tummesheh) para me impedir de ver alguém ou alguma coisa. O interrogador vai pôr-se aos gritos, e haverá vários deles à tua volta. O dulab pode ser acompanhado por um deles a pisar-te a cabeça e algumas formas de humilhação, incluindo pragas e blasfémias. São meros “sound effects” [efeitos sonoros]. Não valem nada. Em todo o caso, todas as bofetadas, os pontapés e os murros, sejam quais foram as partes sensíveis [do corpo] onde as apliquem, não vão doer porque a tua adrenalina estará muito elevada. No entanto a falqa [pancadas nas plantas dos pés] é bastante dolorosa. Reza para conseguires aguentar. O inchaço dos pés vai passar em dois dias.

Porque é que te deixaste tomar por tanto medo?! Juro-te que não vale a pena. Leva isso como uma penitência pelos teus pecados, um modo de te ergueres até mais perto de Deus. Após alguns momentos, consegues levar com a falqa sem fazeres um ruído, e nós achamos que os que gritam são muito moles. Nós estávamos com dois jovens de Douma, de 17 anos de idade, do 11º ano. Foram tão espancados, nem animais o aguentariam. Mas juro que não gritaram nem abriram a boca. Foi surpreendente. Pareciam totalmente inocentes e infantis, nada machões. Nós tivemos vergonha e a partir desse dia deixámos de nos queixar. Por isso, mantém-te forte e lembra-te que tudo joga a favor de Deus e da Síria. Se Deus quiser ninguém será preso. Mas, a sério, se alguém for preso tem de ser capaz de usufruir da situação.

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Os companheiros de cela

(Aplicável apenas se fores colocado numa cela colectiva). Vais passar a maior parte do tempo com eles, e tornar-se-ão um só espírito em muitos corpos. É bem provável que vocês sejam encafuados num espaço bem pequeno. Mantém a calma! Não vais sentir-te enojado com o cheirete incrível, e não te sentirás incomodado por haver pés que te batem na cara, para onde quer que te vires. A maior parte dos teus companheiros de cela serão camaradas manifestantes. Os que não têm nada a ver com a revolução são presos por engano, e tem havido nas prisões tanta gente presa por engano. Tenta adaptar-te e criar rapidamente proximidade com eles, e puxa pelo sentido do colectivo, e incorpora a ética dos revolucionários. Não te metas em disputas com ninguém, porque isso só vai agradar aos guardas prisionais e dar-lhes motivo para vos castigarem se as vozes soarem altas demais.

Mantém-te afastados dos infiltrados – de facto eles sempre tentam meter um no meio de vocês, ou sozinho contigo, só para verificar se estás arrependido e avaliar a tua credibilidade durante os interrogatórios. Finge acreditar nele, e exprime remorsos à frente dele, e que és o primeiro dos minhenakgi (referência coloquial usada para designar, depois de 15 de Março, os apoiantes do presidente), e que te trouxeram por engano. Claro que não te será difícil descobri-lo, porque se trata de um agente mukhabarat e consiste num monte de estupidez com um cheiro nojento.

Lembra-te de que a prisão é um mundo onde há poucas coisas. Os teus sonhos tornar-se-ão um pouco mais modestos. Quer dizer, esquecerás um pouco a liberdade e o pluralismo por que combatias fora da prisão, e começarás a sonhar com um bom duche, com uma mudança de roupa interior, com uma noite no colchão, e por vezes ainda mais modestos: o privilégio de poder esticar as pernas (porque o local é de facto muito exíguo), o privilégio de conseguir dormir sentado, o privilégio de conseguir beber um pouco de água sem te preocupares por teres de ir ao banheiro, [o privilégio] de ver a luz do sol, etc.

São coisas que te servirão para tecer as histórias que vais contar aos filhos quando forem dormir. Por isso, goza-as com um sorriso.

Algum vocabulário usado na prisão. Explicação

Seidi (Senhor):

A infamante palavra para te dirigires [aos carrascos]. É imposta com o fim de humilhar. Usa-la para falares com eles, seja o simples agente ou o chefe da polícia política. Cuidado, nunca lhes chames oustath (modo coloquial educado de se dirigir a estranhos que são licenciados [como em português se diria “Sr. Dr.”]) ou irmão, para não levares de repente com uma estalada em aceleração vertical para a tua cara.

T’al’oh ‘al khat (Levá-lo à linha):

Isto significa levar [o preso] ao banheiro.

Al-sajjan (o guarda prisional):

O agente da polícia política encarregado de te arrastar até ao interrogador, de te levar ao banheiro, ou de te trazer a comida: também este o tens de tratar por Seidi (Senhor). Conforme a situação, podes pedir-lhe para tomar um duche, quando a tua estadia se prolongar, para te trazer uma manta se tiveres frio, ou sal para as batatas cozidas, ou para te levar ao banheiro fora das horas normais, etc. Não peças um Corão – PROIBIDO.

Tasyeef (Empacotar as espadas):

É uma maravilhosa posição para dormir – assim possas tu experimentá-la um dia. Deve ser usada quando o espaço da cela é apertado, de maneira que cada um dorme com a cabeça para lados alternados (ou seja, como uma lata de sardinhas, cabeça-pés-cabeça-pés). Poderás usar os pés dos companheiros [do lado] como almofadas. Sobretudo se estiverem inchados por causa da falqa, os pés dos teus companheiros deverão estar fofinhos como tu gostas.

Nota: Por vezes até o tasyeef é impossível. Nesse caso, que Deus te ajude. É-me difícil explicar por escrito as posições possíveis para dormir.

Tammasha (ou tummesheh):

Um pedaço de couro ou de tecido usado para vendar os olhos durante o interrogatório. Aumenta o teu sentimento de medo, e protege o interrogador da tua vontade de te vingar. Por vezes, conforme o ritmo do espancamento, o tummesheh pode levantar-se um pouco. Aí, por exemplo, podes aproveitar para dar uma olhada à sua cara maldosa, ou para perceber a hora do dia. Dá uma olhada, não tenhas medo.

A comida

Três refeições.

De manhã, labneh (azeitonas), halawa (compota de fruta). Não te excites demasiado se for de qualidade inferior à que esperavas :)

Almoço: burgol (trigo ralado cozido) com batatas e molho de tomate (humm! bom para encher a barriga!), ou por vezes arroz com frango, e as mais das vezes arroz com lentilhas, ervilhas e cenouras cozidas.

Jantar: batatas cozidas (sem sal!), por vezes com um tomate. Nalguns dias podem trazer-te um ovo cozido ou uma sopa de lentilhas, que consiste num líquido amarelado que não sabe a nada.

Limita-te a fechar os olhos e engolir – bon apétit – com os cumprimentos do chef com suspensórios azuis da Marinha. Quando acabares de comer, sê simpático com os rapazes e formula o desejo de que a próxima refeição seja lá fora, e tenta não te esqueceres de dizer daimeh (possamos nós comer sempre assim) para que a comida fique entalada na garganta deles. Não tenhas pressa de entrar em greve da fome. Estuda a situação com cuidado, porque é proibido. Há secções [da polícia política] em que sodomizam quem quer que tente fazer greve. Não te tomes pelo Gandhi.

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Para terminar

Dependendo de circunstâncias específicas da prisão, como a duração, os detidos podem ser ou não ser espancados nesta ou naquela secção da polícia política. Agora estás no terreno, e os teus amigos que já foram presos podem ser-te mais úteis do que eu.

A diferença entre mim e algumas das pessoas presas mais recentemente é que eu fui preso durante um mês no começo da revolução. Passei parte do tempo de detenção na segurança do Estado em Alepo e depois disso fui enviado juntamente com pesos-pesados da organização para o quartel-general da Mukhabarat em Kafar Sousseh, em Damasco. Aí encontrei dezenas de presos incríveis, e trocámos histórias e experiências, algumas delas possivelmente desconhecidas da nossa malta.

Na prisão tens de levantar a cabeça (mas só dentro da tua cabeça), lembrar-te do profeta Yusuf (Joseph) e cantar:

“Tu, com os teus olhos injectados e as tuas mãos ensanguentadas, lembra-te de que a noite há-de acabar, tal como a cela da prisão e o chocalhar dos teus grilhões.”

Mantém-te optimista e grava o teu nome na parede da cela. Quando eles te disserem para carimbar as tuas declarações com a tua impressão digital – pensa bem, muito bem, como queres usar esses traços de tinta e no que gostarias de escrever na parede.

Quando saíres e estiveres a salvo, não espalhes o terror acerca do teu heroísmo enquanto resistias às mais cruéis das torturas. Podes dizê-lo aos médias [à mídia], mas não aos manifestantes no terreno.

Estando cá fora, não atemorizes demais as pessoas com as perseguições da Mukhabarat. Tenta passar cada noite num sítio diferente, se possível, sobretudo se ainda és um activista, como todo o restante pessoal que foi libertado, em particular se se prevê alguma onda de detenções.

Se já provaste o sabor da prisão e já foste libertado, há uma coisa que sairá para sempre do teu coração: o medo.

Isto é o que eu penso sobre o assunto, para já. Para mais informação, peço-te que entres em contacto com as nossas secções em todas as províncias e cidades da Síria. Despacha-te, o tempo urge, pois quando um regime cai não fica nada de pé.

O Comité de Coordenação Local do bairro XXX.

Fim da 3ª e última parte.

Ver a 1ª parte aqui.
Ver a 2ª parte aqui.

Hani Sayed dirige o Departamento de Direito da Universidade Americana do Cairo (Egipto).

Original do artigo (em inglês) em jadaliyya.com. Tradução do Passa Palavra.

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